29. Letícia
Desço um lance de escadas correndo, chamo o elevador com o dedo trêmulo. A ansiedade desce pelas minhas pernas, fazendo meu pé bater no chão de forma insistente. Quase choro de alívio quando vejo que o elevador está vazio.
Me apoio no espelho frio, fechando os olhos.
O que acabou de acontecer, merda?
Preciso me recompor.
Não posso surtar agora.
Um casal de idosos entra no elevador. O velhinho sorri de forma gentil e a senhora espera que eu retribua o "boa noite" cantado que ela me oferece.
Faço um aceno com a esperança de que tenha sido simpático.
Acho que estou momentaneamente sem voz.
O sétimo andar ainda parece distante e eu fecho os olhos, tentando ignorar a náusea.
O que eu acabei de fazer?
Como pude deixar isso acontecer?
O que eu estava pensando?
As perguntas vêm como berros na minha mente, como se alguém - suspeito que eu mesma - estivesse gritando comigo, tentando despertar minha própria consciência.
Eu me debato, dividida entre a culpa e o álcool.
Estou bêbada.
Isso fazia parte do plano.
Sempre soube que isso aconteceria...
Mas agora a minha consciência despertou e ela está raivosa.
Sentir prazer fazia parte do plano?
Nas mãos de MB?
- Mocinha? - chama a senhora. - Este é o seu andar?
Abro os olhos atordoada. O senhor segura a porta do elevador. Murmuro um "obrigada" e tropeço para o corredor. Assim que entro no quarto, avanço para o banheiro, abro a água gelada e entro de uma vez embaixo do chuveiro. A blusa logo se cola ao meu corpo, aumentando a sensação de frio.
A água escorre pelos meus cabelos e peço que ela congele meus sentidos ainda lentos pelo prazer que senti.
Há menos de dez minutos, eu estava nos braços do homem de quem jurei me vingar e, apesar de seduzi-lo ser parte do planejado, não fazia parte do plano... gostar do seu toque, me arrepiar com seu beijo.
Foi o álcool, tento me convencer.
Eu bebi demais, ele me pegou com a guarda baixa.
Estarei mais preparada da próxima vez...
"Ah, aposto que você está ansiosa para a próxima vez...", desdenha a minha consciência.
Minha consciência é amarga e irônica. E, convenientemente, tem a voz de Cecília.
- Me perdoe - choramingo de forma patética, apoiando os braços contra os azulejos frios. - Vou fazer valer a pena.
Quando a água gelada leva toda a sensação de relaxamento que Matias tinha me proporcionado, assim como a embriaguez do vinho, me permito abrir a torneira quente. Tiro a roupa encharcada e preciso apoiar a cabeça quando o primeiro soluço sai da minha garganta. Me sinto confusa e culpada.
Não esperava encontrá-lo ali nesta noite. Não esperava que o toque de Matias fosse ser tão suave.
"Esqueça quem eu sou", ele pediu.
Pelo jeito, eu não pensei duas vezes antes de atender a esse pedido.
"Que funcionária obediente e exemplar", caçoa a minha consciência.
Saio do chuveiro exausta e com dor de cabeça, o rosto molhado não somente pela água do banho. O roupão do hotel é aconchegante e felpudo, me abraçando de um jeito melhor que muita gente. Quero me jogar na cama, mas sei que não conseguiria dormir.
Vou até a minha mala e pego o antigo diário de Cecília, esperando que as palavras ali devolvam o meu foco.
Retomo a leitura de onde parei e logo a primeira frase me dá algum conforto.
"D.
Tem coisas que não podemos fingir.
Sorrir é uma delas.
Podemos até abrir um sorriso falso, mas qualquer um que esteja prestando atenção em você ou que te conheça minimamente vai saber que não é um sorriso, é apenas uma máscara.
Já tem um mês que eu e MB somos 'amigos'. Posso ser uma iludida, mas acho que já sei diferenciar seus sorrisos.
Tem um que ele sempre usa, é o sorriso conveniente. Aparecem quase todos os dentes e ele dá uma risada no final, um 'Rá' alto que logo é seguido por um aceno de cabeça. Ele sempre desvia o olhar depois do sorriso conveniente.
