Capítulo 22 - As sombras da retaguarda
Doreán andava de um lado para o outro, preocupado com o que Bill pudesse fazer, e o barulho do lado de fora da estalagem não o ajudava a relaxar. Elliot tinha-se retirado para o seu quarto, enquanto Trei foi buscar pregos e tábuas novas para substituir as que Bill tinha destruído no seu quarto e aquelas em que Elliot tinha disparado.
Bill apareceu no hall de entrada, onde o irmão o esperava ao balcão enquanto tomava um copo de sumo de laranja e comia uma tarte que Don havia preparado como presente de melhoras.
Bill sentou-se ao lado do irmão e apenas pediu um copo de água. Não estava com muita disposição para comer depois de ver o que Sirius tinha guardado para Golias.
— Bill, quando chegaste? — perguntou Doreán, fingindo-se de tranquilo ao descer as escadas, já com um cigarro na boca.
— Mesmo agora. Porquê, estavas preocupado?
— Achas? Eu sei que sabes cuidar de ti — disfarçou, dirigindo-se ao balcão.
Pouco depois, Trei também desceu e, como era de esperar, abraçou Bill com lágrimas nos olhos e uma força tremenda. Esperaram um pouco, mas como Elliot ainda não tinha descido, Bill achou por bem começar a falar do que tinha descoberto sobre Sirius sem a presença dele.
A história deveria ser curta, mas as interrupções e dúvidas constantes de Trei fizeram com que se arrastasse por mais tempo do que Bill previra. Stella também aproveitou para conversar depois de ter saído do brasão de Bell por puro capricho. Teve de chatear um pouco a cabeça de Bill até que ele concordasse em chamar Sirius, que se mostrou mais do que satisfeito por poder conversar com Stella, apesar de ainda não estar recuperado.
— Sinceramente, arranjas cada coisa que nem sei o que te diga — comentou Doreán, rindo ao ouvir a notícia de que Golias estava "morto". — Foi uma punição mais do que justa para aquele crápula nojento.
— Homem branco causar pesadelos. Trei não gostar de homem branco — disse Trei, parecendo assustado. — Cabeça parecer ovo.
— Mas será que não vai haver problema por um nobre ter sido morto assim do nada? — perguntou Bell, preocupado com as consequências dos atos do irmão na cidade.
— Não te preocupes, a maior parte das pessoas desta cidade já lhe tinha dado um pontapé naquele traseiro, se não fosse pela enorme diferença de poder e tamanho — comentou Doreán, despreocupado.
— E pensar que isto aconteceu porque eu fui preso... — murmurou Bell em voz alta, enquanto comia mais uma fatia de tarte.
— É verdade. E quanto a isso, já te recuperaste? — perguntou Bill, pousando a mão no braço de Bell, como se o quisesse reconfortar.
— Bell preocupar Trei. Figura má na torre grande — disse Trei.
— Sim, já estamos bem — respondeu Bell com um sorriso.
— Ainda bem... Espera... "Estamos"? — repetiu Bill, confuso.
Um pequeno ser preto surgiu do meio dos cabelos de Bell. Era como um boneco de pano, totalmente preto, mas com dois borrões brancos a fazer de olhos. Tinha o aspeto de um ser humano em miniatura, pequeno o suficiente para caber na mão de Bell ou para se esconder no seu cabelo.
— Bell, tenho fome. Dás-me um pouco de tarte? — perguntou o pequeno ser, com uma voz baixa.
— Claro, Runar — afirmou Bell, partindo uma fatia de tarte ao meio e estendendo-lhe a parte maior.
— Obrigado — disse Runar, começando a devorar o pedaço de tarte com avidez.
— Bell? — disse Doreán, num tom interrogativo. — O que é isso?
— Desculpem, estava entretido a ouvir a história e não vos apresentei o meu novo amigo — respondeu, com um ar de desculpa.
— Um novo amigo? Desde quando? — questionou Bill.
— Bem, acontece que este pequenote foi a razão para eu ter perdido o controlo por um momento. Já agora, este é o Runar.
