Capítulo 21: Unidos pelo acaso
O grupo dirigiu-se para um quarto com apenas duas camas, Doreán sentou-se em uma das camas e convidou os irmãos a sentarem-se na outra ao contrário de Trei e Elliot que preferiram ficar de pé. As horas foram passando á medida que Doreán explicava aos irmãos que caminhos iriam adotar para alcançarem a cova dos uivadores, se tudo corresse conforme o plano de Doreán a viagem não demoraria mais de um dia.
O que cada um levaria em suas mochilas foi também um dos assuntos que Doreán achou importante referir, nenhum deles deveria manter nada escondido dele ou levar coisas contra a sua ordem, uma vez que seria um risco caso o grupo fosse localizado por uma matilha de farejadores só porque um deles decidiu levar alguma comida escondida dos restantes. A única comida que poderiam levar com eles seria uma comida pré-preparada por Elliot, sem cheiro, sem sabor, até mesmo sem cor, e por isso indetectável aos olfatos apurados dos farejadores. Doreán insistiu também que todos deveriam se lavar, para apagar qualquer traço que possibilitasse aos farejadores de os localizar.
A disposição do grupo foi um dos assuntos que Doreán mais demorou a explicar, atribuindo a cada um uma tarefa específica, Elliot ficaria encarregado do reconhecimento, Trei cuidaria da retaguarda para evitar uma emboscada, e contrariamente aos restantes Bill e Bell só precisavam de ficar entre Trei e Doreán sempre a postos para um ataque surpresa. Bill encarou a ideia com desânimo, o que ele queria na verdade era um pouco de ação, mas tirou rapidamente essa ideia da sua cabeça quando Elliot se ofereceu para trocar com ele.
Depois de tanto planear o grupo começou a preparar o material que seria necessário como comida, água, algum armamento que tinha sido colocada na sua maioria na cela do cavalo de Doreán, uma bússola para não se perderem e várias esferas pequenas, que se acendiam com uma luz esverdeada ao som do estalar dos dedos. Bell ficou muito impressionado com o pequeno objeto encantado mesmo depois de perceber como funcionava.
Para chegarem ao vale das montanhas era importante por outra cidade depois da cova dos uivadores. Além disso era sempre bom ter um destino alternativo e um plano de reserva caso algo corresse mal, segundo Doreán quase que perdera o braço por não ter um plano de reserva.
Depois do plano definido Elliot e Trei retiraram-se deixando os irmãos sozinhos com Doreán que passou mais algum tempo a definir algumas regras, caso contrario ele não se responsabilizaria por aquilo que Elliot fizesse. Bell levou as mãos ao pescoço lembrando-se da atitude de Elliot assim que o viu, já Bill ficou animado com a possibilidade de lhe tirar aquela expressão indiferente, para Bill era como se Elliot se julga-se superior a todos.
-Doreán como eu sei que podemos mesmo confiar em ti - mesmo aceitando que eles precisavam deles, ainda não estava confiante de que Doreán não se iria livrar deles depois de tudo estar terminado.
-Bill!!
-Podes dizer o que quiseres Bell mas palavras e intuição não são o suficiente para mim - Confrontou Bill mostrando o seu ponto de vista.
-Deixa estar Bell - Ordenou Doreán enquanto arregaçava as mangas da roupa, e desenrolava as diversas ligaduras que enfaixavam o braço - Sabes tens razão Bill, palavras não são provas para mostrar que estamos do mesmo lado, sendo assim - Disse a medida que ia desenrolando as ligaduras do braço - Deixa-me mostrar-te o que um nobre me fez.
-O que é isso? - Perguntou ao ver o braço esquerdo deformado por camadas de cicatrizes, queimado em vários lugares, algumas partes pareciam ter sido derretidas e outras arrancadas.
Bill levantou-se repentinamente com o estômago às voltas.