Tem o sorriso irônico. Nesse, MB sorri somente com os lábios, nenhum dente aparece e um canto da boca dele sobe mais do que o outro. Nunca me lembro se é o canto esquerdo ou o direito. Acho que o sorriso irônico significa que ele tem uma opinião diferente da que está transparecendo. Me parece um artifício, um segredo... E ele nunca desvia o olhar quando está sorrindo assim. Ainda bem que ele nunca usa esse sorriso comigo. Acho que não conseguiria manter o olhar nem por um segundo.
E tem o sorriso verdadeiro.
MB não se lembra, mas uma vez fui em um dos seus aniversários, quando éramos crianças. A mãe dele quis convidar as duas turmas e foi inesquecível pra maioria dos nerds da minha sala. Caso não tenha notado, na minha sala só tem nerds. Me lembro tão bem como se fosse hoje daquele jardim tão lindo, da mansão, do pula-pula e da piscina de bolinhas gigantesca. Foi um dia tão atípico, eu me senti na Disney, apesar de os animadores estarem fantasiados de pokémons e não de Mickey ou Minnie.
Eu e GX comemos tantos cachorros-quentes que GX vomitou em uma das roseiras da mãe de MB. Me lembro que ela era a mulher mais chique que eu já tinha visto na vida, mesmo usando short e camiseta. Tipo a Lady Di que consegue ficar elegante com aqueles moletons escrito Harvard. A mãe de MB segurava o tempo todo uma daquelas taças que aparecem em filmes: com um palitinho espetado em azeitonas. Ela usava também um daqueles chapéus panamá e óculos Ray Ban... É claro que eu só sei isso porque ouvi a mãe de S falando que ela era doida de usar coisas tão caras em uma festa de criança... 'Daqui a pouco esses monstrinhos tacam o seu Ray Ban na piscina', ela disse. Na época, achei que ela estava falando do Pikachu, mas agora que cresci sei que ela temia as próprias crianças.
A mãe de MB baixou os óculos só um pouquinho enquanto GX vomitava e falou 'Garotas, sabiam que essa é a minha roseira favorita?'. Fiquei apavorada, mas aí ela deu uma gargalhada, um 'Rá' alto que nem o do Sorriso Conveniente, e saiu para buscar um remédio pra GX. Quando ela voltou, nós a seguimos até dentro da mansão, onde ela fez a GX se sentar e ligar pra mãe pra avisar que estava passando mal.
Foi enquanto eu esperava a GX terminar que eu vi o Sorriso Verdadeiro pela primeira vez. MB chegou todo sujo de lama, contando pra mãe que tinha feito um gol no jogo, mas que ela não tinha visto e perguntando onde ela estava. Ela se abaixou para falar com ele e disse que ele estava errado. 'É claro que eu vi. Você chutou com a perna esquerda. Foi um golaço, Mat. Estou tão orgulhosa'. Ela falou mais ou menos isso, não me lembro tão bem, D.
Depois, ela deu um abraço nele e foi aí que eu descobri duas coisas sobre MB: ele é canhoto e tem uma covinha no lado esquerdo do rosto, mas ela só aparece com o Sorriso Verdadeiro.
Hoje, na hora do recreio, passamos o tempo todo sentados escutando o novo álbum do Pearl Jam. Aí teve uma hora que ele disse que ia pegar algo para beber e voltou com uma Coca-Cola. Uma latinha e um canudo. Ele me disse que ia comprar duas, mas era a última da cantina e perguntou se eu me importava de dividir. Eu disse que não... E dividimos. Com o mesmo canudo. É isso mesmo, D! Coloquei a minha boca no mesmo lugar que a boca de MB! E sei que ele gostou disso, porque a covinha apareceu.
Ps: a mãe dele mentiu. Ela não viu o gol, só adivinhou que, por ser canhoto, ele tinha chutado com a esquerda. Mas é claro que nunca vou contar pra ele."
Adormeço entre uma página e outra. O MB criança e o CEO se misturam no meu sono, protagonizando sonhos estranhos e nebulosos. Sonho com a festa de criança no jardim da mansão dos Bernardi, mas sou eu na piscina de bolinhas. Ao meu redor, não encontro ninguém. A música que toca ao fundo é macabramente infantil e uma neblina começa a deixar tudo ainda mais assustador. O sonho parece prestes a virar um pesadelo. Uma risada ecoa, seca e rápida. Um 'Rá' seguido do barulho de um copo encontrando uma mesa de madeira. Nado na direção do som, afastando as bolinhas coloridas. A neblina só permite que eu veja a poucos metros de distância. A risada surge novamente, dessa vez seguida do barulho de um telefone tocando. Avanço mais um pouco e avisto, no meio do gramado, a mesa que Matias usa no escritório. Ele fala ao telefone e bebe uma taça de vinho. Assim que eu o vejo, nossos olhares se cruzam e ele desliga o telefone. Matias parece irritado, furioso.
