Um ano depois
O violoncelo repousava entre meus joelhos, e o som das cordas preenchia o escritório com uma melodia suave e melancólica. Meus dedos deslizavam com precisão sobre as cordas, mas minha mente estava longe, perdida em lembranças que pareciam sempre à espreita, esperando o momento certo para me puxar de volta.
Lembro-me da poltrona dura e desconfortável do hospital. Do cheiro de antisséptico, das paredes brancas e frias que pareciam sufocar, e do som constante das máquinas monitorando cada batida do coração da minha mãe. Eu ficava ali, sentada ao lado dela, segurando sua mão inerte, tocando meu violoncelo baixinho. Às vezes, imaginava que ela podia ouvir. Que talvez, em algum lugar dentro daquele coma profundo, as notas encontrassem um caminho até ela.
O médico sempre murmurava palavras que pareciam distantes, como se fossem dirigidas a outra pessoa. "Estamos fazendo o possível." "Só o tempo dirá." Mas para mim, o tempo havia se tornado um conceito estranho, estagnado entre o passado que eu queria esquecer e o futuro que eu não sabia se conseguiria enfrentar.
Cada nota que eu tocava naquela poltrona era uma tentativa desesperada de preencher o vazio que havia se instalado dentro de mim. Mas ele nunca diminuía. Eu me lembrava de como era antes. Da risada alta de Lucas ecoando pela casa, dos conselhos calmos do meu pai enquanto eu praticava, da presença constante da minha mãe. Tudo tão... normal.
Até que não era mais.
Suspirei, abrindo os olhos e me encontrando de volta ao escritório, cercada por prateleiras repletas de livros e fotos que agora pareciam pertencer a outra vida. A luz da tarde entrava pela janela, lançando sombras suaves sobre a mesa onde meu pai costumava se sentar para trabalhar. Por um instante, quase pude vê-lo ali, de cabeça baixa, concentrado, até a realidade me puxar de volta.
Minha mãe sobreviveu ao acidente, mas às vezes eu me perguntava se havia sobrado algo dela além da respiração fraca e dos olhos vazios que raramente me reconheciam. A casa estava cheia de silêncio, mas era um silêncio pesado, denso, que me lembrava constantemente do que foi perdido.
Fechei os olhos e deixei que a música fluísse novamente. Porque era isso que eu tinha agora. O violoncelo, as lembranças, e aquela dúvida insistente que nunca me abandonava:
As coisas voltariam a ser como antes?
_______
O rangido da cama hospitalar no andar de cima balançando repetidamente me trouxe de volta. O som era lento, ritmado, como um lembrete constante de que minha mãe ainda estava lá – viva, mas distante. Às vezes, à noite, eu ouvia o motor da cama ajustando sua posição automaticamente, um zumbido baixo que se misturava aos meus pensamentos. Era quase como se a casa inteira respirasse com ela, esperando, assim como eu, por algo que nunca vinha.
Minha mãe estava em casa há meses, mas a sensação de hospital nunca nos deixou. O cheiro de desinfetante impregnado nos cômodos, os pacotes de gaze empilhados na mesa da cozinha, os remédios cuidadosamente organizados ao lado da cama. Eu evitava subir até seu quarto. Não porque não me importasse, mas porque estar lá era como voltar para aquele hospital frio, para as noites em claro e para a dor constante de esperar por um milagre que eu já não tinha certeza se aconteceria.
Eu puxei o arco do violoncelo novamente, tentando me concentrar na música, mas a lembrança era persistente. Vi-me mais uma vez naquela poltrona azul do hospital, segurando a mão da minha mãe, observando a respiração fraca e estável, esperando alguma reação, qualquer sinal de que ela ainda estava ali comigo. A enfermeira entrava e saía em silêncio, trocava os lençóis, verificava os monitores, sempre com aquele olhar de compaixão que eu odiava.
A música falhou. Meus dedos tremularam por um segundo e uma nota estridente preencheu o ar.
Suspirei, fechando os olhos e inclinando a cabeça contra o violoncelo. A dor no peito era familiar agora. Parte de mim queria voltar no tempo, agarrar-me à rotina confortável de antes. Mas a outra parte sabia que não havia mais volta.
O rangido da cama ecoou novamente, um lembrete insistente de que a vida continuava – de um jeito ou de outro. Talvez fosse esse o problema. Ela continuava sem nos esperar.
________
A campainha tocou, quebrando o silêncio espesso da casa. Um som quase estranho naquele cenário, onde o tempo parecia ter parado. Olhei na direção da porta e hesitei por um momento, sabendo que era meu grupo de amigos. Eles sempre vinham, tentando me distrair, mesmo quando eu me sentia completamente ausente.
