Capítulo 12: Cárcere privado
Bell ainda estava sob o efeito do veneno de Valak quando foi acordado com um balde de água fria por entre as grades da cela.
Após ser acordado, só queria voltar a estar inconsciente. Os olhos ardiam-lhe e a cabeça torturava-o com pancadas no cérebro. Estava pendurado pelos braços. As grilhetas estavam tão apertadas que lhe cortavam a circulação, e os dedos dos pés descalços estavam congelados ao ponto de quase não os sentir. Também sentia algo pesado amarrado ao seu pescoço, mas não conseguia ver o que era. A sua visão ainda estava turva, mas recuperava aos poucos à medida que ficava mais desperto. Do pouco que via e do pouco que conseguia perceber, sabia que estava numa cela. As paredes eram pretas, como se tivessem sido queimadas há muito tempo, assim como o chão. Se prestasse atenção, ainda via as manchas de sangue seco, um pouco disfarçadas pela água que lhe escorria do corpo.
- Os melhores aposentos que te posso oferecer – Disse uma voz, visivelmente alegre - Peço desculpa pelas manchas e o cheiro, sei que podem ser bem desagradáveis, mas o último que esteve aí deu um pouco de luta na hora de sair.
- Quem? – Disse Bell, cansado, e levantou o olhar.
- Um dos meus últimos brinquedos. Apenas durou alguns dias, que pena – Respondeu, com um ar desiludido.
- Não... quem és tu?
-Onde estão as minhas maneiras? – Exclamou, chocado, e Bell percebeu pelo som que se tinha levantado de uma cadeira - Maraki Valak, mas por favor trata-me apenas por Valak ou Val, se te sentires mais confortável – Pediu, muito educadamente.
Ao olhar por entre as grades da cela, distinguiu a figura difusa de um homem. A luz proveniente do corredor ajudava os seus olhos, que ainda se estavam a recuperar. Depois de alguns segundos e de pestanejar muito, apercebeu-se de que estava a falar com o mesmo homem que o tinha atacado após ele libertar os semi-humanos.
- Eu lembro-me de ti - susurrou tentando não piorar a sua dor de cabeça.
- Ainda bem, assim facilita as apresentações – Disse Valak, de bom humor, voltando a sentar-se na cadeira. – Então fala-me um pouco sobre ti.
- Suponho que não me vais libertar para isso – Opinou Bell, sem esperança.
-Se te portares bem, sou capaz de te tirar as correntes – Respondeu, esboçando um enorme sorriso.
- Tu sabes que eu vou sair daqui, não sabes? - disse Bell com confiança
- Pois claro, todos dizem o mesmo, mas já se sabe qual é o desfecho - respondeu meio desapontado com a primeira pergunta de Bell.
-E o que me impede de te queimar aqui e agora? – Ameaçou Bell, sem muita confiança.
- Vá, podes tentar – Permitiu Valak aproximando mais a sua cara das grades, inclinando a sua bochecha na direção de Bell.
Bell tentou acender uma chama na palma da mão, no entanto, nada aconteceu. Tentou, por longos minutos, conjurar um feitiço, mas fosse qual fosse, acabava por fracassar.
- Esta prisão... – Começou Valak, levantando-se da cadeira. – Além de ser feita de um material muito especial para mim, tem uma ligação profunda ao teu novo acessório – Disse, apontando para a grilheta do seu pescoço. – Desde que estejas a usar isso, não podes usar magia nem chamar o teu familiar.
- E o que planeias fazer então? Torturar-me?~
- Não – Respondeu, maliciosamente. – Ok sim, mas isso vem depois, antes tenho uma pergunta para te fazer.
- Força – Assentiu, sem escolha
- Sabias que é possível retirar o brasão ou, melhor, as criaturas dentro do brasão?
- Não, por acaso não, mas o que isso tem a ver? - Perguntou confuso
-Acontece que a pessoa que me contratou, adicionou ao pedido que eu te forçasse a abdicares do teu familiar, e em troca não faremos nada ao teu irmão ou a ti - disse desanimado.
-E que tal deixarmos de brincadeiras? Ver-te a fazer essas perguntas é como ver um ator de quarta categoria na sua estreia: doloroso, chato e uma perda de tempo – Acusou Bell.
-Nem me digas – Valak atirou-se às grades da cela, amarrando com as próteses metálicas duas das barras e com um olhar de louco por detrás daqueles óculos esquisitos. – Então serei direto.