— Pequenino... Fofo... Bicho — comentou Trei.
O pequeno familiar parou de comer por um instante e ergueu o pequeno braço num gesto de cumprimento. Trei repetiu o gesto, e Runar pareceu ficar feliz, estendendo-lhe um pedaço da tarte. No entanto, Trei recusou, pois não estava com muita fome.
Runar fugiu assim que sentiu o hálito a tabaco de Doreán e, logo de seguida, assustou-se com a expressão severa de Bill.
— E que tal parares de fazer caras feias? Estás a incomodá-lo, se ainda não reparaste — avisou Bell.
— De certeza que não bateste com a cabeça em algum lado? — sugeriu Bill, desacreditando o que o irmão dizia.
— Runar, fazes-me o favor de mostrar ao meu irmão que ele está errado?
Runar terminou a sua fatia de tarte, saltou para a mão de Bell e foi absorvido pelo corpo do seu dono, tornando a sua pele tão escura como aço negro. Ao contrário do que acontecera na prisão, desta vez o seu corpo estava totalmente negro, assim como as suas roupas, que passaram a fazer parte da nova forma de Bell. Ele esticava, dobrava e contorcia o corpo de maneira impossível para um ser humano normal. Além disso, podia transformar diversas partes do corpo em objetos ou armas, expandir o tamanho do corpo ou até criar mais membros, o que exemplificou ao gerar mais dois pares de braços. Também lhe era possível tornar o seu corpo tão fino como uma folha de papel, permitindo-lhe esgueirar-se facilmente por baixo de portas trancadas.
— Mais, mais, mais! — dizia Trei, muito animado, como uma criança pequena.
— Confesso que isso é um pouco enjoativo... — comentou Doreán, vendo o corpo de Bell ficar tão flexível como um slime.
— Mas agora vem a melhor parte! — avisou Bell, quando uma massa negra se aglomerou nas suas costas.
Das costas de Bell saltou outro ser, totalmente idêntico a ele — um clone perfeito, criado através de uma das muitas habilidades de Runar. Se não fosse pela voz, Bill jamais conseguiria distinguir qual dos dois era o verdadeiro Bell.
— Como vês, ele é mais capaz do que julgaste inicialmente. A única desvantagem é que, enquanto estou nesta forma, não posso usar magia.
— Claro que tudo tem de ter um revés... — disse Bill, desapontado. — A Elliot não deveria ter-se juntado a nós já?
— Ela disse que estava cansada e que preferia não ser incomodada — intrometeu-se Doreán, barrando o caminho a Bill.
— Elliot precisar dormir, estar muito cansada — avisou Trei.
— Eu não aguento mais isto... — disse Sirius, abandonando a conversa com Stella e dirigindo-se a Trei, com a paciência por um fio.
Levantou uma barreira à volta de Trei, impedindo que alguém o interrompesse enquanto trabalhava. Aproximou-se com uma expressão severa, enquanto Trei, com lágrimas nos olhos e um ar assustado, tentava levantar uma barreira entre os dois — sem sucesso. As roupas de Sirius pareciam estar vivas quando se estenderam para prender os pulsos de Trei, levantando-o no ar.
Sirius fez surgir um pequeno vórtice e retirou de lá um livro de capa verde-escura. Uma das suas mãos voadoras pegou no livro e começou a folheá-lo, repetindo o processo com mais três livros, cada um segurado por uma mão diferente. Todos tinham capas, formatos e espessuras distintos, mas o conteúdo de cada um era essencial para aquilo que Sirius pretendia fazer.
Sirius murmurava algo numa língua que ninguém conseguia compreender. Pelo idioma desconhecido e pelo tom anasalado da sua voz, mais parecia que estava a lançar uma maldição sobre Trei, que se debatia incontrolavelmente.
Bill gritava do lado de fora da barreira, mas Sirius parecia não o ouvir. Só baixou a barreira quando, de cada um dos livros, surgiu uma luz vermelha que se incorporou no corpo de Trei.