-Isto foi o que um nobre me fez depois de matar a minha mulher e o meu filho - Bill olhava com horror para Doreán os seus olhos eram frios, a face rígida e o braço apesar de se mexer estava mais pra morto do que vivo - No meio da rua, em pleno dia, e uma plateia de pessoas a ver, e nenhuma delas teve a coragem de o impedir.....sem consequências....sem justiça
-Porque? - Perguntou num sussurro
-Segundo ele porque o meu filho recém nascido não parava de chorar e a minha mulher porque o tentou impedir de o matar e eu porque simplesmente lhe apetecia.
-Não acredito, como é que não estas chocado com isto - Gritou ao irmão, lembrando-se do que aconteceu na esquecida, nada poderia ser mais traumatizante que aquilo, então porque se tinha assustado.
-Eu vou vos ser sincero - Existem uns rumores sobre uma guilda que está contra os nobres.
-Isso é possível?
-Sim Bell nem todas as guildas sentem a necessidade de lamber as botas dos nobres para conseguir dinheiro.
-E onde fica exatamente? - Perguntou Bill recuperando a voz.
-Ninguém sabe, eles é que vem ter contigo, no entanto precisas de ter uma licença para te juntares a eles.
-E porque tínhamos de ser logo nós, não podiam arranjar outras pessoas para vos ajudarem? - Questionou Bill.
-Neste mundo apenas podes confiar em alguém que passou por uma experiência como a tua, eu tive as duas coisas mais importantes da minha vida roubadas de mim e vocês viram a vossa cidade a virar cinzas.
-Como...
-Achas mesmo que não iria desconfiar de dois rapazes que aparecem nesta cidade sem saberem de nada logo após uma das esquecidas ter ardido – Afirmou em um tom áspero.
-Visto dessa forma - sussurrou Bell para si próprio.
-Mas porque ir para Eleia? - Questionou Bell tirando os olhos do braço de Doreán.
-Eleia é um dos poucos lugares que esta fora da jurisdição da nobreza.
-Bem é verdade que é uma proposta interessante - refletiu Bill - Mas se há alguma hipótese de prejudicar todos os nobres podes contar comigo - disse muito entusiasmado.
-Bem eu não posso ajudar ninguém se me refugiar em um lugar longe de tudo e todos.
-Vocês sabem um pouco sobre mim e eu sei um pouco sobre vocês, sei que também odeiam os nobres - Os irmãos acenaram afirmativamente com a cabeça - Agora digam-me que tal se juntarem a nós permanentemente - Doreán esticou o outro braço para os irmãos e Bell não pensou duas vezes em apertar-lhe a mão seguido de Bill.
-De qualquer das formas não pareces um tipo mau - elogiou Bill.
-Olha mas quem diria, este pequeno também sabe dizer umas coisas acertadas - Doreán voltou-se para a porta e antes de sair voltou se mais uma vez para os irmãos - sabem acho que nos vamos dar muito bem - e saiu sem mais uma palavra.
Fora da porta Doreán voltou a olhar para o seu braço pensativo.
-"É apenas uma criança" - Eram as últimas palavras da sua mulher - Não vou deixar que mais nenhuma criança morra Lirin.
Iluminados pela lua e pela esfera luminosa que brilhava mais intensamente do que antes, só o seu brilho era suficiente para iluminar tudo o quarto, uma tarefa não muito difícil devido as reduzidas dimensões do mesmo.
Pela primeira vez naquele dia Bill e Bell sentiram o peso da fadiga e do cansaço, enquanto iam dormindo a noite ia ficando mais noite, a rua ia ficando mais vazia e o ressonar dos dois irmãos ia aumentando á medida que se entregavam aos seus sonhos.
Doreán voltou para trás para os levar a um quarto que estivesse inteiro, mas não esperava ter de carregar duas pessoas que acabara de conhecer naquele dia, porem fez isso com um sorriso sincero.
*
A noite já ia alta quando a porta do quarto dos irmãos se abriu invulgarmente devagar. Uma figura pequena e encoberta entrou no quarto a passos silenciosos, o brilho fugaz da luz nas suas laminas revelou as suas intenções, a pequenos passos aproximou-se de Bill.
Os lençóis puxados para trás, a almofada caída no chão, e um rapaz que sonhava livremente com a boca demasiado aberta, em outros casos esta poderia ser uma cena cômica, mas a lâmina erguida sobre a cabeça do vulto trazia outra atmosfera á cena. A lâmina cortou o ar com um silvo rápido parando nem a meio do percurso, interceptada por uma garra vinda das sombras, com apenas dois dedos segurou na lâmina como se nada fosse e ainda mais sem fazer um único som preservando o sono do seu mestre. Muito lentamente o seu corpo foi saindo das sombras com os seus olhos verdes e o seu enorme corpo peludo, Crainer cobriu o intruso com a sua sombra observando-o muito quieto.
A figura á sua frente não pareceu ficar intimidada pela presença do familiar e voltou a atacar com um golpe em meia-lua que foi travado por Crainer da mesma forma do anterior, e assim se seguiu mais alguns ataques antes da figura desistir de atacar Bill, visivelmente bem protegido. Sem muitas possibilidades de o atingir, mudou de alvo e arremessou uma faca contra o outro jovem que dormia profundamente, investiu novamente contra Crainer sabendo que ele apenas poderia proteger um dos dois. O seu plano voltou a falhar, uma flecha acertou na sua faca envolvendo-a em uma bolha desintegrando-a em um instante. Stella já tinha uma flecha preparada para a figura caso esta tenta-se voltar a atacar, o inimigo afastou-se dos dois familiares a sua missão havia-se complicado, estava agora envolvida numa luta de dois contra um e a sua possibilidade de ganhar sem fazer barulho e realizar uma execução perfeita eram remotas.
Stella disparou assim que viu uma abertura e como se nada existisse a flecha atravessou o quarto e cravou-se, não na pele e sim na roupa que aquela pessoa trazia consigo, o tiro foi perfeito e a flecha transformou-se em várias cobras brancas que cercaram a figura e a imobilizaram em pé.
Crainer esticou os braços para descobrir quem se escondia atrás daquela roupa, ficou surpreendido quando o corpo se desfez em inúmeros papéis retangulares que se espalharam pelo chão. Intrigado pegou num dos papéis, não apresentava nenhuma característica que o destingisse de qualquer outro pedaço de papel e o inimigo com que estiveram a lutar antes tinha desaparecido deixando aquele monte de papel para trás.
De súbito Crainer sentiu todos os seus músculos a contraírem-se, ficou imóvel por alguns segundos antes de desaparecer deixando cair o papel que estava a segurar e que agora apresentava tal como todos os outros várias linhas que brilhavam e emitiam uma luz púrpura que afetou Stella da mesma forma que a Crainer, não tardando a desaparecer.
Os pedaços de papel voltaram a juntar-se quando Stella desapareceu formando a estrutura de um humano desta vez desprovido das inúmeras camadas de roupa. Usava apenas um casaco preto longo e uma máscara de corvo, esticou as luvas brancas e retirou de uma das suas mangas mais uma faca que equilibrou num único dedo, e esperando que a gravidade fizesse o trabalho por si, esperou que a lâmina se inclinasse para a vítima que atacaria primeiro. Bell foi o infeliz contemplado e o assassino já se preparava para o degolar quando sentiu algo encostado às suas costas, a ponta fria e robusta do cano de uma arma de fogo. Apostando na sua sorte o assassino virou-se subitamente, mas Elliot abriu quatro buraco no seu peito e ainda cortou o seu pescoço antes do invasor se desfazer em corvos.
-Eu sabia que não os odiavas assim tanto - sussurrou Doreán da porta aberta, com um sorriso.
-Seria problemático conseguir a licença sem eles - Respondeu Elliot dirigindo-se para a porta ainda com a arma na mão - Foi unicamente por isso.
-Convence-te disso mas acho que tal como o Trei os vais achar bastante intrigantes - disse com um ar presunçoso.
-Duvido - Respondeu rispidamente antes de passar por ele - São apenas duas crianças, uma mais ingênua que a outra, e a outra mais impulsiva que a primeira.
-Suponho que seja o Bell e depois o Bill - Encorajou Doreán com um ar de riso - não podes pelo menos decorar os nomes deles.
-Para que? Não é como se fossem durar muito de qualquer das formas.
-Disses te o mesmo do Trei a anos atras - relembrou Doreán.
-O Trei é diferente..... - Defendeu-se Elliott.
-E eles também podem ser diferentes - comentou Doreán sem perceber a relutância de Elliot
-Doreán não te faças de idiota...olha para eles - disse apontando o cano da arma para Bill - são apenas crianças entusiasmadas por uma aventura, fascinados para conhecer um mundo novo, queres mesmo que eu acredite que estes dois vão lutar por algo sem serem eles?
-Estas a ser muito precipitada, nem os conheces direito - argumentou Doreán com uma postura mais séria.
-Precisamente, quantas vezes já vimos esta historia, são covardes que ao primeiro sinal de perigo vão correr com o rabo entre as pernas, são pessoas sem determinação, são fracos, são ingênuos e são....
-Crianças Elliott , são crianças - Sublinhou Doreán
-Eu também era uma criança....mas isso não impediu a minha família de me caçar como a qualquer outra presa - Contra pós levantando um pouco a voz.
-A vossa historia não é tão diferente como pensas - a resposta de Doreán apanhou Elliott de surpresa - Sabes, eu vejo um pouco de mim neles, assim como vi em ti quando te encontrei....lembras-te?
-Quem se lembra de uma coisa dessas - resmungou Elliot baixinho.
-Eu lembro....em meio á neve e arvores secas...uma criança chorona e ranhosa, perdida e assustada....com medo do mundo - recordou nostalgicamente.
-Tu apegas te demasiado as pessoas, não vai ser surpresa alguma quando eles te desiludirem - afirmou saindo do cômodo
-Elliot!! - Chamou Doreán num sussurro, mas não obteve resposta
A noite passou num ápice para Elliot que ficou de vigia juntamente com Doreán fazendo turnos entre si . Doreán dormia profundamente quando Elliot se levantou, as mochilas já estavam preparadas e já tinha feito duas vezes o inventário, só faltava acordar Trei e os irmãos. Elliot já conhecia Trei á bastante tempo e sabia muito bem como o acordar. A primeira coisa que pensou ao entrar no quarto foi que tinha um enorme javali no quarto de tão alto que era o ressonar de Trei. Dirigiu-se há mesa de cabeceira ignorando o barulho das tábuas de madeira a chiar, tirou uma chave do bolso e abriu o cadeado da terceira gaveta a contar de baixo. Mesmo depois de destrancada a gaveta não quis abrir, estava encravada em qualquer coisa, recuou com a gaveta diversas vezes procurando um jeito certo de a soltar, voltou a fechar a gaveta antes de dar um forte puxão que a tirou do móvel. Elliot sentiu um cheiro forte vindo de dentro da gaveta. Retirou um pequeno saco do seu interior e tirou algo de lá de dentro. Elliot passou uma pequena esfera pelos seus dedos finos antes de atirar com toda a força em direção ao chão. O efeito foi imediato, Trei saltou da cama enjoado e saiu a correr do quarto com as mãos a tapar o nariz.
-Bom dia Elliot - Cumprimentou Trei ainda com as mãos á frente da boca - porque continuas a acordar me assim.
-Porque é a única maneira que acordas - justificou-se antes de lhe passar um cantil com água - Toma vai ajudar a passar o enjoo.
-Obrigado - Grunhiu Trei aceitando o cantil com uma expressão de nojo.
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