1 . O primeiro gole foi barulhento
O líquido desceu queimando. Meus olhos arderam. Detestei. Cachaça pura e inédita para um adolescente de 15 anos. Como alguém pagava por isso? Eu não paguei. Antes da banda Calibre 38 se apresentar, o baterista trouxe esse negócio do diabo. O Jeferson — o cara que pagou pela cana — era amigo do Felipe Marinho, que era meu amigo, ou quase.
Assistíamos a segunda banda da noite, éramos um grupo fragmentado. Na Calibre 38 tinha um vocalista, o Fabio; dois guitarristas, Santiago e Felipe; o cachaceiro baterista, Jeferson; e o novato, Palhaço, o maluco que tocava baixo. Algumas meninas acompanhadas, completavam um pedaço e no outro estilhaço, o Willian, um amigo mais próximo, que estava tão deslocado quanto eu.
— E aí? — O Jeferson queria saber o que eu tinha achado da cachaça.
— Nada mal — respondi depois de um engasgo.
Ele gargalhou feito um porco. Vi um piercing naquela língua obscena. Fiquei constrangido. Então dei outro gole. Esse, detestei menos. Legal. Arrisquei outro. O copo esvaziou e logo ele esticou a garrafa. Copo cheio de novo.
A noite prometia mais. Numa rua atrás de um shopping center, havia uma praça decrepita, bancos de concreto esmigalhado, areia para gatos cagarem e um equipamento de som no meio de tudo isso. Ao lado, uma banca de jornal vendia revistas em quadrinhos e pornografia. A segunda banda saiu e o pessoal que veio comigo foi afinar os instrumentos.
O baterista deixou a garrafa com a namorada. E ela ficou do meu lado, enchendo meu copo.
Dessa vez, prestei atenção. Até conhecia algumas músicas autorais da Calibre 38. O barulho começou. Era uma melodia aceitável com uma letra açucarada. Tudo bem, eles diziam que era hardcore, mas todo mundo sabia que era emocore.
Tomei o copo todo. E foi aí que eu entendi. Essa merda ficava melhor a cada golada rápida.
— Caio! Tu tá bebendo, cara? — O William apareceu.
— É cachaça... Isso tá ficando bom. — Olhei em volta.
Tinha uns desconhecidos em pé, sacudindo a cabeça. Fiquei de pé. Quase caí. Bebi mais. E finalmente a banda tocou a música que fiquei esperando, Barbie Girl, versão cover do MxPx. Enlouqueci. Porra, o que tava acontecendo? Me sentia capaz de qualquer coisa. A bebida fez isso? Eu começava a entender porque as pessoas bebiam. Um sentimento arrebatador tomou conta. Esqueci da minha mãe, de Deus e do Diabo. Senti o momento, aquela alegria fabricada pela cachaça. Precisei de mais.
Eles encerraram o repertório e deram boa noite.
— É isso aí, pessoal! Somos a Calibre 38, atirando no seu coração... — Felipe apresentou os membros da banda, que não repetirei aqui. — Iremos tocar no próximo fim de semana no Clube dos Canalhas, vamos distribuir os panfletos com endereço. — concluiu.
Aí sim! O Clube dos Canalhas ficava no nosso bairro. Isso significava que eu evitaria dois ônibus para chegar em qualquer outro ponto da cidade, caso fosse em outro lugar.
A galera voltou para os bancos, foi quando o Felipe parou os olhos na minha mão segurando um copo plástico. Ele veio na minha direção como um soldado marchando para batalha.
— Ei cara, que porra é essa? — Olhou em volta. — Quem foi que te deu cachaça?
— Eu. — O Jeferson se aproximou, girando uma baqueta nos dedos. Agarrou a cachaça no colo da namorada e sacudiu na cara do Felipe.
— Ele é de menor!
— Eu sei — disse, dando de ombros e com uma naturalidade foda.
O Felipe desistiu com o Jeferson no mesmo instante. Então o primeiro se sentou do meu lado.
— Sabe... beleza cara, eu comecei a beber com 16. O Jeferson... sei lá... do útero da mãe dele. Não importa! Só tenta ficar bem.
Naquele momento, percebi que uma amizade regada a álcool poderia começar. Eu só conhecia um lado do Felipe, o lado nerd, narrador de RPG e músico.
— Ele me ofereceu e eu aceitei. Essa merda não presta no início. Mas posso me acostumar com isso.
— É assim mesmo. — pegou a garrafa, colocou uma dose para si e virou tudo de uma vez.
