Capítulo 33: Conversas silenciosas
Os Vagantes, ou Sombras dos Caminhantes, são as criaturas mais antigas e respeitadas do nosso mundo. São existências primordiais que transcendem o próprio tempo e possuem a maior magia existente. Nem mesmo os dragões se comparam a esses seres.
— Estas criaturas estão para além da nossa compreensão — explicou o livro. — Além de terem a sua própria língua, não se comunicam com humanos ou com qualquer outro ser. São tão poderosas que é um tabu alguém, seja de que espécie for, tentar entrar em contacto com elas.
— E de onde vieram? — perguntou Bell, curioso.
— As lendas dizem que, há milénios, existiu uma outra sociedade que os deuses se esforçaram para criar. Contudo, com o passar do tempo, humanos e outras espécies começaram a esquecê-los. Furiosos, os deuses lançaram sobre o mundo todas as calamidades possíveis. Apagaram da existência aqueles que os tinham ignorado e, com a sua magia, transformaram todas as cidades, todos os países, tudo o que tinha sido criado pelos antigos habitantes, naquilo que conhecemos como os Vagantes. Estas criaturas são a prova viva do poder divino, um aviso de que nenhuma espécie deve voltar a esquecer-se dos deuses.
— Então eles andam sem rumo pelo mundo? — questionou Bell.
— Enquanto não recebem ordens para defender os seus deuses, sim. Apenas vagueiam. É daí que vem o nome Vagantes. São completamente imunes à magia e a qualquer tipo de dano físico, não precisam de se alimentar nem de dormir e possuem uma fonte de energia ilimitada.
— Mas eles são enormes! Por onde passam, não destroem tudo?
— Têm plena noção de onde podem andar. Para vos ser sincero, chegam a qualquer lugar em apenas alguns passos.
— Espera... como assim sabem por onde andar?
— Basicamente, servem como as armas dos deuses, mas também lhes cabe a função de não interferirem nos assuntos das raças mortais. Mesmo que uma guerra esteja a acontecer, não podem fazer nada para impedi-la, mas têm a liberdade de se afastar ou de permanecer no campo de batalha. Não podem destruir cidades sem motivo, mas podem perfeitamente passar ao lado de uma.
— Isso não faz sentido. Quem é que ficaria no meio de uma guerra de propósito?
— Meu caro e ingénuo Bill... os Vagantes são completamente imunes à magia dos humanos. Já viste o tamanho deles? Mesmo que todas as nações de todos os continentes os atacassem ao mesmo tempo, sentir-se-ia apenas como uma picada de mosquito. Nada mais.
— Só por curiosidade... quanto tempo levaria a chegar à fronteira com a ajuda de um Vagante?
— Três dias, no máximo. De dirigível, na velocidade máxima, levaríamos pelo menos trinta e cinco. Pode não parecer, mas este continente, apesar de ser o mais morto entre todos, também é o maior.
— Estamos assim tão longe da fronteira?
— Mas é claro! — O livro riu-se, divertido. — Tu não sabes onde vives, pois não? Para lá da fronteira está a civilização. Esta pequena parte onde te encontras é simplesmente a região que ninguém quer colonizar.
— Acreditas nisto, Bell?
Não obteve resposta.
— Bell?
O irmão tinha desaparecido.
— Onde é que ele se meteu?
— Vi-o a trepar para o lado de fora da saída — confessou o livro.
— E porque é que não disseste nada?! — gritou Bill, irritado.
— Ele pode até ter ajudado a senhorita Elliot, mas, quanto mais pulguentos estiverem longe dela, melhor!
Um rugido ensurdecedor ecoou, e Bill temeu o pior.
— Sabes que, se ele fizer algo que irrite esta coisa, morremos todos, certo?
O livro demorou um segundo a processar a informação antes de gritar em pânico:
— DO QUE ESTÁS À ESPERA?! VAI ATRÁS DELE!!!
— Eu não me dou bem com alturas... — murmurou Bill, visivelmente desconfortável.
O seu olhar desviou-se para o livro, e um sorriso matreiro surgiu-lhe nos lábios.
— Já que sabes voar...
Antes que o livro pudesse reagir, Bill agarrou nele e lançou-o pela abertura do Vagante.
— ... vai tu impedi-lo.
O último som que ouviu foi o berro indignado do livro a desaparecer na distância.
