Capítulo 2: Bebida fria
Podia ainda estar de dia, mas Bill estava estafado de tanto andar e correr. Além disso, ainda lhe doíam várias partes do corpo e não queria incomodar o irmão com aquilo naquele momento. Bell também se foi deitar e Bill deixou que o sono o embalasse, juntamente com o ressonar agudo do irmão.
Já Doreán desceu para ir beber alguma coisa, deixando Trei e Elliot no quarto. O homem não ficou contente por vê-lo, mas acalmou-se quando Doreán se sentou e tirou algumas moedas do bolso. Sem uma troca de palavras, foi-lhe servido, numa enorme caneca, um líquido roxo com bastante espuma.
— Em todos os meus anos de serviço, ainda não vi ninguém a pedir isso sem seres tu.
— O que posso dizer? Tenho gostos estranhos — respondeu Doreán, com uma voz pouco animada.~
— Deves ter o fígado dourado a esta altura e um estômago de aço.
— Garanto-te que, se há algo de que sou feito, não é de aço — desabafou Doreán, encarando o seu braço.
Pouco tempo depois, Elliot desceu em sua companhia e pediu algo para beber, sentando-se ao pé de Doreán, que ainda com a caneca pela metade, fitava o teto como se fosse o céu estrelado. O homem trouxe um copo com água para Elliot e, com dois toques no balcão, chamou a sua atenção, dirigindo o seu olhar para Doreán, como quem perguntava o que se passava.
Elliot apenas encolheu os ombros e deixou uma moeda de cobre em cima do balcão. Mesmo não sendo esse o preço, ele aceitou a moeda e fez um sinal de afirmação com a cabeça, retirando-se.
A espuma já tinha desaparecido quase toda quando Doreán voltou a dar outro gole. Enquanto bebia, os olhos desviaram-se lentamente para Elliot, que muito calmamente bebia a sua água. O sabor daquela bebida era realmente amargo, mas Doreán não conseguia parar de a beber.
Enquanto se esforçava para engolir aquilo, lembrou-se de quando tinha oferecido aquela farda a Elliot. Na altura, ela tinha ficado radiante por ser uma farda parecida à dele, mas como as coisas mudam! Estava-se a sentir velho por recordar momentos assim.
— Ouvi dizer que o Doreán estava por aqui — gritou um homem ao entrar na taverna, batendo a porta com tal força que os vidros das janelas tremeram.
Doreán pousou a sua caneca e limpou a boca com um lenço. Aquela situação entediava-o.
— Olha quem resolveu voltar — anunciou um guarda, equipado da cabeça aos pés com a sua armadura reluzente.
Na verdade, eram três homens, e todos pareciam ter algo contra ele. Aproximaram-se com as armaduras a tilintar, e dois deles já com a mão no punho das espadas.
— É preciso ter muita lata para voltares aqui como se nada tivesse acontecido — continuou o guarda.
— Vai ser um prazer levar-te à corte marcial! — exclamou outro guarda, fazendo os outros rirem de satisfação.
— O grande e velho Doreán — continuou o guarda, apoiando-se no balcão. — Continuas a beber a merda da mesma bebida? — resmungou, atirando-lhe a bebida ao chão.
— Não passas de um velho decrépito com a reputação na lama — insultou o outro guarda.
— Que idiotas — soltou Elliot.
— Mas o que temos aqui? — perguntou o terceiro guarda, voltando-se para Elliot. — Não me digas que é a tua filha — riu-se como um porco. — Ou será a substituta da tua mulher? — voltou a rir-se, feito um porco.
— É mesmo típico de um velho acabado como tu gastar todo o dinheiro em bebidas horríveis e crianças! — continuou o homem que lhe tinha tirado a caneca.
— Acho que também a vamos ter de levar para interrogatório — sugeriu o segundo guarda, aproximando-se mais de Elliot.
Enquanto o trio de guardas se alegrava, lançando mentiras sujas a Doreán e insultando-o de todos os modos possíveis, o dono da pousada convidou os seus hóspedes a irem para os seus quartos ou, caso não tivessem interesse em ficar ali, a irem embora. Doreán tinha suspeitado que eles levariam menos tempo para achá-lo, contudo, esperou mais do que o previsto. A bebida também já não tinha mais sabor, e os insultos à mulher ou aos seus supostos gostos e hábitos não o afetavam.
— Sabem o que mais? Esta espelunca praticamente vazia... que tal começarmos o interrogatório agora? — sugeriu o primeiro guarda.
— Claro, tão murcho como ele está, não admira que aquela oferecida o tenha deixado.