— Ei Felipe, coloca aqui pra mim. — O William estendeu um copo.
— Vai te foder, William! Tu nem beber, bebe.
— Não cara, é porque estou com sede.
— Puta que pariu! — disse, com a voz fraca e desatando em gargalhadas. Felipe se levantou e espalhou a desculpa esfarrapada que tinha acabado de ouvir, como se fosse a melhor piada do mundo.
Cutuquei o constrangido.
— William, isso aqui não serve pra matar a sede — instrui, já entendendo tudo de bebida.
— Tem água aqui, menino. — A namorada do Jeferson tirou uma garrafa d'água e deu a ele.
A noite seguia com outras bandas, e uma parte do grupo queria ir embora. Eu queria ficar, mas o Felipe praticamente me expulsou. Saí da praça com o William e mais um punhado de gente que não conhecia, e nem fazia questão de conhecer.
Esperávamos o ônibus na parada, continuei agitado, mas contido. O que me deixava no ponto de explodir enquanto fazia pressão para não passar vergonha. Sempre fui um cara calado, introspectivo e tímido. A bebida tinha me virado do avesso.
Subimos no transporte lotado. O pessoal teve que ir de pé. Minha primeira visão foi uma baita bunda coberta por uma calça jeans. Deus! Como eu queria lascar minha mão naquela bunda. Por sorte, o William me mantinha distraído com toda ladainha, aproveitei para falar bastante.
— Porra! Eu queria ter ficado, estava legal, outras bandas iam tocar. O Felipe é um pau no cu — resmunguei.
— Já tá tarde. E sua mãe? Se ela te ver desse jeito, ela vai pirar. — Ele riu e continuou, interpretando a Dona Cecilia. — Caio Bastos! Você bebeu! Isso é pecado, tu vai apanhar, em nome de Jesus...
Eu parei de ouvir e voltei minha atenção para o que importava. A bunda e minha punheta quando eu lembrasse da bunda mais tarde.
— William! — Tentei falar baixo, não sei se conseguir. — Olha isso! — Apontei para aquela bunda. — Ela é muita gostosa.
— Ei, fica quieto, fala baixo.
— Eu sei, não sou disso. Mas olha essa bunda!
— Pega uma partilha, vai disfarçar esse bafo de cachaça até em casa.
— Porra! Eu queria ter ficado lá. Estava legal e o Felipe é um...
O ônibus fez uma curva brusca, na velocidade que a noite sem trânsito permitia. Esbarrei no meu amigo. Só não caí porque fui segurado. Depois disso, mantive toda a minha concentração em se segurar nas barras.
As janelas de ônibus te fazem pensar na vida. Então, disse comigo mesmo, que iria marcar essa noite. Quando saía de casa para curtir uma noitada, eu já havia deixado de pedir para minha mãe, apenas avisava, e às vezes, nem isso. Ela não quis que eu saísse naquela noite. Deixei de lado todas as minhas obrigações. E fui ver a banda de um amigo, Felipe.
Esse era um sujeito alto, simpático e grosseiro quando julgava necessário. Cabelo liso, pele morena, nariz pontudo, sociável demais, o conheci através do William, "o Maria vai com as outras". Will continuava frequentando a Igreja Batista, e só foi assistir a Calibre 38, porque admirava o Felipe, que além de guitarrista também fazia as composições.
Eu já tinha largado a igreja e brigado com Deus. Não aceitava todo aquele controle. E por muito tempo, me senti triste sendo um projeto de cristão. A ideia de pecado era assustadora. Principalmente, quando você se senti culpado só porque acertou o seu mindinho do pé num móvel, e um palavrão sai da sua boca feito exclamação. Era o meu caso.
O sentimento de culpa era pura merda. Você se ajoelhava e pedia perdão, porque tinha uma infração contra sua consciência que servia de privada. Chorei muito, simplesmente porque eu era um "pecador". Não conseguia resistir ao grande monstro tentador que soprava no meu ouvido: "Tu estais cobiçando a mulher do próximo, Caio!" enquanto eu batia uma punheta de dia, chorava no travesseiro de noite, no meio de uma oração.
Chegamos no terminal de ônibus, no bairro Siqueira. Fui em um box que vendia caldo de carne moída e comprei... Adivinha?
Acertou, comprei caldo de carne moída. Bebi tudo. E aquilo foi como uma porção mágica, me senti mais sóbrio e relaxado. Esperamos outro ônibus para o bairro Parque Santana, onde eu morava só com minha mãe. O William ainda estava comigo, era meu vizinho. O resto dos corpos que nos acompanhavam — amigos do meu vizinho — sumiram, um por um.