É só quando ele se levanta, andando a passos largos na minha direção, que eu percebo que ele usa uma felpuda e amarela fantasia de Pikachu.
- O que está fazendo aí? Tenho um trabalho para você! - ele berra.
A risada escapa da minha garganta antes que eu consiga contê-la.
- Quer ser demitida, garota? - ele berra novamente, mas, dessa vez, é só um menino com um topete loiro.
- Vá jogar bola - manda o homem atrás dele.
É Matias adulto que retorna, ainda usando a fantasia ridícula de Pikachu. Ele não parece mais irritado e abre um sorriso convencido: - Interessante que você tenha escolhido esse lugar para trabalhar, Letícia. Mas essa sua roupa não está apropriada.
- Nada disso é apropriado - me ouço dizer.
- Que tal agora? - ele pergunta. Olho para mim mesma e percebo que estou usando uma fantasia de Pikachu tão felpuda quanto a dele.
- Pareço ridícula - digo.
- Você acha? Eu gosto do Pikachu - ele dá de ombros, passando uma perna para dentro da piscina. Tento me afundar mais entre as bolinhas. Ele fica de pé, colocando uma perna em cada lado do meu corpo, de modo que fico cercada. Seus dedos brincam com o zíper que fica bem na gola da fantasia. - Já que você não gostou, vamos tirar.
Ele começa a abrir o zíper, revelando o abdômen perfeito. Sinto meu coração acelerar e me ouço provocá-lo: - Você vai ter que me pegar.
Afundo entre as bolinhas coloridas e consigo dar vários passos antes de ser puxada pelo rabo da minha fantasia idiota. Matias me vira para ele e nossos corpos são uma confusão amarela no meio de um mar colorido. Quando ele cola os lábios aos meus, acordo.
Que
merda
foi
essa?
Meu corpo está determinado a me humilhar. Minha cabeça lateja de dor e uma pulsação insistente se derrete entre as minhas pernas.
- Belo jeito de começar o dia, Letícia - murmuro para mim mesma.
Se as coisas não estavam confusas, depois de um pesadelo erótico com uma fantasia bizarra, nada pode piorar.
Me arrumo para trabalhar evitando ao máximo pensar em qualquer coisa que lembre desenhos animados antigos ou festas infantis.
Encontro uma mesa vazia no café da manhã e fico contente que Ruth ainda não desceu. Na mesa ao lado, um garotinho joga um videogame e, minhas bochechas queimam quando percebo que é do pokémon.
Droga.
Pelo menos, MB toma café da manhã no quarto.
Eu acho.
É o que eu faria se fosse um CEO famoso... Mas pelo jeito não é o plano dele para hoje.
Sinto um arrepio subir pelas pernas e me concentro no meu café da manhã: cappuccino, suco de laranja e croissant com geleia de frutas vermelhas.
Ruth caminha ao lado de Matias, o que me deixa ainda mais constrangida, mas me dá a garantia de que não vamos ter que falar sobre o assunto da noite anterior.
Sobre como eu perdi a aposta.
Vergonhosamente.
Ruth me dá "bom dia" enquanto enche a mesa com tantas guloseimas que me pergunto se vamos conseguir sair em meia hora. Segundo a agenda de Matias, não temos muito tempo até a próxima reunião. Ele usa uma camisa branca e calça social, mas ainda não colocou nem o terno, nem a gravata. A camisa está casualmente desabotoada perto da gola, o que me permite um vislumbre do seu peito. Os cabelos ainda estão molhados e caem, rebeldes, sobre a testa. Ele abre um sorriso, e percebo que é o Sorriso Irônico, o que esconde um segredo.
- Bom dia, Letícia. Dormiu bem?
Não.
- Como um anjo - respondo com uma voz suave.
Quando Ruth se levanta para pegar mais um potinho de geleia, ele retruca: - Está mais para uma diaba - ele morde a torrada com um olhar divertido, mas logo desvia a atenção para o celular.