- Independentemente de eu abdicar ou não do meu familiar, isso não vai mudar nada - concluiu Bell nada supresso.
- Essa parte é verdade. Contudo, se abdicares do teu familiar, não farei nada ao teu irmão. Bill, é assim que se chama, não é? – Acrescentou, com um ar pensativo, o cheiro forte invadiu a cela de Bell.
- Força, tenta – Respondeu, sem sequer pensar. – Tudo o que enviares vai voltar amassado ou aos pedaços.
- E se os meus bichinhos forem atrás dele? - perguntou com um sorriso de orelha a orelha
- Nesse caso, ele vai esmagá-los a todos, igual ao que te vai acontecer quando te encontrar.
- Como eu gosto... – Começou Valak, deixando a frase a flutuar. – ...Esse olhar de esperança de que tudo irá correr bem. Mas sabes o que eu gosto mais? – Começou com um riso cínico. – É de partir pedaço por pedaço essa esperança e de fazer sangrar a tua alma.
- Não me estás a subestimar – Encarou Bell, confiante.
- Não, tu é que ainda não sabes do que sou capaz – com um clique, Bell caiu no chão. As correntes libertaram-no, apesar de ainda ter as grilhetas presas às mãos.
Valak descolou-se das grades e virou as costas para Bell, ficando a contemplar a cela à sua frente. Bell não conseguia ver nada, porque Valak estava à sua frente, mas já estava à espera de que fosse outra pobre alma que não conseguiu fugir daquele demónio. Apesar de baixo, Bell conseguiu ouvir uma pequena gargalhada vinda de Valak, que, com toda a calma do mundo, desimpediu a vista de Bell, compartilhando com ele a dura imagem da realidade.
- Desfruta da paisagem – disse, despedindo-se. – Mas sabes, tinhas razão, eu estava a mentir.
Bell arrastou-se até às grades, desacreditando que o mundo pudesse ser tão cruel e que os seus olhos simplesmente estavam cansados demais para ver a realidade. Mas não, à sua frente estava um corpo pendurado por correntes, sem roupa e com a pele rasgada e mutilada em cada canto. Os pés ainda balançavam e, das moscas que andavam à volta, Bell podia ver uma fraca respiração. Com a boca cortada, metade da cara queimada e os vários fios de sangue seco que marcavam os braços, muito provavelmente pelas unhas arrancadas.
O corpo pequeno continuava a balançar e o chiar das correntes completava a atmosfera aterradora que inicialmente sentiu. Como era possível que, depois de tanta coisa, ainda não estivesse morto? Memórias começaram a vir ao de cima.
Primeiro, vieram os seus reflexos a chorar sangue e a suplicar por ajuda; depois, memórias de muito tempo atrás, de tudo o que viu na esquecida, e, por fim, a noite em que tudo ardeu. Sem dar por isso, já estava com o rosto encharcado em lágrimas e afastou-se das grades, tentando esquecer o que tinha visto, como se lhe fosse possível apagar aquela terrível imagem.
Não fazia sentido ela estar ali, a mesma pessoa que lhe tinha apresentado Merlot, a irmã de Kirja, a filha de Liam.
Catria era uma pessoa simples e doce, que passava os seus dias a tratar da floricultura dos seus pais e a vender as suas flores em Marlot e agora estava á sua frente. Uma pessoa que lhes tinha oferecido abrigo e orientação, eles haviam partilhado da mesma comida e o mesmo teto, e só por essa pequena interação este foi o destino que Deus lhe havia dado.
Será que no final de contas aqueles fies estavam certos, e este era o pagamento pelo seu pecado, pela blasfémia de insultar o deus daquele mundo?
Bell amarrou-se ás barras e abaixou a cabeça imaginando se liam saberia do fim que teve a sua filha.
*
Dentro de uma cela, num espaço tão pequeno e sem conexão com o exterior, Bell perdeu a noção do tempo. Não sabia que horas eram nem quantos dias tinham passado. A única coisa que lhe dava uma referência ao tempo eram as refeições, se é que se podiam chamar assim. Os guardas que passavam por ele simplesmente ignoravam-no ou desatavam aos insultos, a ele e a qualquer outro prisioneiro, mas principalmente a ele.