— Cara, me sinto melhor — falei.
— Menos mal. Dessa vez, acho que sua mãe não vai perceber.
— Será?
Minha mãe foi casada com meu pai. Se separaram quando eu tinha 10 anos. Motivo da separação: bebida alcoólica. Na época, minha mãe me convenceu que a separação não faria muita diferença, porque meu pai trabalhava no alto mar, e eu era acostumado a ficar 6 meses sem ver ele. Então ela se mudou para uma casa própria no Parque Santana.
Antes morávamos de aluguel, mas ainda era bem melhor do que morar naquele bairro esquisito. Fiquei puto com a mudança, deixei vários amigos para trás. E piorou. Ela se alistou no exército de Cristo e me obrigou a servir junto. Levou cinco anos, para eu tomar coragem e chutar o balde. Isso aconteceu quando segurei os pulsos dela e gritei com lágrimas nos olhos:
— A senhora, não vai mais me bater! Eu não vou pra igreja, porra! Tá me entendendo, porra! Sua vaca!
Ela surtou.
— E tu vai me bater agora?! — Disse, tentando soltar os pulsos.
— Não! Mas nunca mais, a senhora me bate! Pode ter certeza, não aceito mais isso!
Soltei ela. Cecilia ficou se tremendo de raiva, rosto vermelho e catarro saindo do nariz, junto com lágrimas. Levar uma surra por não querer servir Jesus na igreja "qualquer coisa"? Nunca mais. Daquele dia em diante, meus sentimentos pela minha mãe se tornaram brutos.
Voltando para o terminal do Siqueira.
Entramos no segundo ônibus, esse sempre demorava. A única vantagem era que o bairro era perto, em 15 minutos eu já girava a chave na porta de casa. Entrei, com passos duros e controlados, totalmente focado em parecer o Caio de sempre: sóbrio.
Ouvi reclamações sobre o horário tarde, repetidas vezes. Cecilia sempre repetia a mesma frase em intervalos de 20 segundos quando estava puta da vida comigo. Cansando e de saco cheio, não tive forças para responder. Peguei a rede, armei e fui dormir.
No dia seguinte, só outra segunda-feira no ano de 2010. Levantei da rede, sem nenhum problema. Nada de ressaca, mal-estar ou qualquer merda que os outros bebuns reclamavam. Relembrei alguns detalhes da noite. E ainda pela manhã, subi pela rua III, para comprar pão. Acabei encontrando o Felipe no caminho. Ele morava na mesma rua que a minha, só que cada um, ficava em uma ponta da extensa rua III.
— Cara, Barbie Girl foi demais! E então, como foi o resto da noite?
— Foi escroto, os meninos da banda brigaram. Eu, Santiago e o Palhaço. Sobrou até pro Fabio.
— Sério? Por quê?
— Por bobagem. Teve até soco na cara, a galera ficou muito bêbada.
— Entendi. Quando vai ter narração? — Me referi ao jogo de RPG.
Esse jogo era bastante incomum onde morávamos. Quase ninguém, fora do meu círculo social, sabia que merda era essa. E eu sempre detestei explicar. Quando perguntavam o que eu fazia quando me reunia com um monte de macho, com papel, lápis e dados, eu só dizia:
— É RPG, estamos jogando.
Muito autoexplicativo, eu sei. E se mesmo assim, ainda não ficou claro. Eu esclarecerei depois, ou não.
O Felipe, o narrador do jogo, coçou a cabeça.
— Provavelmente, só temos que saber onde será. Eu te aviso daqui pro fim de semana.
— Beleza. Valeu! Vou indo, tenho que comprar o pão.
— Valeu!
E assim nos despedimos.
Depois do almoço, tinha escola, eu estava no primeiro ano do ensino médio. E o ano letivo estava prestes a acabar. Eu detestava ir para as aulas. Principalmente, quando a minha cara estava manchada e marcada pelas explosões de acne. A dona Cecilia costumava reclamar, quando eu não limpava o sangue e o pus do espelho.
Cheguei cedo, no colégio Cavalcante Lima, que aliás, ninguém chamava assim. Naquela regional de Fortaleza, essa escola era conhecida como "A". Haviam outras que seguiam o alfabeto: B, C e por aí vai.
Esperando pela abertura dos portões, eu me dei conta de que esqueci de bater punheta para aquela bunda.
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