14 . Reiniciar a Jogada
O suspeito agarrou a minha blusa acima do ombro. Nós três olhávamos para o filho da puta. Ele me encarou.
— Passa o celular!
Coloquei o aparelho por baixo da perna. Permanecíamos sentados e o sujeito de pé.
— Anda logo, porra! Eu vi o celular!
— Eu não tenho.
— Tu quer brincar comigo? — Ele fechou os dedos em volta da blusa e a puxou para cima.
Não levantei. Encarei o desgraçado com ódio. Olhei para o Felipe e o Rafa, não identifiquei nenhuma reação. Fiquei paralisado com um misto de medo e raiva. Entreguei o celular. Ele pegou, me soltou e continuou andando até o final da rua III. Quando o bandido sumiu na esquina, de súbito, o Felipe se ergueu.
— Puta que pariu! Vamos atrás desse merda?!
— Agora? Ele já saiu — falei.
— E andando como se não tivesse feito nada. O cara aparece, pega teu celular e sai como o bichão. Puta que pariu! Isso me deu raiva.
— Agora já era. Esquece, Felipe. Senta aqui! — Bati na calçada do meu lado. Ele continuou de pé.
Olhei o Rafael, ele estava mudo. Quietinho. Não esperava isso dele, ele sempre dizia que bateria nos outros, não gostava de pessoas e tinha um jeitão agressivo.
— Que foi, Rafa?
— Ele podia tá armado.
— Verdade — o Felipe concordou, pondo a mão no queixo.
— Vão tomar no cu, vocês dois! — Me levantei indignado, agora só o Rafa estava sentado. — Armado? Sério? Aquele filho da puta viu três de nós! Se ele tivesse armado, ele teria sacado a arma pra ameaçar a gente.
— De fato, não fizemos nada e éramos três. Vamos quebrar esse cara! — O Felipe pôs a mão no meu ombro.
— Ele já tá longe. Mas fica certo de uma coisa, da próxima vez que eu for assaltado, espero que vocês não estejam comigo.
— Por quê? — o Rafa perguntou.
— Se ele não apontar um revólver na minha cabeça, eu vou reagir.
Mais tarde, em casa, e deitado na rede. Imaginei mil e uma mortes praquele ladrão de merda. Comecei a formular teorias sobre abordagem em assaltos: se um ladrão chegasse fazendo muito barulho e ameaçando sem nada na mão, a probabilidade maior, seria ele está desarmado; e se ele chegasse na frieza e com uma arma na mão, ele teria segurança de si, então eu entregaria o que ele pedisse.
Claro que existiam mil variáveis, mas eu estava me fodendo pra elas. No outro dia, contei tudo para Cecilia. Inclusive a minha teoria.
— É claro que ele estava armado, Caio! Ele abordou três homens!
— E por que ele não mostrou a arma?
— Não precisava.
— Beleza. Então se alguém quiser me roubar agora, vai ter que mostrar se quiser levar algo de mim.
— A vida é mais importante do que a droga de um celular!
— Não a vida deles! — Apontei em direção à rua. — E a questão, não é o celular! Eles podem querer me roubar uma moeda, se não apontar uma arma bem aqui — coloquei meu indicador na testa —, não entrego!
— Assim, tu vai morrer!
— Mas eu levo o miserável comigo.
A minha raiva foi se inflamando em relação aos ladrões. Quando comecei a ouvir aquela história de vítima da sociedade nas aulas de sociologia, eu não tinha o que discordar. Mas se a "vítima da sociedade" viesse mexer com a minha paz de espírito, preferia pensar nela como "vítima do Caio Bastos". E isso, ainda me traria muitos problemas no futuro, assim como algumas soluções dramáticas.
Como já disse antes, preferiria violência verbal do que agressões físicas. Mas se tinha uma coisa que eu não sentia, era compaixão por miseráveis, e eu me incluía nisso, porque autopiedade era uma merda. Não tinha pena dos famintos da África, dos mendigos de Fortaleza, dos animais abandonados e de florestas desmatadas. Nunca entendi o tal do altruísmo. Simplesmente, eu era indiferente às desgraças do mundo e não fazia questão de fingir que me importava.
Sim, era isso. Um egoísta arrogante, dentro de um mundinho particular. Mas eu não invadia o mundinho particular dos outros, geralmente, eles que me deixavam entrar. E a merda de um ladrão não te pedia licença e falava: "Oi, tudo bem? Posso te roubar?" Então, ficou simples! Se quisessem me roubar, o risco seria recíproco. Se eu era perigoso? Tanto quanto um animal que defende o território onde mija.