Respirei fundo e me levantei do violoncelo, ajustando minha blusa. Cada passo em direção à porta parecia mais pesado que o anterior, como se cada um fosse um lembrete de que a vida continuava, mas eu ainda estava presa no passado.
Quando abri a porta, encontrei todos ali, parados no corredor, com um sorriso gentil e, ao mesmo tempo, a cautela nos olhos. Ana foi a primeira a falar.
— Ei, você não tem que fazer isso, sabe? Podemos conversar sobre outra coisa — disse ela, com a voz suave, mas cheia de uma preocupação que sempre estava presente em nossa amizade.
Eu tentei sorrir, mas não consegui. Em vez disso, apenas dei espaço para que todos entrassem. Marcos, Júlia e Tiago seguiram Ana para dentro da casa, com a mesma expressão de sempre — uma tentativa de normalidade, de trazer algo de bom para minha vida.
— Trouxemos comida — Tiago disse, com aquele tom animado que sempre tentava usar para levantar o espírito de todos. — Vamos tentar fingir que tudo está bem por algumas horas.
Eu só assenti, sem saber o que dizer. A casa estava cheia de coisas que não faziam mais sentido. As risadas, as conversas, os gestos... tudo parecia tão distante. Sentia-me como se estivesse assistindo a uma peça de teatro em que os outros eram os atores e eu, uma espectadora incapaz de se conectar.
Ana e Júlia se acomodaram no sofá, começando a abrir os pacotes de salgadinhos e refrigerantes. Marcos foi até a janela, observando a rua. Tiago se sentou ao meu lado, mas não falou nada. Ele sabia que não era o momento. Eu sabia que o silêncio, embora desconfortável, era a única coisa que eu podia oferecer.
Eu os observava enquanto eles tentavam manter a conversa fluindo, falando sobre um novo filme que todos queriam assistir ou o evento da faculdade que se aproximava. Eles queriam me manter na realidade, queria me afastar, nem que fosse por um momento, do que acontecia no andar de cima, mas não consegui. A cama hospitalar no quarto de minha mãe rangia lentamente, o som sutil penetrando o silêncio da casa, lembrando-me o tempo todo que ela estava lá, em coma, imóvel, mas respirando.
Júlia olhou para mim de repente, como se tivesse lido meus pensamentos.
— Como ela está hoje? — perguntou, com voz baixinha, e eu senti uma pontada no peito. Ela sabia que eu não gostava de falar sobre isso. Sabia que isso me fazia sentir ainda mais sozinha.
Tentei sorrir novamente, mas foi em vão. O sorriso não chegou aos meus olhos, não dessa vez.
— Está igual — respondi, minha voz se quebrando um pouco. — Mas... obrigada por estarem aqui.
Marcos se virou da janela, olhando-me de maneira compreensiva, mas sem saber o que dizer. Ele tentou mudar de assunto novamente, puxando uma conversa sobre um jogo de videogame que ele tinha jogado, mas eu não estava ouvindo. A cama rangia no andar de cima e o som da minha mãe respirando parecia sempre tão distante, como se ela estivesse em outro mundo.
Eu queria ser capaz de me desconectar, de rir com eles e fingir que nada disso estava acontecendo. Mas era difícil. Tão difícil.
Então, sem mais palavras, Tiago se levantou e foi até o violoncelo, onde eu o havia deixado na poltrona. Ele o pegou com cuidado, com a mesma reverência que eu usava quando tocava.
— Quer tocar algo? — perguntou ele, olhando-me com um sorriso suave, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Fiquei parada por um momento, hesitando. Não sabia se conseguiria tocar sem que minha mente voltasse para o hospital, para minha mãe, para aquele som constante da cama rangendo. Mas, ao olhar para ele, vi que meus amigos estavam ali para me ajudar a seguir em frente, mesmo que fosse por algumas horas.
Eu apenas assenti.
Tiago se acomodou no sofá, e eu peguei o violoncelo novamente, posicionando-o entre minhas pernas. Não sabia o que ia tocar. Talvez uma melodia qualquer, algo que me permitisse esquecer, mesmo que por um momento. O som das cordas preenchendo a casa, tentando afastar as sombras que me perseguiam.
Enquanto começava a tocar, uma sensação estranha me tomou. Mesmo rodeada pelos meus amigos, ainda me sentia sozinha.
__________
Mais tarde, enquanto o som abafado da conversa de meus amigos se fundia com o ambiente tranquilo da casa, me vi subitamente distraída por uma lembrança distante. Eu estava sentada no sofá, tentando acompanhar os risos, mas algo em mim se distanciava gradualmente do que estava acontecendo ali. Então, sem mais nem menos, como se fosse uma fuga simples, a ideia de adedonha invadiu minha mente. Não era algo que eu planejava pensar, mas de alguma forma, a lembrança de um jogo que costumávamos jogar na infância apareceu, trazendo consigo uma sensação de leveza.
