20 . Nutrição
Às vezes, eu frequentava a casa do Rafa durante a noite. Nós dois falávamos sobre todo tipo de assunto: filosofia barata, extraterrestre, religião, conspiração, RPG, guerras, mulheres e sexo. Ele me mostrava muita música japonesa. Eu detestava e não fazia questão de esconder isso. Os animes eram legais, mas o som desses vocalistas japoneses eram alegres, e isso me enjoava.
Estávamos no quarto dele, onde havia poeira, roupas até no teto, folhas pelo chão e uma cama ortopédica, devido a coluna curvada dele. Eu gostava desse cara, porque mesmo sendo um gordo corcunda, ele tinha uma super autoestima que beirava arrogância. Ele nunca pagou de coitadinho. Ele não tinha pena do ser humano, mas adorava criar animais.
— E aí? Como vai a Andressa? — me referi a garota lésbica da nossa sala.
— Estamos bem. Gosto dela. E você? Com suas mil e um concubinas?
Gargalhei.
— Estou sozinho.
— Por enquanto. Mas eu sei que você tem algumas putas em mente?
— Na verdade tem uma. Mas não sei se ela é puta, se fosse, seria melhor.
— Eu conheço?
— Nem eu conheço. Ela me adicionou no Face. Toda vez que vou pra lan house, falo com ela. Ela já me mandou uma foto só de sutiã. Isso foi do nada.
— Então ela quer trepar contigo!
— Talvez.
— Como é o nome dela?
— Erika Paz.
Ele gargalhou por um bom tempo. Fiquei olhando.
— Que porra de sobrenome é esse?! — ele perguntou, ainda rindo.
— Tu é muito escroto.
— Tu é pior. Ela é bonita?
— Nem tanto. Tem um corpo legal. Vou me encontrar com ela amanhã à noite, marquei lá na praça do Norte Shopping. Ela vai do trabalho.
— Olha aí, tu é safado. Vai explorar ela!
Gargalhei.
— E ela é mais velha, viu? 23 anos. Faz faculdade de nutricionismo na FIC e trabalha no HapVida.
— Caralho! Ela já é uma senhora. O que ela quer com um merda feito você?
— Me perguntei a mesma coisa. Ela disse que gostava de caras altos. Talvez seja isso.
— Puta que pariu! Vê se tu não estraga a vida dela.
— Vai te foder!
— O que ela faz no Hapvida?
— Não sei, acho que ela é recepcionista.
No dia seguinte, eu estava sentado no banco da praça à quilômetros de casa, esperando a Erika e fumando um cigarro. Essa praça era um novo ponto de encontro para jovens desajustados que não iam mais para o Dragão do Mar. Enquanto esperava, fiquei observando o movimento de meninas com pernas torneadas.
Vi uma figura branca surgindo no horizonte, e vindo na minha direção. Era a Erika Paz. E aquela brancura nada mais era que um jaleco hospitalar. Ela usava um óculos fundo de garrafa, o cabelo preso, com uma fina franja cobrindo a testa larga.
Acho que ela não é recepcionista, pensei.
Abracei ela e beijei seu rosto.
— Nossa! Estava louca para sair do trabalho e vim te ver.
— Você já trabalha como nutricionista?
— Ainda não, sou estagiária. Fico só no laboratório.
— Vamos dar uma volta por aqui?
— Vamos.
Caminhávamos em silêncio. Aproveitei esse momento para criar suposições sobre ela: se ela estuda e trabalha, ela será a garota mais independente que irei me envolver, interessante. Voltamos a conversar. Ela tinha um sorriso forte e um olhar que sugeria insinuações.
— Aqui tá cheio de adolescentezinho. Você é que nem eles, né? — ela disse.
— Do que você tá falando?
— É revoltado, briga com os pais, bebe, fuma e usa drogas escondido.
— Não faço nada escondido. E não uso drogas.
Ela se virou com os olhos brilhando e com um sorriso enorme.
— Não usa?!
— Bem... Eu só bebo e fumo.
O semblante alegre murchou.
— É, fazer o quê?!
Nos sentamos novamente, ela tirou o jaleco que cobria ela. Começamos a falar sobre relacionamentos passados, no caso, os dela. Com quem morávamos e onde morávamos. Descobri que a casa dela era perto dali. O pai era ex-militar, a tia era alcoólatra e vivia brigando com ela. Tinha ex-namorados que fugiam da conta. Depois de muito papo furado. Nos beijamos. Ela tinha uma boca grande, que encaixava muito bem com a minha.
Não passou disso, foram beijos, beijos e beijos. Depois fui pra casa.
Ela é legal, eu pensei.
Certo dia, tivemos uma conversa estranha pela caixa de mensagens do Facebook:
"Tem um cara aqui, que não para de me encher o saco. Eu disse para ele que eu tinha namorado, mas ele não acredita. Me faz um favor?" — Erika Paz.
"Pode dizer." — Caio Bastos.
"Hum... Você pode me marcar em um relacionamento sério com você? Mas se não puder, sem problema. Só quero que ele veja e me deixe em paz." — Erika Paz.
Opa! Isso era um pedido e tanto. Pensei um pouco sobre como meus amigos veriam aquilo. Taquei o foda-se.
"Beleza, não tem problema." — Caio Bastos.
Fui no meu perfil, alterei algumas configurações e pronto:
"Caio Bastos está em um relacionamento sério com Erika Paz"
A notícia rendeu algumas curtidas e comentários do tipo: Caio? Namorando?
"Obrigada, Caio. Quando ele ver isso, não vai me perturbar mais." — Erika Paz.
Um dia se passou, dois, três. E quando acessei meu Face, o meu "relacionamento sério" ainda estava lá.
Erika Paz está digitando...
"Se você quiser, já pode tirar." — Erika Paz.
Agora, isso era escroto! Me parecia palhaçada, o que eu diria se alguém perguntasse? — ué, a verdade, é claro! — Aquilo não era sério, então dei de ombros.
"Deixa desse jeito mesmo, não tenho problema com isso." — Caio Bastos.
"Então, tudo bem" — Erika Paz.
Nos encontramos algumas vezes, e pessoalmente, oficializamos um compromisso. No início, pensei muito em todas as minhas teorias sobre relacionamento. E esse namoro inesperado fugiu completamente de tudo que eu acreditava. Eu não amava ela, longe disso. Não tinha como eu amá-la, mesmo achando ela uma mulher foda, que buscava um futuro promissor.
Resolvi namorá-la, já pensando no término da relação. Se eu era escroto por isso? Lógico que sim. Mas ela poderia mudar isso no meio do caminho. Porque naquele momento, eu deixei de lado minhas teorias e coloquei um namoro em prática. Ela já entendia muito do assunto, ou não, porque segundo o que ela dizia, todos os caras terminaram com ela. Já eu só sabia de uma coisa: tentar ser fiel, e se eu não conseguisse, contaria tudo pra ela.
Logo o Rodrigo e a Evelyn quis conhecê-la. Parecia algo inacreditável para a maioria dos meus amigos. Marquei um encontro com ela e levei os dois. A noite seguiu com muita conversa jogada fora. E depois que a Erika foi embora, eu e meus amigos começamos a falar sobre ela.
— Então Evelyn, o que achou dela? — eu quis saber.
— Ela é muito legal. Você não merece ela.
O Rodrigo rasgou uma gargalhada.
— Porra! É por isso que eu gosto da Evelyn, ela é amiga de verdade!
— Beleza, eu sei que eu sou um vagabundo sem expectativas de vida, mas podemos tentar.
— Sinceramente, eu não sei o que ela viu em tu — ela continuou me esculachando.
— Eita! Tu quer acabar comigo, mesmo?
— Não é isso. Ela não é outra menina maluca que fica contigo e transa em uma noite. Ela quer algo sério. Um futuro! E logo, contigo? Você não serve pra isso.
— Você tem razão. Não vivo de futuro, e sim do presente. Beleza, mas vou levar isso adiante. Quero saber como é um namoro na prática.
— Espero que ela sobreviva — ela concluiu.
— É, Caio. Talvez você consiga — o Rodrigo disse.
Não demorou para a Erika adicionar os meus amigos mais próximos, no Facebook. Ela vinha para o Conjunto Esperança, ficávamos na praça do polo. Ela e a Evelyn criaram uma intimidade interessante, talvez, até amizade. Depois os laços com o Rodrigo aumentaram. Já o Leo, o mais reservado, ela agia com simpatia. Conheceu a Eva, o William e o Felipe.
Ela apertou o cerco e ganhou a simpatia de todos. Menos de dois amigos meus. Um deles agia com diplomacia e respeito, o Felipe. Já o Raphael chegava a esculachar meu namoro, dizendo que eu desistiria mais cedo ou mais tarde.
A primeira vez que a Erika foi dormir lá em casa. Minha mãe não estava. Expliquei como ela chegaria no meu bairro e esperei ela na parada de ônibus. Quando nos trancamos sozinhos. Peguei ela de jeito e joguei ela no sofá azul. O amasso começou, quando subi a blusa dela, tomei um susto.
Ela estava usando um maiô de praia preto.
— O que é isso?
— Minha proteção contra você.
— O quê?! Como assim?
— Não vamos fazer sexo.
Puta que pariu! Deus! Que merda era essa! Todo esse tempo, eu tinha sido preconceituoso, achando que por ela ser uma garota de 23 anos, sexo não seria um problema, ainda mais agora, que estávamos namorando. Qual seria o problema com sexo? Depois de mil ex-namorados! Porra! Preconceito puro! Mas eu queria entender o lado dela.
— Por quê?
— Eu quero fazer amor. Só vou fazer isso com você, se tu falar que me ama.
Puta que pariu, de novo! Certo! Ela só queria ouvir uma mentira. Algo que tenho extrema dificuldade de fazer. Dizer: "Eu te amo!" Porra! Isso foi golpe baixo. Não serviria: Quero te comer? Vamos transar? Eu quero um boquete?
Não me entendam mal, posso sim, ser romântico, mas não um mentiroso. Eu teria que amá-la para dizer um "Eu te amo!", e ainda assim, não me sentiria confortável falando isso. Era um clichê grotesco de casais que não sabiam explicar como se sentiam.
A noite se prolongou sem sexo e sem a frase que ela queria ouvir.
Isso foi um dos nossos primeiros desentendimentos. Eu estava seco, querendo trepar; e ela seca, querendo ser iludida. As noites se resumiam com ela se esfregando em cima do meu pau, e eu tentando segurar a frase entalada na garganta.
Quando finalmente decidi falar, eu fui calculista: não diria a frase do capeta durante um momento íntimo, pois iria parecer que só falei aquilo para transar, o que seria verdade, pois estava sendo chantageado. Então eu falei em um dos nossos encontros em local público. Já no final, quando esperávamos o ônibus dela chegar.
— Por favor! Eu estou enlouquecendo! Preciso transar, contigo!
Abracei ela.
— Você sabe o que tem que fazer. Ou melhor, dizer! Por que isso é tão difícil? Você não me ama, né?
— Na verdade, eu já disse tudo o que eu sinto por ti. Mas Erika, a palavra amor é muito pesada, ela resumi tudo e não diz nada.
— Não entendi —, ela inclinou a cabeça de lado.
— No início, foi tudo muito rápido. Me senti pressionado em dizer isso, nunca falei isso pra ninguém. Até pra uma menina que merecia ouvir, eu não disse.
— E ela merecia, por quê? — Nosso abraço se desfez, e ela cruzou os braços.
— Eu sentia algo forte por ela.
— Algo forte? Isso não diz nada.
— Eu sei. E é por isso que eu evito falar "eu te amo" sem saber o que sinto. Seria injusto comigo e com você.
— Mas pode falar! Vamos construir o nosso amor juntos, mas para que isso aconteça, precisamos acreditar nele, juntos. — Os olhos dela grudaram nos meus.
— Eu estou aprendendo muitas coisas com você.
— Sério? — Ela sorriu.
— Sim, eu posso aprender a te amar.
Nos beijamos.
— Eu te amo — ela falou.
— Eu também te amo — eu menti.
Vi os olhos dela brilharem. Porra! Aquilo era estranho. Por que ela fazia tanta questão de ouvir aquilo? Ela sorriu.
— Posso ir na sua casa amanhã?
— Depois do trabalho? — perguntei.
— Sim, quero dormir lá.
— Tudo bem, minha mãe não vai tá lá.
O ônibus dela chegou. E ela saiu com um sorriso estampado na cara.
Sozinho, acendi um cigarro. Evitava fumar perto dela, porque a Erika sempre reclamava de bebida e cigarro. Eu continuava bebendo, e às vezes, ela perguntava sobre esses hábitos aos meus amigos, e eles confirmavam, e eu também confirmava. E no final, ela ficava puta da vida.
Vendo a fumaça subindo, pensei na merda que fiz. "Eu te amo" Pronto, desgraçada! Se a Erika fazia tanta questão, e eu morria explicando, mas ela não entendia o meu lado, tive que me render. Amanhã vou transar, eu pensei. Vou matar esse atraso! Até ali, toda vez que eu transava, eu matava um atraso. Mas agora, seria diferente. Um boceta fixa me ajudaria a exercitar o melhor da vida: trepar!
As circunstâncias da vida eram engraçadas. Formulei teorias para quebrá-las. Me senti afundando. Se eu tinha valores, já eram poucos; e eu continuava desvalorizando o restinho que faltava pra mim.
Se até aqui, você foi capaz de enxergar as minhas contradições. Você percebeu o óbvio. Eu sou um ser humano. Não sou falho, muito menos correto. Sou apenas uma máquina de carne. Mil vezes um animal! Sem aquele sentimento ilusório de que somos especiais.
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