— Qual é o teu problema?! Uma coisa é teres esse ar sombrio e sinistro, outra é prenderes as pessoas e amaldiçoá-las! — gritou Trei, furioso.
Sirius virou-lhe costas e dirigiu-se à mesa, onde Stella o aguardava, entediada. Trei não percebeu de imediato que o grupo o olhava com espanto — sobretudo Doreán, que deixou cair o cigarro no chão.
— Algum problema? — perguntou Trei, sem notar qualquer mudança.
— O que fizeste ao Trei? — perguntou Bill, arrepiado.
— Se é para falar, que seja direito — respondeu Sirius, secamente. — Sinceramente, cada erro básico estava a destruir-me a paciência.
A reação de Trei foi demorada, mas, finalmente, apercebeu-se de que, pela primeira vez na vida, conseguia falar tão bem como qualquer outro ser humano. Ele correu e abraçou Sirius, que, surpreendido pela atitude, ficou sem reação — pelo menos até Trei pousar no chão.
— Doreán, vou ver o Don! Há tanto que tenho para lhe dizer! — e, sem mais delongas, saiu da estalagem, ainda aos pulos.
— E ainda dizes que não tens coração... Cá para mim, tens um maior do que alguns de nós — afirmou Bill.
Sirius não percebeu o que Bill quis dizer e, sem pensar duas vezes, abriu um buraco no peito, mostrando, mais uma vez, que estava vazio. Bell riu-se ao virar-se para trás e ver Stella a passar o braço pelo buraco, com um ar divertido.
*
Apesar de destruída e fora de funcionamento, a prisão de Valak ainda continha alguns aspectos dignos de serem estudados. Um homem de cabelos carmesim caminhava pelos destroços da prisão. Era visível que algo tinha destruído uma boa parte da estrutura interna, e saber como aquele edifício ainda se mantinha em pé era algo que ele não conseguia explicar. Apesar de ser noite, a lua dava a entender, através do seu brilho, que alguém tentara derreter as paredes exteriores, o que também se confirmava pelo interior do edifício.
— Tu passaste por aqui — disse para si próprio, quando se deparou com um enorme buraco na parede, a vários andares do solo.
Podia ser fraca, mas ele conseguia sentir uma energia familiar no ar. O mesmo familiar que encontrara na cidade, a fugir de um esquadrão de guardas. Tinha a certeza de que ele estivera ali, juntamente com mais alguém. Sentiu a presença de mais dois familiares, pelo menos dois humanos, um meia-cara e um odor desconhecido — algo que ele nunca havia sentido antes, o que o preocupou. Ao olhar em volta, parecia ser capaz de ver em que posições eles estavam quando partiram. A posição e forma estavam perfeitamente esculpidas, e depois mais uma presença, que, na sua visão, não tinha forma. Isso o deixava, em parte, curioso.
— Mas quem és tu? — disse intrigado para si.
— O que estás aqui a fazer? — dirigiu-se a ele uma voz medonha.
— Calma, Litch, só estou à procura de alguém — respondeu tranquilamente. — O teu mestre sabe que estás aqui?
— Não tens nada a ver com isso — desviou Litch rapidamente do assunto.
— Então, vocês os dois também os estão a observar de longe?
— Mantém-te longe deles — avisou Litch, com uma esfera escura nas mãos.
— Sabes, não me precisas de tratar como um inimigo — disse, levantando as mãos em desistência.
— Achas que não tenho motivos para o fazer, Arik? - disse manifestando uma aura opressora para cima de Arik.
— Sei lá, tens? - respondeu com um aura igualmente poderosa.
— Eu sei bem o que pretendes - disse o litch desistindo de medir forças com Arik.
— Se eu não sei, como é que tu sabes? — atirou Arik, com esperança de amenizar o clima. — Vá lá, não os posso ver nem por um segundo?
— Sabes muito bem as regras, só nos é permitido observar ao longe — constatou Litch, nada surpreso com a atitude de Arik.
— Por favor, eu prometo que mantenho a distância — suplicou. — Eles viram-te na esquecida. Não estás a ser um pouco hipócrita ao ser tão rigoroso com as regras agora?