Mesmo com uma imagem daquelas à sua frente, Bell não mostrava sinais de ter perdido a sua sanidade ou a sua personalidade. Tentou por diversas vezes invocar Stella, mas era inútil, tal como toda a magia que aprendera, pelo menos enquanto tivesse aquilo agarrado ao pescoço
- Bom dia, meu amigo – cumprimentou Valak, antes de disparar algo a Bell por entre as grades. – É um sedativo, não te preocupes.
A seringa estava presa na coxa de Bell e, antes que a pudesse retirar, sentiu os efeitos do sedativo. Primeiro curvou-se, depois ajoelhou-se e, por fim, caiu estendido no chão.
-É um sedativo bem forte, sabes? Eu gosto de tomar precauções – explicou quando dois guardas entraram na cela.
-Nem penses que me apanhas duas vezes com a mesma – O grito de Bell surpreendeu o guarda.
Já estava com a mão colocada no ombro de Bell, quando este se virou de barriga para cima, apenhou-lhe o braço, torceu-o até o guarda se vergar ao nível do chão. Bell levantou-se com um pulo e, ao mesmo tempo, aplicou um pontapé ao guarda que o deixou inconsciente. Atacou o segundo guarda em seguida com as grilhetas, antes que tivesse tempo de desembainhar a arma. Tirou-lhe a espada da bainha e atirou-se a Valak. As suas mãos de aço foram o suficiente para partir a espada e, com um soco, atirou Bell para dentro da cela.
- É impressionante – comentou. – Sabes, este sedativo é um pouco mais potente que o da outra vez, mas, por algum motivo, o teu organismo adaptou-se muito rápido à dose anterior.
- E suponho que isso te cause alguns problemas – incitou Bell, ainda colado à parede.
- Deduzo que saibas usar magia de cura? - perguntou visivelmente interessado
-E se souber?
- Sabes, de acordo com as minhas pesquisas, o organismo dos magos capazes de usar magia de cura tem uma capacidade superior à dos magos especializados, quando se trata de adaptação. Com certeza o teu organismo aprendeu a defender-se contra os meus sedativos – Valak sorriu. – Pode-se dizer que tens uma certa resistência a venenos.
- Porque os teus sedativos têm origem em venenos sintéticos, não é? – chutou Bell.
- Sim,SIM, SIM como soubeste? - Perguntou muito animado
- Suspeitei, mas tens outros problemas em mãos não achas?
-Meu amigo, há mais do que uma maneira de o agricultor cultivar o seu milho – respondeu numa voz enigmática.
- Hã???
- Como não te posso privar de comida ou água, considero que isto seja um desafio e não uma dificuldade.
-Porque não me podes privar de comida e água? – interrogou Bell, depois de desistir da resposta que Valak lhe tinha dado antes.
-Porque os teus gritos não soariam tão bem – ameaçou numa voz falsamente gentil, porém bastante convincente.
-Os únicos gritos que se ouvirão aqui vão ser os teus – avisou Bell. – Quando o Bill chegar, vai partir cada uma destas paredes até chegar a ti e, se ele não chegar, chego eu.
- Estamos cheios de vida, não estamos? – riu-se Valak. – Sabes, eu queria esperar um pouco mais antes de te mostrar a surpresa que tenho guardada para ti, mas não aguento – disse cheio de entusiasmo.
- Uma surpresa? - repetiu Bell desconfiado
- Sim, é como se fosse um ritual de boas-vindas – disse, quando outro guarda arrastou outro prisioneiro para a cela de Bell. Porém, este estava com um pano por cima do seu corpo.
O guarda empurrou o prisioneiro para dentro da cela e Valak ordenou que ele se virasse para ele. Este bateu contra as grades em desespero e Valak entregou-lhe algo para as mãos antes de ele se virar para Bell e Valak lhe retirar o pano de cima.
Bell levantou-se com um sobressalto ao ver duas crianças siamesas, unidas pela cabeça e pelo tronco, diante dele. Ambas seguravam uma faca, com as lâminas tremendo nas suas pequenas mãos. O olhar de Bell se fixou em Valak, sentindo uma repulsa crescente ao perceber as várias suturas que percorriam o corpo das crianças, como se a carne tivesse sido remendada com crueldade. Valak, com um sorriso sádico, sussurrou algo ao ouvido da criança antes de ela começar a avançar na direção de Bell, a faca apontada diretamente para ele.
— Por favor, moço, não me odeie... — a criança implorou, quase a chorar. — Eu só preciso proteger a minha irmã! - disse com as mãos a tremer enquanto segurava na faca.
