Capítulo 24 - Corações Conectados
O grupo levantou-se mais cedo do que o habitual na manhã seguinte. Doreán queria sair da cidade antes que mais alguém descobrisse quem tinha matado Golias.
Trei foi o último a levantar-se, pois tinha ficado na casa de Don, a conversar com ele durante toda a noite. Don ainda tinha dificuldades em acreditar que Trei conseguia realmente falar, pois, além dele, Don era o único que sabia o verdadeiro motivo da fala de Trei ter sido afetada – e não, como muitos imaginavam, por ser um meia-raça.
Para evitar chamar a atenção, saíram durante a noite em direção ao vale das montanhas. Decidiram ir a cavalo, uma vez que, mesmo sendo de noite, era muito arriscado usar Crainer como montaria.
Como da última vez, Trei foi sozinho em um cavalo. Bell juntou-se a Doreán e Bill ficou com Elliot. Quando Bill subiu para o cavalo, percebeu que Elliot estava muito pálida e parecia bastante cansada. Perguntou várias vezes o que se passava, mas Elliot ignorou-o.
Bill, cansado de ser ignorado, segurou nas rédeas do cavalo e forçou a parada. Finalmente, Elliot reagiu. Virou-se bruscamente para ele e empurrou-o para fora do cavalo com uma estalada.
— O que se passa contigo? — gritou Bill, atónito.
Elliot não respondeu. Limitou-se a ficar imóvel em cima do cavalo. Bill, sentindo que algo estava muito errado, insistiu:
— Elliot — chamou ele, agora mais preocupado. — Mas qual é a tua ideia?
Os outros ainda não tinham percebido que se tinham afastado, e Bill não podia esperar pela ajuda deles. Elliot desceu do cavalo e o ambiente ficou mais frio.
— Tu não estás bem, pois não? — perguntou Bill, irritado.
Elliot virou-se, encarando-o com um olhar gélido.
— Eu não estou bem? — A voz de Elliot estava fria. — Muito pelo contrário, estou muito bem... ou estaria, se não fosse por vocês dois.
— Mas que bicho te mordeu? — perguntou Bill, surpreendido com a reação de Elliot.
Elliot soltou uma risada amarga.
— Tu não percebes, não é? Tu e o teu irmão são tão irritantes que me dão nojo. Em todas as situações que enfrentam, nunca fazem nada sem ajuda. Ele saiu da prisão do Valak porque foi possuído. Tu tiveste de ceder o teu corpo para matar o Golias. Na batalha contra o Emiel, se não fosse o teu irmão, já estarias morto. E para disfarçar isso, para convencer-te de que não és fraco, ainda levaste a mordida do farejador por mim. És patético se achas que isso muda alguma coisa.
Bill, chocado com as palavras de Elliot, respondeu com raiva:
— Tu só podes estar a gozar. Eu e o Bell passámos por um inferno ao chegar aqui. Eu lutei sozinho na prisão de Valak antes de o Bell chegar. E se vocês demorassem mais, eu teria de lutar contra o meu irmão sozinho. Achas que eu teria levado uma mordida de farejador por ti? Logo tu, que tens infernizado a minha vida desde a primeira vez que nos vimos.
Elliot sorriu, seus olhos gelados.
— Basta fazer um pouco de pressão, e ambos cedem, como galhos secos. Tratam a vossa vida como se não significasse nada. Se soubessem o que é ter a liberdade arrancada de vocês, não seriam tão precipitados. Tu tentaste enfrentar o Valak sozinho... entendes o quão estúpido isso foi?
Bill encarou-o, o rosto a ficar vermelho de frustração.