— Foi uma emergência, se não tivéssemos sido avisados do que ia acontecer, eles podiam muito bem estar mortos.
— Desculpa, abre lá uma exceção.
— Por acaso não te lembras que é suposto eles não serem reconhecidos? E se alguém te vê a encontrá-los, o que achas que vai acontecer?
— Eu vou sob disfarce.
— Não podemos correr mais riscos. A comissão dos sacerdotes fica cada dia mais paranoica, e o alto concelho já começa a desconfiar. Não te podes expor mais.
— Quem deixou aquela coisa cair na esquecida não fui eu!!! — acusou, com um olhar intimidador.
— Estás a tentar culpar-me por isso?
— Não foi propriamente sem querer, pois não? — acusou novamente.
— Arik, estás a abusar da sorte. Nada mais foi feito do que o necessário.
— Só quero ter a certeza de que eles estão bem, com os meus próprios olhos.
— Eles estão bem, não precisas de te preocupar. Têm bons companheiros em quem podem confiar.
— Nós também tínhamos bons companheiros em quem podíamos confiar, e olha só ao que isso nos levou — disse Arik, com os punhos cerrados.
-Mas agora que eu estou com eles, certificarei -me que nada lhes aconteça - anunciou uma outra voz ao sair das sombras e revelando a sua feição neutra.
-Estás um pouco atrasado Sirius - comentou Arik batendo com o dedo indicador no pulso.
-Digamos que alguns inconvenientes atrasaram a minha aparição na vida dos meus amos - Respondeu olhando para cima, observando algumas nuvens carregadas prestes a tapar a lua.
-Afinal o que aconteceu? - questionou Arik virado para o Litch.
-Era para o siriús ter sido o primeiro familiar a manifestar-se no brasão dos irmãos, mas quando começamos a manifestar o Sirius nos sonhos do Bill o Crainer conseguiu sentir a magia do Sirius e atravessou a barreira á força, manifestando-se primeiro do que o Sirius - comentou o Litch suspirando.
-Mas talvez tenha sido melhor assim - comentou Sirius fazendo um gesto e afastando as nuvens do céu - Não é discutível que se eu me tivesse manifestado primeiro eles teriam saído da cidade muito facilmente, mas sem essa experiencia eles seriam meros novatos no mundo real, e isso provocou em ambos um desejo de se tornarem mais fortes.
-Então mesmo no erro conseguimos acertar em algo - comentou Litch com uma voz ainda triste por ter visto o que os irmãos sofreram.
-O que eles passaram agrada te tanto a ti como a mim, mas se for para os tornar mais fortes acho que não temos escolha - assentiu Arik dirigindo o seu olhar a Sirius - O que achas deles?
A expressão de Sirius mudou bruscamente, as rachas no seu rosto abriram-se espontaneamente e os dois buracos que faziam de olhos expandiram-se deixando aquelas pequenas esferas luminosas a pairar em um espaço vazio.
O litch tossiu e a expressão de Sirius voltou ao normal, disfarçando com uma pequena tosse.
-São bem melhores do que estávamos a espera, vou treinar o Bill todas as noites no meu espaço mental para ele poder treinar enquanto está a dormir, afinal não é como se tivéssemos assim tanto tempo.
-E quanto ao Bell? - perguntou Litch
Eles encaram-se por uns segundos, sem saber o que dizer.
-Porque esse silencio? - perguntou Litch
-Aquele que ia treinar o Bell foi capturado - Informou Arik com os olhos abaixados.
-E onde é que ele está?
-Em Vedan, mas ele decidiu agir por conta própria e encontrou outro hospedeiro - informou Sirius desapontado - no entanto acredito que no futuro ele possa nos ajudar.
- Bem, o meu mestre está-me a chamar, vou ter de ir — e desapareceu numa nuvem de fumo negra.
-Por mais que seja um alivio temporário encontrar-me com vocês não posso prologar a minha presença - e com um breve aceno Sirius deixou-se engolir pelas sombras também desapareceu
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