Bell percebeu rapidamente a manipulação de Valak. O demónio esperava que ele cedesse ao desespero, pela semelhança entre a sua situação e a daquela criança. Mas Bell não era tão fácil de derrotar.
— Ele vai dar a minha irmã de comer aos cães se eu não te matar... por favor!
Bell, com um movimento rápido, desarmou a criança e a faca caiu ao chão, fazendo-a desabar aos seus pés em lágrimas. Ele não se deixou abalar.
— Valak, o que achas de um jogo? — perguntou Bell com um sorriso tenso, desafiando o demónio.
— Um jogo? — Valak sorriu com malícia. — Acho que é algo bastante intrigante. Continua.
— Vamos jogar três rodadas de cara ou coroa. A cada vez que eu perder, tu me dás uma facada. Se eu me ajoelhar, tu matas a irmã dele na minha frente.
— Gosteiiiiiiii!!!!!! — exclamou Valak, excitado com a ideia. — Vamos ver como te sais.
Valak tirou uma moeda do bolso e a estendeu a Bell, equilibrando-a sobre o polegar.
— Cara — escolheu Bell com firmeza, quando Valak lançou a moeda ao ar.
No instante em que a moeda caiu, a faca cravou-se no seu pé com um estalo seco. Bell não pôde fazer nada, a não ser apertar os punhos com força, lutando contra a dor. Para sua surpresa, a moeda saiu coroa. Valak, com um sorriso triunfante, havia sido antecipado.
Novamente, Valak lançou a moeda ao ar. Desta vez, a faca cravou-se no joelho de Bell. Ele gemeu baixinho, mas manteve-se firme, os dentes cerrados e os olhos fixos no demónio. A dor não o faria ceder.
Faltava apenas uma rodada, mas Bell já sabia como Valak faria a sua jogada. Quando a moeda estava quase a tocar o teto, Bell, num movimento rápido, atirou a faca que tinha retirado da criança. A lâmina cravou-se na moeda, fazendo-a parar instantaneamente no teto, com a face da cara virada para eles. Valak parou, atónito, e a faca que tinha na mão caiu no chão enquanto ele se riria descontroladamente.
— Finalmente alguém que sabe brincar — Valak disse, entre gargalhadas. — Anda, puto, podes sair. A tua irmã já está aqui à tua espera, de qualquer das maneiras.
A criança, visivelmente aliviada, sorriu para Bell, sentindo uma imensa gratidão por ele ter se submetido a tanto, mesmo sabendo que o objetivo de Valak era usá-la para matar Bell, tudo para proteger a própria vida dela.
A criança correu para fora da cela com o primeiro sorriso genuíno, antes de Valak deixá-la passar, em direção à sua irmã. Para surpresa de Bell, a irmã também era uma criança siamesa, mas bem tratada, com um vestido vermelho e sapatos caros. Quando o irmão se aproximou para a abraçar, ela saltou para cima dele, de braços abertos, derrubando-o com um impulso inesperado.
Bell sentiu-se um pouco mais tranquilo, imaginando que, sendo Valak a pessoa que era, não ficaria surpreso com ele matar as crianças à sua frente. Mas o que realmente o deixou boquiaberto foi o que aconteceu em seguida: a irmã da criança, com um sorriso misturado com lágrimas, atacou o irmão com uma tesoura, esfaqueando-o repetidamente. A expressão dela era uma mistura distorcida de dor e prazer. Quando o rapaz deixou de se mover, a garota virou-se para Valak, ainda com as mãos a tremer.
— Eu matei-o, pai... ele está morto. Então, eu sou uma boa menina, não sou? — perguntou, com uma voz trémula, mas satisfeita.
— Sim, uma ótima menina — respondeu Valak, com um sorriso satisfatório, enquanto segurava a criança pelos ombros e olhava diretamente para Bell. — As crianças que obedecem aos pais são sempre boas crianças, não achas?
Bell sentiu um nó no estômago e tentou conter a vontade de vomitar, mas nada fez quando Valak, com um gesto indiferente, voltou a fechar a cela e desapareceu com a criança, enquanto um guarda arrastava o cadáver do irmão para fora da vista de Bell.
Bell estava chocado, mas não queria dar a Valak a satisfação de vê-lo desmoronar. No entanto, uma onda de frustração o invadiu. Ele estava preso naquela cela, impotente, sem poder fazer nada para impedir aquela crueldade.
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