— Está calada, Elliot. Falas muito, mas não estiveste na nossa situação. Não viste centenas de pessoas morrerem, não ficaste encarcerada na prisão de um doido. O Bell estava sem magia e sem armas. E sabes o que o Valak fez? Arranjou dois corpos iguais aos nossos e os colocou diante do meu irmão. Mesmo na cela ao lado. Tu não sabes como é lutar contra algo que quer dominar o teu corpo quando não te resta mais nada, excepto a fé. E tu esqueces-te que, durante anos, não pudemos sair da esquecida. Se somos impulsivos, é porque, acima de tudo, a minha liberdade sempre esteve subordinada ao meu irmão. Tu saberias disso se conseguissem gostar de alguém.
Elliot olhou para Bill com um sorriso amargo.
— Tens razão, eu não vi centenas de pessoas morrerem (eu matei centenas). Eu não fiquei encarcerada durante dias (eu fugi durante anos). Eu já estive sem magia e sem armas (mas não sabes quantas vezes resisti aos meus próprios demónios). Lutas internas? Todos os dias é uma batalha dolorosa. Nunca tive pessoas para amar, porque todas me foram tiradas. Traíram-me, atacaram-me, lançaram injúrias e pedras sobre mim, caçaram-me por dias sem descanso, até quase me deixarem morrer.
Bill sentiu uma mistura de desilusão e raiva. Se Elliot achava que uma simples mudança de tom de voz o assustaria, estava muito enganado. No entanto, cada vez que a voz de Elliot parecia mudar, ele sentia uma curiosidade crescente. Era como se estivesse a conversar com duas pessoas ao mesmo tempo. Bill distraiu-se por um momento, achando que a figura de Elliot se tornara maior, mas a imagem desapareceu num piscar de olhos.
— Tu não sabes nada sobre mim — disparou Elliot.
Bill olhou-o nos olhos, desafiando-o.
— E o que tu sabes sobre mim? — perguntou, com a voz baixa, mas cheia de tensão.
O brilho nos olhos de Elliot desapareceu, e ele desviou o olhar. O grupo voltou para trás para verificar o que estava a acontecer, mas ninguém ousou dizer uma palavra. Bill não permitiu que fizessem perguntas e saltou de imediato para o cavalo de Trei.
— O cavalo assustou-se com algo — disse Bill, tentando mudar o foco. — Vou com o Trei, não vá ele achar-me um incómodo.
Doreán olhou desconfiado, mas não insistiu.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou, com a voz baixa.
— O cavalo assustou-se — repetiu Bill, com um tom monótono.
— Com o quê? — insistiu Doreán, curioso.
— Achas que eu sei? Pergunta-lhe se ele te responde. — Bill desviou o olhar.
Bell, percebendo a tensão no ar, deu duas palmadinhas no ombro de Doreán e fez sinal para que ele não insistisse. Contudo, Doreán desceu do cavalo e fez sinal para Bell seguir sem ele. Bell, relutante, seguiu a ordem e pôs o cavalo em movimento.
Doreán aproximou-se de Elliot, que estava quieto, com o olhar distante.
— Não queres dizer nada? — perguntou ele, suavemente.
Elliot olhou para ele, mas não respondeu. Doreán insistiu:
— Não é nada, certo?
— Já disse que não é nada — respondeu Elliot, com um suspiro impaciente.
— A noite está fria, não achas? — observou Doreán, tentando mudar de assunto.
Elliot tentou reagir agressivamente, mas Doreán já estava preparado. Ele agarrou o braço de Elliot e puxou a manga da camisa para cima. As sobrancelhas de Doreán ergueram-se, e ele lançou-lhe um olhar de desaprovação.
— Há quanto tempo? — perguntou, firme.
Elliot, tentando se soltar, evitou olhar para Doreán. Debatia-se, mas Doreán não a soltou.
— Elliot!! — insistiu Doreán, a voz mais firme agora. — Há quanto tempo?
Elliot suspirou profundamente e, com a voz baixa, murmurou:
— Algum tempo... desde a cova dos uivadores.