O mês de julho acabou, as aulas voltaram e a narrativa de RPG ambientada no jogo Clube de Caça também acabou. O Felipe deu três opções de jogos para a Mesa. Escolhemos o Vampiro: A Idade das Trevas, um dos jogos do sistema Storyteller. Esse sistema era completamente diferente do Daemon. Li o livro do novo jogo de cabo à rabo para entender as regras.
O William se mudou para outro bairro, o Conjunto Esperança, que era perto do Parque Santana. Ele conheceu outros jogadores de RPG e eles foram incluídos na nossa Mesa. Um desses novatos era o Rodrigo. Um cara simpático, cheio de teorias e contraditório. Mas ele gostava de dizer que era mal compreendido. Com o tempo, ele virou um bom amigo e um ótimo rival. Não um rival de jogo, mas um rival social.
Minha vó Marta ficou mais doente, emagreceu e recebeu o diagnóstico: câncer. Dona Cecilia passava mais tempo fora de casa, para cuidar da mãe. Eu cheguei a ficar uma semana sozinho em casa. Faltei aulas para passar o dia na lan house, ou, em casa assistindo séries no computador. Nos fins de semana, quando ela perguntava se eu ia à escola, eu sempre dizia que sim.
Comecei a acumular dívidas em uma lanchonete perto de onde eu morava. Jantava coxinha, macarrão instantâneo ou bolo. Não sabia cozinhar nada. A situação financeira ficou apertada, minha mãe não trabalhava, eu não trabalhava e vivíamos da caridade do meu pai Eli, que estava no seguro desemprego e a grana já estava por um fio.
Dona Cecilia começou a me encher o saco para conseguir um emprego. Comecei a fazer alguns bicos, com ajuda do meu tio materno, Tadeu. Minha mãe insistiu para eu trocar o turno da escola para noite. Resisti a isso. Permaneci a tarde enquanto fazia uns bicos que mal serviam para pagar as dívidas da lanchonete.
Na escola, depois das férias de julho, chegou uma novata estranha. Cabelo loiro e ondulado, aparelho nos dentes, rosto fino e quadril largo. Ela parecia tímida, como a maioria dos novatos eram, ombros caídos e cabeça baixa. Durante a chamada da turma, o professor de matemática falou:
— Helena?
— Presente — ela disse, levantando a mão.
Após a chamada, ele passou algumas questões na lousa. Depois, se virou para a turma e disse:
— Façam duplas!
Um barulho desgraçado de cadeiras se arrastando começou. Não me importei. Preferia fazer sozinho. Comecei anotando os cálculos. Olhei em volta. Todas as duplas estavam formadas. Sobrou eu e a tal da Helena.
— Caio, é de dupla! — O professor veio até mim.
— Beleza.
Arrastei minha cadeira até a novata. Depois, olhando para o velho, eu disse:
— Ei! Os dois precisam copiar as questões da lousa?
— Sim. — Ele aumentou o som da voz. — Pessoal! Eu quero que todos copiem! — Apontou para lousa.
Me sentei ao lado da Helena. Ajeitei minha mochila e caderno. Olhei as anotações dela. Depois olhei ela. Larguei a caneta e parei de copiar.
— Posso te ajudar com as respostas. Mas não vou copiar isso — falei.
— Mas o professor disse que...
— Eu sei o que ele disse. Mas não vejo motivo para fazer uma dupla com dois trabalhos idênticos. Termina de copiar o seu, e te ajudo com as respostas.
Ela não disse mais nada, ficou de cabeça baixa até terminar. Enquanto isso, eu fazia as respostas com as informações que já tinham na lousa.
— Terminei — ela disse.
— Já tenho as respostas.
— Eu também já fiz. Posso ver as suas? — Helena esticou a mão, eu entreguei o caderno. Ela ficou comparado por um bom tempo.
— Nossa! Tão iguais as minhas. Quer dizer... mais ou menos.
Me inclinei e vi o caderno dela.
O "mais ou menos" significava que ela fazia todos os passos de uma fórmula para obter a resposta, organizava tudo meticulosamente. Enquanto eu, fazia uma bagunça completa, pulava várias etapas que eu fazia na cabeça e não colocava no papel, mas no final, eu tinha a resposta certa. Era só isso que me interessava. E quando me interessava? Quase nunca. Matemática era muito chato, mas o meu "chato" não era sinônimo de dificuldade.