Por favor, não lembre do pedido.
Por favor, não lembre do pedido.
Por favor, não...
- Você perdeu a aposta ontem, diabinha - ele sussurra, checando onde está Ruth. Ela está entretida escolhendo mais itens para o seu iogurte natural. - Não esqueci que isso me dá direito a um pedido.
Droga.
Preparo a minha melhor voz de mulher fatal, mas ela falha no final da frase quando um menino passa usando uma camisa do Pikachu: - E já decidiu o que vai... querer, Sr. Bernardi?
- Eu não sou muito criativo...
Ruth chega equilibrando o iogurte e dois muffins ao mesmo tempo em que um garçom nos pergunta se queremos mais alguma bebida.
- Um expresso, por favor - consigo pedir, precisando de um reforço de cafeína para curar essa ressaca.
- Eu vou querer o mesmo que ela - diz Matias e tenho certeza de que ele não está falando apenas do café.
"Se eu não gemer, quero que você me chupe até eu revirar os olhos, amanhã, antes da reunião das 15h."
Nunca mais eu vou beber.
- Só com uma diferença - ele diz para o garçom: - o meu não é para agora, é para depois.
Ruth repassa a agenda do dia, eu me ocupo com o meu croissant e Matias checa e-mails no celular. Depois do que parece uma eternidade, o garçom chega com o meu expresso e o café para viagem de Matias. Ele se despede com mais um Sorriso Irônico, e tento entender por que ele fez questão de pedir um expresso - um café que se bebe literalmente em um gole - para viagem. Antes de sair do salão do café da manhã, ele já bebeu o café, jogou o copo fora e atendeu o celular.
~*~
Fim da degustação
✨ Quer continuar lendo? "Por Tudo O Que Você Fez" será lançado em breve na Amazon!
✨ Todas as informações sobre o lançamento estão no meu instagram amandeep.1009.
✨ Essa é a primeira vez que você lê um livro meu? Sabia que eu tenho mais três livros? Vou deixar as sinopses aqui embaixo!
⭐ Amanda, Doce Obsessão
[age gap] [aluna x professor] [suspense] [hot]
Há anos, Amanda sonha com o enigmático professor Marco, mas nem imagina que sua atração é correspondida. Prestes a se formar na faculdade, ela já sente saudade das aulas em que mal conseguia prestar atenção, mas é surpreendida quando Marco faz um convite. Dividida entre viver uma nova paixão e dar ouvidos aos obscuros rumores que envolvem o passado do professor, ela se vê no meio de uma investigação clandestina que pode revelar um segredo guardado há mais de dez anos.
⭐ Café, milho e... Miguel
[enemies to lovers] [hot] [vizinhos]
Inimigos nos negócios podem se dar bem na cama? Quando uma chef de cozinha se envolve com seu rival, ela está determinada a não se apaixonar, mas ele vai deixar isso bem difícil...
Júlia está lutando para manter o restaurante da família durante a pandemia. Para seus pais não se exporem ao vírus, ela suporta uma rotina pesada e solitária, mas está determinada a salvar o restaurante que já tem mais de 50 anos. Porém, quando estranhas sensações começam a surgir, Júlia se pergunta se está ficando louca e se, realmente, está apta a comandar o restaurante. Desesperada para manter seu segredo e proteger seus pais, ela recorre ao único que pode ajudá-la: Braga, o instigante e mulherengo chef do restaurante em frente ao seu.
⭐ O Portal
[fantasia] [medieval] [magia] [amor proibido]
Eles assassinaram sua família, roubaram sua coroa e amedrontaram seu povo. Por dez anos, Hannah se escondeu, mas agora está de volta, morando na fortaleza do inimigo e cada vez mais próxima de Noa Rariff, o herdeiro que, um dia, assumirá o trono dos seus antepassados.
Enquanto finge ser dócil e inofensiva para cumprir a missão deixada por seus pais, Hannah se descobre incapaz de afastar o herdeiro. Suas respostas ácidas, em vez de irritá-lo, o fascinam cada vez mais. Suas tentativas de se esquivar, o atraem até a porta do seu quarto. Dividida entre seguir seu coração e honrar o legado da sua família, ela precisará decidir: é possível confiar no seu maior inimigo?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro