24. Matias
Estamos todos na classe executiva. Eu, Ruth e a secretária Letícia. É claro que assim que entrei no avião já imaginei o que faria se tivesse cinco minutos com Letícia no banheiro do avião. Estou sentado no corredor ao lado de Ruth que já tira um cochilo com suspiros sonoros. Letícia está sentada no corredor do lado oposto, uma fileira à frente, o que me dá a oportunidade de analisá-la com calma.
Ela é diferente do que eu tinha imaginado. Sei que é uma mulher ousada, mas sua aparência é delicada. Seu rosto remete ao de uma boneca antiga, com grandes cílios pretos. Suas expressões são doces e o sorriso branco, raro. Parece estar mais acostumada a dar meios-sorrisos, que escondem seus dentes perfeitos. O cabelo comprido está na frente do seu rosto como uma cortina escura que esconde o nariz pequeno e os olhos...
Os olhos são o meu maior problema.
Quase consigo esquecer o quanto ela se parece com o fantasma do meu passado, mas sempre que vejo os olhos sou transportado para o meu maior pesadelo.
Letícia se remexe na poltrona, apertando as mãos contra os braços ao mesmo tempo em que estremece. Ela usa uma blusa branca fina e levemente transparente. Os botões parecem antigos, e a blusa está grande demais para ela. É quase como se ela tivesse roubado uma roupa de Ruth. Mesmo assim, gosto de como o tecido expõe o quanto está com frio. Ela usa uma calça jeans escura e tênis all star tão surrados quanto os que eu tenho desde a adolescência. Gosto do estilo de Letícia, apesar de ser capaz de admitir que é completamente inovador para a secretária de um dos CEOs mais importantes do país.
As outras assistentes de Ruth sempre foram mulheres de saias caras e terninhos ajustados, saltos impecáveis e até coques no cabelo. Não eram muito diferentes da aeromoça que me oferece uma bebida nesse instante.
Além de ser uma péssima secretária, Letícia ainda parece não ter a menor noção de como uma funcionária costuma se vestir.
A aeromoça serve meu café e segue pelo corredor, oferecendo uma bebida a Letícia. Ela pergunta algo bem baixinho para a aeromoça, obrigando-a a se curvar para ouvi-la. Minha curiosidade dura apenas um segundo, porque a mulher responde em alto e bom som: - Não, senhora. Está incluso na passagem.
Letícia parece se encolher na poltrona, mas acaba pedindo: - Ah... Nesse caso, aceito um café.
Imediatamente, os tênis surrados e a blusa aparentemente emprestada ganham um novo significado.
Será que está passando por alguma dificuldade?
Divago sobre isso enquanto tomo meu café até que ela se levanta, seguindo até o final do avião. Como esse é um voo curto, não tem primeira classe e a executiva termina no banheiro e, depois, na cabine do piloto.
Chego a pegar um impulso para segui-la até o banheiro, mas um ronco de Ruth interrompe essa intenção equivocada.
Seria assédio, Matias, seu tonto.
Ela é sua funcionária.
Seria assédio mesmo se ela não fosse. Seguir uma mulher até o banheiro, encurralá-la dessa forma... Deus sabe que não preciso de atitudes como essa pra muitas me acharem intimidante. Sinto um calafrio só de pensar que uma mulher pode se sentir acuada por mim. Não é a imagem que eu quero passar. Nunca. Muito menos depois de tudo pelo que passei.
Letícia pode ter dado muitas dicas do que quer, mas preciso que ela tome a iniciativa.
Completamente.
Quando ela retorna pelo corredor apertado, seus olhos não pousam em mim, o que me deixa aliviado.
O avião logo começa a descida para São Paulo. Reparo que as mãos de Letícia estão bem agarradas ao encosto. Me pergunto se ela sempre teve medo de avião. Logo depois, uma outra pergunta surge: quantas vezes ela já esteve em um avião? Seria essa a primeira vez?
O dia em São Paulo é cheio como sempre.
Começamos com uma reunião com cara de almoço descontraído em um restaurante italiano. Seguimos para uma visita à filial do Di Esquina que mais vende no país, bem no coração da Avenida Paulista. Percebo, a todo instante, o olhar de Letícia sobre mim. Ela usa o celular para tirar fotos e mostrar a Ruth como capturar ângulos, fazer vídeos e legendas. Quando entramos no carro em direção à última reunião do dia, ela está explicando para Ruth como ela teria que fazer para postar no instagram.
Pergunto se elas já começaram e Ruth me explica, um pouco encabulada, que a Paula pediu para elas enviarem as fotos para ela.
Os posts seriam feitos de lá.
Argumento que não foi esse o combinado, que a ideia era que elas fizessem tudo sozinhas.
Insisto nessa ideia mais uma vez, apesar dos meus motivos contraditórios. A verdade é que eu tenho medo dessa imagem de cara exemplar e perfeito que a equipe de marketing quer criar. Se eu conseguir que isso fique na mão de Ruth, posso ter mais controle do que vai ser postado.
Não quero - na verdade, não posso - de jeito nenhum que me retratem como o Sr. Correto CEO do Momento. Seria um grande erro, tanto em relação a mim quanto em relação à empresa.
Pego o celular com a conta do instagram e verifico o perfil criado pela equipe de marketing. É como eu temia: uma foto extremamente formal e posada, em que uso terno e gravata, contra um fundo branco. A bio é ainda pior: CEO da Bernardi CMB.
Qual o sentido de criar uma rede social para o público gostar de mim se vão me vender como um fantoche corporativo?
Ruth diz que não quer contrariar Paula e eu não quero deixá-la em uma situação delicada. Sei que já foi difícil acumular isso, além de todas as suas outras funções.
O carro para no hotel que sempre costumo ficar, mas agora o vejo com novos olhos. Ruth está obviamente cansada e feliz por terminar o dia, mas Letícia observa o saguão com curiosidade. Uma gerente que sempre cuida da minha reserva já está me esperando e se surpreende quando descobre que, dessa vez, não estou sozinho. Peço a ela que cuide das minhas funcionárias, já que eu conheço o hotel como se fosse a minha casa.
Tenho mais uma ligação pra fazer antes de dar o dia por encerrado e logo subo para o meu quarto.
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