17. Gritos de Guerra
Continuei indo quase todos os sábados para o Dragão do Mar. O Felipe ia cada vez menos. Ele arrumou um emprego como recepcionista numa clínica psiquiátrica. Comecei a me envolver mais com o Rodrigo, o Leo e a Evelyn. Logo descobri que ela tinha uma irmã mais nova e gostosa, uma tal de Eva Bastos, a chatice era que essa Eva era muito nova. 13 anos seria muita canalhice, até para mim.
Além disso, houve algumas matérias jornalísticas sobre o Centro Cultural Dragão do Mar. Inclusive, eu apareci com o rosto borrado pela edição do vídeo, vomitando no meio da praça. Era o mesmo dia em que conheci a Santa do Banheiro Químico.
A voz do apresentador de programa policial dizia:
— Esse jovem apresenta sinais de embriaguez.
E pah! Eu me inclinava para frente e o mel preto caía no chão. A matéria era sobre menores de idade consumindo álcool e se drogando em um ponto turístico da cidade. As mães dos meus amigos assistiram e perguntaram a eles: "Ei, esse aí não é o teu amigo de cabelo espetado?" E eles respondiam: "O Caio? Lógico que não!" Bando de miseráveis! Quando ouvi isso deles, me senti como Jesus sendo negado por Pedro três vezes. E como Jesus, eu os perdoei.
Depois dessa matéria, o Dragão esvaziou-se completamente nos sábados. Muitos filhos foram proibidos de pisarem lá. Ainda persisti um pouco, mas depois não teve jeito. Com o movimento fraco, a diversão enfraquecia. Eu conhecia menos gente e bebia menos. Então a solução foi beber mais perto de casa.
Comecei a frequentar o Polo do Conjunto Esperança. Toda noite, eu saía com o Rafael do Parque Santana e íamos beber vinho com o Leo, o Rodrigo e a Evelyn. Conheci alguns frequentadores da praça, onde havia uma quadra de basquete de frente para um palco enorme. Alguns diziam que era o maior palco público da américa do sul. Nunca procurei pela veracidade dessa informação, mas sempre achei que era um exagero de moradores orgulhosos.
E foi nesse palco fodão que rolou diversos eventos, a maioria de igrejas evangélicas ou católicas. Mas um pessoal do rock resolveu se organizar e preparar um festival com bandas autorais de Fortaleza. Duas dessas bandas eram do Conjunto Esperança, Os Urubus e a Banda Teoria. A primeira se arriscava no Punk e a última em um Pop Rock que beirava o MPB.
E tudo aconteceu numa sexta-feira, eu saí do colégio A, fui direto pra casa, me arrumei e fui assistir o festival. Comigo, foram o Rafael e o Felipe. No polo, Encontramos com o Leo, o Rodrigo, William, a Evelyn e a Eva. Com toda essa gente, uma garrafa de vinho ia para o espaço rapidinho. Só a Eva que não bebia. Depois de um tempo, alguns passaram para cachaça, conheci alguns amigos do Leo, e a noite seguiu no som pesado do Punk Rock.
O vocalista parou de repente, com a letra da música pendurada na língua, e da qual eu não entendia uma vogal. Os instrumentos continuavam repetindo o mesmo som.
— Galera! Agora, vamos botar pra foder, nessa porra!
— UUOOOUUUU!!! — um urro do público explodiu.
— É hora do Corredor da Morte!
Corredor da Morte? Matei minha dose de cachaça e me afastei do grupo. Fui até o meio da multidão na quadra de basquete.
— Façam duas fileiras uma de frente para outra, quando a batida pesada voltar, Lado A ataca lado B. E lado B ataca lado A.
Beleza! Esfreguei minhas mãos e senti a adrenalina percorrendo nas minhas veias. Eu adorava aquilo. A expectativa do caos estourando, sem nenhuma previsão do que poderia acontecer.
O vocalista tirou a blusa e jogou no chão. As fileiras estavam prontas, do meu lado, um dos amigos do Leo, que eu tinha acabado de conhecer, um tal de Rômulo. Um cara magrelo e alto, mas com o rosto bonito. Piercings espalhados na cara toda. Ele olhou pra mim.
— Caio! Vamos arrebentar os caras do outro lado.
— Pode apostar! — Toquei na mão dele e sorrimos.
A bateira foi surrada com violência, as distorções da guitarra ecoaram e o vocalista maluco gritou:
— VAI, PORRA! SE MATEM!
As duas frentes se chocaram. Uma mistura de braços, pernas e cabeças em uma turba violenta, alguns pulavam no ritmo do som e outros caíam no chão. Era nesse momento que alguns enxergavam bom senso. Um espaço era aberto no meio da algazarra, em volta do infeliz caído. Algumas almas do bem se juntavam e levantavam o combatente. Então todos recomeçavam de onde paravam. Ninguém ali queria ser pisoteado.