*
Bell escapuliu-se durante a explicação do livro sobre os Vagantes. Pediu a Runar que se transformasse num par de asas e o levasse até à cabeça do Vagante, uma vez que escalar o seu corpo estava fora de questão. Enquanto subiam, Bell observava as inúmeras cidades que constituíam o corpo colossal da criatura.
— Só mais um pouco, Runar, estamos quase a chegar — avisou Bell, tendo perfeita consciência do quanto ainda faltava subir.
Após horas e horas de ascensão, finalmente chegaram à cabeça do Vagante. Runar aterrou o melhor que conseguiu antes de voltar ao seu estado normal e desaparecer.
— Dorme bem, mereces — murmurou Bell.
A cabeça do Vagante era diferente do resto do corpo. Apesar do rosto parecer uma complexa junção de edifícios estranhos, o topo da sua cabeça era coberto por um pelo preto, fino e suave. Bell sentou-se ali. Era como estar num prado de flores.
O Vagante rugiu, incomodado com a presença inesperada, e tentou sacudi-lo. Bell, porém, passou a mão pela cabeça da criatura, numa tentativa de lhe mostrar que não tinha más intenções. O Vagante não pareceu entender o gesto e levou uma das mãos à cabeça, como se quisesse livrar-se dele.
— Desculpa por todo o incómodo que causámos — disse Bell.
O braço do Vagante ficou suspenso no ar.
— Imagino que não deve ser fácil acordar do nada e ter um grupo de humanos a brincar no teu interior.
O Vagante afastou lentamente a mão e soltou um som profundo, semelhante ao cântico de uma baleia, calmo e relaxante.
— Suponho que aceites o meu pedido de desculpas — disse Bell, sorrindo. Depois de outro som, um pouco mais amigável, perguntou: — Deixa-me fazer-te uma pergunta... nunca te sentes sozinho?
O Vagante respondeu com um som triste, e Bell fez-lhe uma festa na cabeça.
— Deve ser solitário andar sempre sozinho...
A criatura concordou com um pequeno aceno.
— Ser temido por tudo e por todos... Não imagino quem queira algo assim.
Outro som triste e melancólico vibrou no ar. Bell não sabia se o Vagante o compreendia realmente ou se apenas estava a falar sozinho.
— Não sei se me entendes, mas tenho de te dizer... a tua cabeça é mesmo fofinha! — exclamou, deitando-se sobre o pelo suave.
Para sua surpresa, o Vagante soltou algo semelhante a uma risada. Talvez fosse a primeira vez que um humano tentava conversar com ele, e, pelo que Bell percebia, a criatura estava a gostar tanto quanto ele próprio.
— Olha, eu sei que eu e os meus amigos invadimos o teu espaço pessoal, mas tenho de admitir que acho maravilhosa esta junção de cidades.
O Vagante inclinou a cabeça, sem entender o que Bell queria dizer.
— Como posso explicar? Ver estas cidades todas juntas, tão perfeitamente encaixadas, faz-me pensar... Se os edifícios conseguem coexistir assim, porque é que todas as raças não podem? Se nos uníssemos, poderíamos criar algo fantástico. Tal como tu.
O Vagante emitiu um som de compreensão, seguido de outro que Bell interpretou como um agradecimento.
— Não tens de quê — disse Bell, afagando novamente a cabeça do Vagante.
Desta vez, foi a criatura quem lhe dirigiu uma pergunta. Bell não entendeu as palavras, mas, de alguma forma, soube o que responder.
— "Se eu tenho medo de ti?" Nem por isso. A criatura mais assustadora que caminha por este mundo está, neste momento, na tua cabeça.
Bell começou a suspeitar que o Vagante se comunicava com ele através de algum tipo de magia telepática. Era a única explicação que fazia sentido.
— "Porque é que eu tenho medo dos humanos?" Talvez porque, até agora, foram as criaturas menos humanas que conheci — disse, lembrando-se da cidade de Golias, de Valak, da Esquecida, do preconceito e das atrocidades que testemunhara.
O Vagante soltou um som compreensivo.
— A vista daqui é bonita, não é?
O Vagante assentiu.
— Onde eu vivia também tinha uma vista bonita... Era mesmo bonita...
Por um instante, Bell jurou ouvir a palavra "lamento" na sua mente e supôs que tivesse vindo do Vagante.
— Obrigado — sussurrou, afagando novamente a cabeça felpuda da criatura. — A minha cidade ardeu, sabes? Foi obra de um monstro... mas, ao mesmo tempo, não foi. O monstro que a destruiu só existe noutro continente. Ou seja, alguém o trouxe para cá... ou é familiar da pessoa que destruiu a minha terra natal.
O Vagante soltou um som mais brusco, carregado de raiva.
— "E como consegues falar disso dessa forma?" — Bell sorriu. — A dor parece menor quando é partilhada com outros.
O Vagante voltou a perguntar-lhe algo.
— "O que faria se encontrasse essa pessoa?" Nada, suponho. O que está feito, está feito. Agir por vingança, matar alguém por ódio... não traria de volta aqueles que morreram. Mais vale proteger quem está vivo a todo o custo.
O Vagante permaneceu em silêncio por um momento, antes de soltar um novo som. Parecia que, com algum esforço, compreendia o ponto de vista de Bell.
— "Tu és estranho."
Bell riu.
— Eu sei... Mas, no fundo, não somos todos?
O Vagante voltou a questioná-lo.
— "O que vais fazer agora?"
Bell suspirou.
— Para ser franco, eu e o meu grupo estávamos a caminho da fronteira. E tu?
O Vagante encolheu os ombros.
— Nesse caso, não nos queres dar uma boleia? Por favor? — pediu Bell, de joelhos.
O Vagante soltou um som que se assemelhava a uma risada e assentiu. Deu um primeiro passo, fazendo a terra tremer. Ainda sacudia o pó acumulado após tanto tempo de inatividade. Chegou a sacudir a perna, como alguém que esteve muito tempo sentado e sentisse formigueiro. Bell riu da cena.
De repente, um portal abriu-se um pouco atrás dele. Sirius havia recuperado e tinha poupado o grupo do trabalho de ter de escalar até à cabeça do Vagante.
— Então... tudo bem? — perguntou Bell, levantando-se e acenando para o irmão, que vinha furioso na sua direção.
— TUDO BEM?! — gritou Bill, agarrando-o pelos ombros. — Qual foi a tua ideia?! Não ouviste o livro dizer que estas coisas são perigosas? Que é crime estar perto delas?!
— Nós já tínhamos entrado nele antes... E, caso te tenhas esquecido, foste tu que o ativaste — lembrou Bell, fingindo inocência.
O Vagante soltou um rugido de concordância.
— Não te preocupes, é só o meu irmão e o familiar dele — respondeu Bell, deixando Bill ainda mais confuso.
— Tu... estás a falar com ele?!
— Não, estou a falar com um porco verde às pintinhas amarelas com asas de galinha que só eu consigo ver — respondeu sarcasticamente.
O Vagante riu novamente.
— Sim, ele é bastante barulhento — comentou Bell.
Bill suspirou, exasperado.
— Deixa-me ver se percebi... Nas últimas horas, fizeste amizade com uma das criaturas mais antigas, poderosas e temidas deste mundo?
— Eu não diria "temidas". São bastante gentis. Apenas se sentem sozinhas.
— Claro que se sentem — disse, sentando-se na cabeça do Vagante.
— Só por ele nos levar à fronteira não quer dizer que te possas pôr à vontade — resmungou Bill.
Bill virou-se para o irmão muito lentamente, com a expressão de quem não podia acreditar no que acabara de ouvir.
— Tu convenceste-o a levar-nos até à fronteira?
— Mais ou menos isso.
— Tu convenceste-o a levar-nos até à fronteira?! — repetiu, incrédulo.
— Mas perdeste assim tanto sangue ou ficaste surdo de vez?
— Eu realmente mereço... — resmungou para si.
— É incrível o que vocês conseguem fazer no pouco tempo em que estive a dormir — disse alguém antes de passar pelo portal.
— Elliot! Estás bem?! — exclamou, levantando-se e abraçando-a.
— A mim é que não me dás abraços desses — comentou Bell, colocando a mão à frente da boca para esconder o seu sorriso maroto.
Ao ouvir as palavras do irmão, afastou-se atrapalhado de Elliot.
— Boa sorte — disse Bell, com um sorriso.
— Para quê?! — gritou quando o irmão lhe tocou no ombro e passou por Elliot.
— Sirius, deixa o portal aberto — pediu Bell ao saltar para o portal.
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