Doreán olhou-lhe com uma expressão de incredulidade. Ele estava visivelmente irritado, andando em círculos e levando as mãos à cabeça. Depois de alguns segundos, parou e, com um tom de voz decidido, falou:
— Fazemos assim: tu levas o cavalo e voltas para trás. Ficas na casa do Don, ele saberá o que fazer.
— Não, eu vou convosco — respondeu Elliot, teimoso.
Doreán, exasperado, fez um gesto impaciente.
— Não era um pedido, Elliot. Vais para a casa do Don, ponto final.
Elliot, vendo que Doreán estava prestes a virar-lhe as costas, resmungou:
— Tu só queres ver-te livre de mim, não é?
Doreán estalou a língua, desapertou os botões do uniforme e, sem mais palavras, aproximou-se de Elliot. Sem dizer nada, amarrou-lhe a mão. Elliot, com os olhos fechados, sabia exatamente o que estava a acontecer.
Além do braço, Doreán ainda tinha uma marca que o acompanharia para o resto da vida. Uma parte do seu peito estava cristalizada, como se algo o tivesse perfurado e congelado de dentro para fora. Mesmo após anos, a cicatriz permanecia, e a área cristalizada ainda exibia o mesmo vermelho vivo de quando fora atingida.
— Olha-me nos olhos e diz-me que eu quero me ver livre de ti. É só o que eu te peço — disse Doreán, numa voz mais calma, mas cheia de intensidade.
Elliot olhou nos olhos de Doreán, mas as palavras morreram-lhe ainda na garganta. Em vez disso, encostou-se ao peito de Doreán e deixou escapar algumas lágrimas, que, para sua infelicidade, congelaram enquanto desciam pelo seu rosto.
— Porque eu? — soluçou Elliot, a voz falhando. — Eu não pedi para ser assim, eu não quero ser assim...
— Eu sei — respondeu Doreán, com uma ternura genuína. — Cada um de nós carrega a sua cruz, mas infelizmente a tua é mais pesada que a nossa.
O amor paternal que Doreán sentia por Elliot emergiu com força, e ele envolveu-a num abraço caloroso. Podia não ser seu pai de sangue, mas sabia que, para ela, ele e o grupo eram a sua única família, e isso significava o mesmo para Doreán.
— Quem diria que o Don tinha razão... afinal, sempre há uma mulherzinha aí dentro — disse ele, com um sorriso leve, tentando aliviar a tensão.
— Custa tanto... estás sempre à espera que eu cometa um erro, é tão desgastante... — Elliot disse entre soluços, a voz embargada pelo choro.
— Fala, em vez de guardares tudo para ti. Sofrer em silêncio só piora as coisas. Não interessa o quão horrível seja, não importa o quão louca ou perigosa a situação seja, somos mais fortes juntos, Elliot. Juntos, carregamos os nossos pesos, que achas?
Elliot assentiu, e Doreán fez um pequeno carinho na sua cabeça, num gesto carinhoso, como se quisesse transmitir-lhe segurança.
— Se voltares a ser fria como gelo depois disto, vais partir-me o coração — brincou Doreán, antes de se afastar de Elliot e começar a vestir-se para montar no cavalo.
Elliot subiu logo depois dele e agarrou-se com força à sua cintura, como se não quisesse mais largá-lo.
— Há anos que não me apertavas assim. Calma, que eu não vou fugir — Doreán disse, tentando aliviar o clima com um sorriso.
— Eu não quero perder-vos também... Eu não quero voltar a ficar sozinha — Elliot apertou Doreán com mais força, os seus sentimentos à flor da pele.
— Eu não me perdoaria se te deixasse sozinha aqui — respondeu Doreán, a voz cheia de sinceridade. — Afinal, um pai fica sempre ao lado dos seus filhos.
As lágrimas de Elliot, que haviam ficado congeladas, começaram a descongelar e desceram pelo seu rosto vermelho, à medida que o peso daquelas palavras e daquele momento se abatia sobre ela.
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