1. Letícia
⁃ A senhorita tem um currículo muito impressionante - elogia a senhora grisalha à minha frente. Ela usa um terninho rosa com a gola ligeiramente puída. Reparo que as mãos tremem enquanto ela manuseia o papel onde meu currículo foi impresso.
⁃ Tive muitas oportunidades boas - minto. Inconscientemente, passo os dedos no nariz e logo me arrependo.
Movimento clássico dos mentirosos, Letícia. Você treinou para isso, o que deu em você agora?, me repreendo.
Torço para a secretária Ruth não ter percebido nada. Ela aperta um pouco os óculos contra o rosto enrugado para ler o restante do meu currículo fictício.
⁃ Você tem experiência em algumas multinacionais importantes e também muita habilidade com esses programas novos de computador...
Excel e word estão longe de serem programas novos, mas eu não vou discordar, então balanço a cabeça e abro um sorriso humilde: - Caso vocês usem algum sistema diferente, terei o maior empenho em aprender.
Ela levanta os olhos cansados com uma expressão divertida: - Ah, eu uso um sistema diferente, com certeza.
Ela toma um gole do café com leite e logo me pergunta quais as minhas três maiores qualidades. Fico com a impressão de que a Sra. Ruth não faz muitas entrevistas e parece seguir um manual de como selecionar um candidato diretamente dos anos 70.
⁃ Sou uma pessoa muito organizada - começo e, dessa vez, não estou mentindo. Foi preciso muita organização e planejamento para colocar o meu currículo nas mãos dessa senhora. Apesar de ela ser claramente ultrapassada para o cargo que ocupa, Ruth está exatamente onde eu preciso estar. - Sou extremamente dedicada e comprometida com meus objetivos - outra verdade. Não vou desistir facilmente do meu plano. Estou aqui por um motivo e vou cumpri-lo custe o que custar. - E bem... Acredito que sou reservada e discreta o suficiente para o cargo.
Ela assente com aprovação e comenta: - Não somos uma multinacional, mas os compromissos do Sr. Bernardi são tão sigilosos quanto se ele fosse CEO de uma empresa mundial. Arrisco dizer que, em breve, seremos uma.
Ela dá uma piscadinha satisfeita e penso que a conquistei. Me arrumo na cadeira, ficando um pouco mais relaxada.
Isso está indo bem.
Muito bem.
⁃ Bom, suponho que agora eu deva perguntar sobre os seus maiores defeitos... E não me venha com perfeccionista! - ela ri da própria piada e eu a acompanho, mas, como todo entrevistado, fico nervosa. É claro que "perfeccionista" estava na minha lista fabricada de defeitos e agora estou com apenas dois defeitos em mente.
⁃ Para ser sincera, acho que meu maior defeito é a gula. Preciso de um lanchinho da tarde e um cafezinho, se a senhora me entende... Esse escritório é perigosamente perto do Café&Bolo, minha confeitaria favorita!
Ruth abre um sorriso largo e logo começa a rir. Sei que ela me entende, porque eu a observo há algumas semanas e, todos os dias, ela faz uma paradinha à tarde no Café&Bolo.
⁃ Ora, ora... Eu estaria sendo hipócrita se não dissesse que esse também é um dos meus pecados... O bolo de milho é, com certeza, uma das minhas maiores fraquezas...
⁃ E o rocambole de goiabada? - sou apaixonada por esse doce, mas digo isso somente porque já vi Ruth pedindo algumas vezes.
Logo estamos rindo e trocando opiniões sobre doces e cafés. Torço pra ela ter esquecido da pergunta sobre os defeitos, mas, eventualmente, ela volta ao rumo.
⁃ Preciso de mais um defeito, Letícia - pede a risonha senhora.
⁃ Bem, devo confessar que fico um pouco sonolenta nas quartas-feiras de manhã - admito com um sorriso misterioso. Ruth me observa com curiosidade e, quando explico o motivo, seu rosto se ilumina: - Sou incapaz de perder um episódio de Masterchef.
Não chega a ser uma mentira. Eu e minha avó assistimos religiosamente desde que Elisa venceu o Mohindi em 2014, mas não é por esse motivo que menciono o programa. A casa de Ruth fica convenientemente virada para a praça principal de Aroeiras, assim como a casa da minha avó, e não foi difícil me sentar em um banco, acompanhada de um livro, e anotar quais programas faziam companhia à senhora solitária. Eram muitos e preencheram uma lista com mais de dez, porém o programa culinário é um evento. Toda terça-feira, Ruth recebe a amiga Janete para uma noite de petiscos, vinho e torcida para o próximo masterchef Brasil.
Por isso, nas quartas-feiras, Ruth pede um café duplo no Café&Bolo antes de passar pela porta giratória da sede da Bernardi CMB.