— Agora... você vai copiar e organizar tudo?
— Não. Não tô a fim de fazer isso.
— Como assim? Você fez sozinho e não vai entregar nada?
— Não. — Bocejei.
— Você é inteligente! Mas é preguiçoso e...
— Não, de novo não. Vivo escutando isso, já deu! E você nem me conhece. Sou repetente. Não me ajusto ao sistema de pontuação nessa escola. Desteto trabalhos, isso exige organização e uma capinha bonitinha. Se ele quiser saber as respostas, estão aqui. — Apontei para folha. — Mas se ele quer tudo passado e engomado, não tenho saco pra isso.
— É como acabei de dizer, tu é inteligente...
— Tu me escutou? Sou repetente, eu já conheço essa matéria.
Ela balançou a cabeça. Começou a fazer uma cópia das questões no meu caderno.
— Se tu não vai fazer, eu faço pra você e depois tu entrega.
— Não! — Bati a mão em cima do caderno. — Me dá isso aqui, deixa que eu faço isso. — bufei.
Comecei a copiar tudo, cada etapa chata e sem pular direto para resposta. Fui o último que entregou. Depois me enfiei com o grupo dos repetentes, o Felix, Marcelo e Alana.
— E aí, Caio? Pensei que não viria mais pra aula. Quem é a novata? — o Marcelo disse, sorriu, e eu toquei na mão dele.
— Sei lá. Uma chata que me fez copiar essa merda.
— Tu copiou isso? Ela fez milagre! Tu é o único que não faz nada, aqui.
— Não exagera, porra.
Mas era verdade, existia dias em que todos faziam a tarefa, e quando os professores viam tirar satisfação comigo, eu simplesmente dizia: "não vou fazer". Alguns me expulsavam de sala. Outros me adulavam pra fazer, o que eu detestava e acabava fazendo para não ouvir adulações. Preferia ser expulso de sala do que ser adulado. Dava a impressão de que eu estava pedindo atenção, sendo que eu só não queria fazer a porra da tarefa.
— Sabe a Rebeca? — Marcelo falou.
— Sei, o que tem ela?
— Ela se transferiu e voltou para a antiga escola dela.
— E daí?
— Ué, vocês viviam conversando, achei que queria saber. — O Marcelo deu de ombros.
— Achou errado — eu disse e fui falar com Alana.
Abracei aquela gostosa do caralho.
— Como foram as suas férias? — ela perguntou.
— Fiquei com saudade de sentir os seus peitos — disse, ainda abraçando ela.
Alana me empurrou.
— Continua safado, e aí? Conseguiu trepar mais? — ela sorriu.
— Pior que não. Rolou muita coisa, mas nada de sexo.
— Muita coisa? — Ela me puxou com um sorriso safado.
Eu sorri.
— É. Ganhei um boquete muito foda!
— E tu dizendo que não rolou sexo!
— Não rolou, o máximo foi um boquete, não passou disso.
— Chupar é sexo oral, garoto.
— Pode ser, mas pra mim, sexo tem que ter penetração.
— Não necessariamente!
Revirei os olhos.
— Beleza. O que quero dizer é... EU — enfatizei uma opinião pessoal e o que me satisfazia — só considero sexo, se rolar penetração. Entendeu?
— Tá bom.
Comecei a frequentar mais as aulas. O Leo, meu amigo gordo, pediu transferência para o turno da noite. Minha relação de amizade com a Alana cresceu bastante. Mas quando tínhamos trabalho em grupo ou de dupla, eu sempre fazia com a Helena. Ela foi se soltando mais comigo e me mandava calar a boca e fazer os trabalhos, isso me deixava puto. Ela lembrava minha mãe.
Eu e Helena só falávamos sobre assuntos escolares, enquanto eu e Alana falávamos de putaria. Nos intervalos, eu escutava a Beatriz falar sobre Campina Grande e seus antigos amigos.
Voltei a frequentar as aulas de teatro. Sim, eu participava de algumas oficinas na época do fundamental. Comecei a aumentar minhas notas, graças à Helena.
E fora da escola?
Meu círculo de amigos, aumentava, graças ao Rodrigo, conheci um outro Leo, esse era magro, tímido e tinha um gosto musical parecido com o meu. O Felipe nos chamou para uma noite no Centro Cultural do Dragão do Mar. Eu já tinha ido algumas vezes, antes das férias de julho.
O Dragão do Mar em 2011 era um mar de escuridão e sacanagem.
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