"Fruta com a letra P", pensei, e logo meu cérebro começou a trabalhar, tentando vasculhar todas as opções possíveis. Fui engolida por essa pequena distração, que parecia ter o poder de desviar meu foco das coisas mais pesadas que me cercavam.
Pera. Claro, essa era fácil demais. Eu queria algo mais... desafiador, talvez. Pêssego? Não, também parecia óbvio. O jogo começou a se transformar em uma busca quase divertida, como se eu tivesse começado uma caça ao tesouro mental. Olhei para Ana, que estava sorrindo timidamente ao meu lado, e compartilhei a brincadeira com ela, talvez em um impulso, buscando uma conexão momentânea com a simplicidade que o jogo oferecia.
— Pineapple (abacaxi), disse Ana, sorrindo de forma brincalhona. Eu ri baixinho, tocando a ponta dos dedos no violoncelo, sem saber bem por quê.
— Hm... plátano — eu respondi de volta, como se fosse uma palavra mágica que tivesse surgido sozinha, apenas para brincar com a leveza do momento.
E então, sem perceber, os risos que surgiram em torno da nossa brincadeira quase me fizeram esquecer, por um segundo, do peso da minha vida nos últimos meses. Não era exatamente uma felicidade, mas era como se algo suave tivesse tocado o ar, uma pausa em meio ao turbilhão.
A conversa fluiu naturalmente em torno do jogo, com alguns outros tentando listar frutas diferentes, algumas mais criativas, outras mais engraçadas. O tempo parecia se arrastar lentamente, mas de uma forma quase acolhedora. Eu me permitia esquecer por um instante do que estava em cima, da cama hospitalar, da máquina de respiração, da imobilidade do corpo de minha mãe.
No fundo, percebia que talvez esse jogo simples fosse a forma que meus amigos tinham de me ajudar a encontrar um pouco de paz no caos, mesmo que temporário. E, por mais que eu tentasse me manter distante, algo em mim finalmente se permitiu sorrir com eles, apenas por um momento.
Quando o silêncio caiu novamente, não havia mais a sensação de dor imensa, apenas uma sensação suave, quase imperceptível, de que a vida seguia, e que talvez eu não precisasse carregar o mundo o tempo todo.
_________
Eu fiquei ali, observando a porta se fechar com um clique suave, deixando o silêncio tomar conta da casa. O som dos passos dos meus amigos se afastando ainda ecoava na minha mente, mas logo se dissipou, substituído pelo peso da solidão. Eu sabia que eles estavam tentando me ajudar, mas, na realidade, só eu poderia dar o próximo passo. A vida, com seus altos e baixos, me empurrava para frente, mesmo que eu não tivesse forças para seguir.
Olhei para o relógio na parede, as horas passando lentamente. O dia já estava indo embora, mas a sensação de incerteza sobre o futuro não me deixava em paz. A casa, agora vazia, parecia amplificar tudo o que estava dentro de mim. A bagunça na mesa, os papéis espalhados que nunca pareciam ter fim, as dívidas que não davam trégua. Tudo me puxava para trás, me lembrava das coisas que não consegui controlar.
De repente, ouvi a voz de Ana, seguida pela de Tiago, como um eco distante: "Até segunda?" Eles tinham dito isso antes de sair, com um sorriso meio incerto, tentando me animar, tentando me dar algo para esperar. Mas, no fundo, eu sabia que não era só isso. Não era só sobre voltar para a faculdade ou participar de uma competição.
Era sobre tentar reconstruir o que ainda podia ser salvo dentro de mim.
Eu sorri, mesmo sem vontade, me perguntando se havia realmente algo que eu poderia fazer para mudar minha realidade naquele momento. Não, não podia mudar tudo de uma vez, mas talvez uma pequena ação, um pequeno passo, fosse o que eu precisasse para voltar a respirar. Para sentir que, de algum modo, eu ainda tinha controle sobre algo.
Olhei para a porta, e, por um instante, imaginei Ana e Tiago lá fora, esperando uma resposta. Mesmo que não estivessem mais ali, seus rostos ainda estavam gravados na minha mente. "Até segunda", eu repetia para mim mesma, como se fosse um lembrete.
A palavra parecia simples, mas estava carregada de um significado profundo. Talvez o futuro não fosse tão claro quanto eu gostaria, mas um novo começo, por mais sutil que fosse, podia estar mais perto do que eu imaginava.
Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo, tentando me acalmar. E então, em voz baixa, como se estivesse falando comigo mesma, murmurei:
— Até segunda.
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