Os guardas começaram a ficar irritados com a falta de reação de Doreán.
— Estás a ouvir-me? Olha para mim quando falo contigo! — gritou o guarda, colocando-se frente a Doreán.
— Deixa-o, nós temos outras prioridades.
Assim que o guarda tocou em Elliot, Doreán reagiu. Primeiro, amarrou o braço do guarda, torcendo-o e virando-o para fora. Com uma joelhada no estômago, o guarda vergou-se, e Doreán só teve de bater a cabeça dele contra o balcão.
O guarda que estava ao lado de Elliot teve menos sorte e foi atingido por dois socos na cara. Enquanto estava atordoado, Elliot calcou o joelho do guarda, fazendo-o soltar um estalido ruidoso e doloroso. Já o terceiro, perplexo pela atitude de Doreán, sacou a espada da bainha e atirou-se a ele. Doreán apenas tirou mais um cigarro da cigarrilha e acendeu-o com um isqueiro de prata escondido num dos bolsos. Elliot tratou de parar o golpe do guarda usando uma das suas adagas para fatiar a espada dele. Depois, com um pontapé rotativo, fez o guarda girar sobre si próprio e cair no chão.
— Não devias ter feito isso. Por acaso sabes a quem vamos relatar o que tu fizeste? — ameaçou o guarda, levantando-se enquanto via os outros dois desmaiados e recuava até à porta.
— Não vais relatar isto a ninguém — e, para acentuar o ponto, arremessou uma faca contra a porta do estabelecimento.
Elliot guardou ambas as adagas e caminhou na direção do homem com uma expressão sombria. A sala ficou gelada de repente, e a luz das candeias do teto ia diminuindo a cada passo de Elliot. A luz já se tinha esvaído por completo quando Elliot parou. O guarda não aguentava mais aquele absurdo e correu para onde achava estar a porta, acabando por bater contra a parede.
De novo, Elliot voltou a caminhar na sua direção. No entanto, algo estava diferente: o som dos passos tinha algo que parecia arrastar-se pelo chão. Devia ser Doreán pelos passos pesados, mas como poderia um humano fazer a madeira estalar daquela maneira? Esperando que Doreán chegasse mais perto, o guarda preparou uma pequena surpresa, algo que ele fizera para situações como aquela.
Os passos pararam. O guarda voltou-se subitamente e, apontando os seus braços para o vazio, conjurou um feitiço. As braçadeiras da armadura abriram-se e delas saíram enormes chamas que, além de cobrirem quem estava atrás de si, iluminaram a taberna.
— Queima, monte de merda! — gritou o guarda vitorioso, antes dos seus braços serem arrancados.
Em nenhum momento viu o que, de fato, estava à sua frente. Quando as chamas se apagaram, dois olhos azuis emergiram da escuridão. Agora estava no meio do escuro, junto com algo que não sabia o que era ou o que lhe poderia fazer. Antes que pudesse pensar em algo para além de como poderia vir a morrer, uma luz acendeu-se. Era uma chama azul que pairava no ar, imóvel, a alguns metros de si. Sentiu-se tocado em apanhá-la, mas a luz que emitia iluminava muito mais do que ele queria ver.
A luz das candeias voltou de repente. Doreán voltou a sentar-se com outra caneca na mão, e Elliot estava de pé, onde supostamente deveriam estar os guardas. Os três haviam desaparecido sem deixar rasto, nem armaduras, armas ou um simples fio de cabelo.
— E então? — perguntou Doreán, já pronto para outro gole.
— Nada — relatou Elliot, desanimada.
— Que seja. Esperemos que o Don tenha informações para nós amanhã — e, com um último gole, pousou a bebida e dirigiu-se para o seu quarto, deixando mais algumas moedas de cobre ao lado da bebida.
Elliot ficou mais um pouco no hall, sentou-se numa das cadeiras da banca e observou a faca de Doreán. Na sua cabeça, pairavam pensamentos sem saber ao certo o que cada um significava. Já não se sentia assim há algum tempo; tinha simplesmente desligado da realidade e ficou a olhar para o nada, pensando nas coisas que ainda tinham de planear. Estava cansada; o seu corpo movia-se mecanicamente em direção às escadas. A única coisa de fato que estava consciente era do frio que preenchia o vazio no seu peito, que se atiçava cada vez que situações assim aconteciam.
De braços cruzados e escondido em um canto, o dono observava Elliot a subir as escadas e as marcas de água que ela ia deixando no chão de madeira.
— Francamente, Doreán... — murmurou.
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