O assunto se desvia das minhas habilidades como secretária para os últimos acontecimentos do programa de TV e penso que consegui fazê-la se esquecer de me perguntar o terceiro defeito.
⁃ Não posso culpá-la, sou uma grande fã do Chef Jacquin!
⁃ Mas claro que não gostaria de trabalhar pra ele!
⁃ Com certeza não! - ri a senhora e logo faz uma cara engraçada, como se ela pudesse ser uma chefe tão rigorosa quanto ele: - Mas não pense que terá uma vida fácil aqui na Bernardi, menina!
Sorrio e balanço a cabeça em negativa, satisfeita. Ela já está falando como se eu estivesse contratada.
Estou dentro.
A primeira etapa já foi cumprida...
⁃ E a sua terceira fraqueza? Qual seria? - pergunta Ruth, me surpreendendo com a sua capacidade de seguir o roteiro. Resolvo ser franca.
⁃ Para ser sincera, eu ia dizer perfeccionista, mas agora não consigo pensar em mais nada...
A senhora sorri, aprovando a minha resposta honesta, mas há uma ruga de preocupação entre os seus olhos gentis.
⁃ Bem, eu devo dizer que consigo pensar em um problema, Letícia... - os olhos dela miram as minhas mãos e sei no que ela está reparando. A marca no meu dedo. - Aqui no seu currículo diz que você é casada, mas, me perdoe a indiscrição, não vejo um anel.
Abaixo os olhos, fingindo constrangimento, enquanto pego fôlego para a atuação da minha vida. Esfrego o dedo anelar, agora despido do anel que usei por poucas semanas, fazendo questão de sempre deixar a mão descansando em dias de sol.
⁃ Aconteceu depois que enviei o currículo e não pensei que precisaria atualizar... Passamos por um divórcio, mas posso garantir que isso não vai atrapalhar meu desempenho... - digo com um olhar suplicante.
Ruth mexe nervosamente no botão do seu terninho e sei que está diante de um dilema. Ela não pode me dizer diretamente, mas sei que eu nunca teria conseguido essa entrevista se estivesse solteira.
Nos últimos anos, Ruth teve diversas assistentes. E grande parte delas não estava realmente interessada no trabalho. Elas queriam apenas a oportunidade de estar perto do Sr. Bernardi, o herdeiro da Bernardi CMB para quem Ruth trabalha diretamente.
É o que eu quero também, mas estou tomando todos os cuidados para que Ruth jamais descubra.
⁃ Sinto muito pelo seu casamento - diz a secretária após alguns segundos de reflexão.
⁃ Ah, não se preocupe. Ele não era um bom marido... Mas era ele quem tinha o maior salário. É por isso que estou querendo voltar para Aroeiras, sabe? Aqui, posso viver com a minha avó, terei um custo de vida mais baixo do que na capital... Além disso, cá entre nós, essas multinacionais não pagam tão bem...
A secretária parece satisfeita em saber que a tradicional Bernardi CMB ainda oferece um salário melhor que o do mercado. Ela ajeita os óculos enquanto me avalia. Sei que está pensando que sou perigosamente jovem e atraente demais para o cargo, mas me vesti meticulosamente para evitar qualquer vestígio de pele. Uso uma blusa de gola alta e babados brancos que me faz parecer uma jovem recatada e pura. Meus cabelos pretos estão presos em uma trança lateral, que remete à época da minha avó. A calça social que escolhi não é apertada, nem mesmo acinturada, não permitindo qualquer sinal de sensualidade. Por cima da gola branca da minha blusa, uso um colar prateado com uma cruz delicada. É a única peça de todo esse visual que eu realmente uso e, curiosamente, desperta a atenção da senhora.
⁃ Você frequenta a Igreja?
Nunca.
⁃ Com a minha avó - respondo. Também não é uma mentira. Eu costumava ir à Igreja com a minha avó, quando ainda morava em Aroeiras, mas já se passaram muitos anos desde que deixei a cidade.
⁃ É um belo colar.
⁃ Era da minha mãe - deixo escapar.
Ela parece notar o pesar no meu tom de voz, mas não pergunta mais nada.
⁃ Bem, Letícia, vamos entrar em contato - diz a secretária. Por um minuto, me pergunto se perdi a chance, mas ela logo questiona: - Você ainda não está morando aqui, não é mesmo? Precisaria de quanto tempo para voltar para a cidade?
⁃ Nenhum. Consigo estar aqui em um dia.
⁃ Mas e o seu antigo emprego...
⁃ Ah, uma vez que alguém pede demissão, eles não deixam a pessoa cumprir o aviso prévio. Tem algo a ver com as informações confidenciais.
⁃ Então, está dizendo que poderia começar imediatamente?
⁃ Com toda a certeza - garanto, abrindo o meu maior sorriso.
Agora sim.
Estou dentro.
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