Sem nenhuma modéstia, eu era bom nessas orgias de espancamento. Mesmo morto de bêbado, nunca caía no chão, e olha que eu costumava pular, o que aumentava as chances de alguém me derrubar. Conseguia aguentar murros na cara, costela e estômago. E os nos dos meus dedos sempre ficavam roxos. Preferia soltar socos do que chutes.
Como de costume, quando a música acabava, trocávamos apertos de mãos. Fui até o Rômulo. Vi ele agachado e com as mãos nos joelhos. Ele cuspiu baba e sangue.
— Te acertaram de jeito — eu disse, pondo a mão nas costas dele.
— Foi tu! Cortou minha boca. — Ele me encarou e sorriu.
— Sério? Não vi —, apertamos as mãos.
— É... Acontece. E tem sangue na tua orelha.
Caralho! Meus brincos, pensei. Coloquei a mão no ferimento, meus dedos ficaram sujos de sangue e estavam faltando dois brincos da orelha direita. Cheguei a pensar se minha pele havia sido rasgada. Me inclinei até o Rômulo.
— Olha se minha orelha rasgou.
— Não. Só os buracos dos brincos que estão inflamados.
Depois disso, voltamos até o resto do nosso pessoal e alguém teve a brilhante ideia de jogar cachaça na minha orelha. Se adiantou de alguma coisa, eu não sei. A banda Teoria subiu no palco, começaram a afinar os instrumentos. Os grupos bebiam tranquilos, depois o som começou, uma música leve e bem trabalhada.
O grupo estava enfileirado e sentado em um batente. Resolvi ficar de pé, para testar minha sobriedade. Nada bem, já começava a sentir um certo desequilíbrio, então comecei a beber mais devagar.
Um cara se aproximou de mim, usava uma jaqueta preta cheia de estampas costuradas, coturno, cabelo raspado dos dois lados com um moicano longo e cheio de dreads. Aqueles olhos estufados me encararam.
— Tu curte Green Day? — ele perguntou.
Eu usava uma blusa com a estampa dessa banda, álbum American Idiot. Um desenho de uma mão segurando um coração sangrento em forma de granada.
— Escuto algumas músicas.
— O que essa banda representa pra tu?
— Gosto da música Jesus of Suburbia. Me identifico com a letra e o clipe.
— Certo! — Ele agarrou a manga da minha blusa e enfiou o dedo no meu peito. — MAS O QUE ESSA BANDA SIGNIFICA PRA TU? — disse, muito próximo e gritando, senti o bafo de cachaça.
A princípio, os gritos foram tolerados devido ao ambiente barulhento, meu corpo já estava dormente de tanta bebida, então não notei nada de agressivo, ou que me ofendesse.
— CARA! NÃO SIGNIFICA NADA! NÃO PAGO PAU PRA ARTISTA, SÓ GOSTO DO TRABALHO DELES. NÃO SOU FÃ DE PORRA NENHUMA.
— ENTÃO TIRA ESSA BLUSA! TU NÃO MERECE USÁ-LA.
— NÃO VOU TIRAR! TU TÁ QUERENDO ME VER SEM BLUSA?
— TU NÃO É PUNK, PORRA NENHUMA! SE TU NÃO TIRAR, EU VOU RASGAR ELA!
— E QUANDO EU FALEI QUE ERA PUNK? NÃO SOU MESMO, DETESTO RÓTULO. NEM SEI O QUE UM PUNK FAZ. E POR QUE TU QUER RASGAR MINHA BLUSA?
— TIRA ESSA PORRA! OU EU RASGO!
Eu e ele estávamos muito próximos um do outro. De súbito, senti alguém me puxando para trás, olhei para o lado e identifiquei o Rodrigo.
— Se acalma, Caio!
— Estou calmo, porra! Eu e o cara ali estamos conversando. — Olhei para frente e vi uns três caras tentando segurar o rasgador de blusa. E de fato, eu não havia percebido nada de anormal, para mim, os gritos eram justificados pelo som alto da banda que tocava. Eu só queria entender porque aquele cara queria me ver sem blusa.
— Ele queria te bater, seu porra! — O Rodrigo falou, ainda me segurando.
— O QUÊ?! ESSE MERDA QUER ME BATER, POR QUÊ? — tentei me soltar a fim de partir pra cima daquele maluco.
— Felipe! Leo! Chega aqui, tão querendo bater no Caio! — Rodrigo chamou.
Em segundos, dois lados se formaram. Os meus amigos e os amigos daquele filho da puta sem noção. Por que ele queria me bater? O que eu tinha feito pra ele? Beleza! Se ele invadia o meu espaço, ele me dava motivos para entrar numa briga, mesmo que eu me estrepasse inteiro, afinal, ele parecia ser mais forte. Mas com raiva, eu jogava sujo. Não hesitaria em enfiar meus polegares naqueles dois olhos esbugalhados.
Apareceu um cara que tinha dirigindo uma peça, da qual fiz parte. Fiz um fariseu em A Paixão de Cristo. Ele gostava de mim e tentou apaziguar os ânimos de todo mundo, sem sucesso. Eu ainda queria esmurrar aquele merda do olho grande. O Felipe era um veterano daquela praça, então ele conhecia o desgraçado encrenqueiro e seus amigos. O apelido do porco era Zoi.
— Ei, porra! Tira o Zoi daqui, senão eu mesmo que vou quebrar ele — o Felipe ameaçou a galera do outro lado.
Um cara de chapéu apareceu, eu não sabia quem era.
— A gente não quer confusão! — Ele se virou para o Zoi. — Vai te sentar, seu desgraçado!
O Zoi obedeceu o amigo.
Apareceu um cara negro com o cabelo grisalho, ele veio até mim. Meus amigos cercaram ele. E o cabeça-de-neve me estendeu a mão.
— Cara! Me desculpa, eu sou amigo do Zoi. E eu vim aqui te pedir desculpas por ele.
— Você não fez nada comigo! Eu quero saber por que aquele merda tá querendo confusão comigo.
— Toque na minha mão. — Ele balançou a cabeça. Apertei a mão dele. — O Zoi é um idiota quando bebe, não é a primeira vez que ele faz isso. Mas não vou deixar ele te bater.
O Felipe se aproximou. Tocou no ombro do amigo do Zoi.
— Aí, Delano. Foi o teu amigo que veio até o Caio. Então põe a coleira no teu cachorro, que eu ponho a do Caio.
— Beleza, Felipe. Mas ninguém aqui quer briga — dizendo isso, o Delano saiu.
Depois o cara do chapéu veio até mim e pediu desculpas também. Os ânimos foram baixando. Me sentei junto com o Felipe.
— Quem é esse Zoi?
— É um filho da puta. Eu e ele quase tivemos uma briga, no passado.
— E como foi?
— Ele chegou pra mim e perguntou: "Ei Felipe, a tua banda, a Calibre 38 é banda de emo?" Respondi: "Não. Eu toco Hardcore" E ele: "Que bom! Porque eu espanco emo." Isso me inflamou por dentro. Então, eu falei: "Pois agora, eu sou emo. E aí? Vai fazer o quê? Vem, bate em mim!"
— E ele?
— Um covarde de merda. Não fez nada. Por que vocês iam brigar?
— Sei lá. Ele queria rasgar minha blusa.
— Tu já tá bêbado. Vamos embora.
Nesse momento, vi o Zoi me encarando de longe.
— Não vou sair daqui por causa desse pau-no-cu. — respondi o Felipe, sem desviar os olhos do pau-no-cu.
Ficamos por ali, mais um tempo. O Delano sentou com a gente e o cara do chapéu também. O nome desse último era Daniel. Eles gostaram do fato de eu ter enfrentado o amigo deles e disseram que se eu tivesse abaixado a cabeça, esse Zoi não me deixaria em paz. O Daniel até me ofereceu um cigarro. Aceitei. O Felipe trocou algumas palavras com eles. Depois eu e meu amigo fomos embora. O Rafael já tinha voltado para casa, mais cedo.
Quando atravessamos a rua. Escutei o idiota falando de longe.
— SEU POSER DE MERDA!
Eu e o Felipe olhamos: o Zoi estava mostrando o dedo médio e pegando no pau. O Felipe ficou puto. Deu alguns passos, esticou o braço na direção do atrevido e olhou pra mim.
— Vamos quebrar esse cuzão?! — disse, com o rosto marcado pela raiva.
— Não, agora que já saímos de lá, nem vale mais a pena — falei.
— Tem razão. Não vamos se sujar com lixo.
No caminho de volta. Eu comecei a pensar no Felipe. Nunca tinha visto ele tão puto com alguém. Acredito que esse episódio nos uniu mais ainda. Ele era um amigo de verdade, forjado no ferro e no fogo das piores desgraças. Quando chegamos na minha casa, ele falou tudo que aconteceu para dona Cecilia. Inclusive que também queria bater no Zoi e que eu não tinha procurado confusão no final.
Minha mãe também gostava dele. Um cara sociável, às vezes todo engomadinho, mas ele também tinha garras de lobo na hora certa.
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