Capítulo 9| Ao menos isso
A noite parecia mais quieta do que nunca, como se a casa estivesse em um estado de suspensão, esperando que algo acontecesse. Eu estava sentada na sala, meu violão nas mãos, as cordas ainda vibrando da última tentativa frustrada de criar algo que fizesse sentido. O silêncio da casa me sufocava, e o peso da ausência de uma melodia me deixava inquieta. Era como se todas as palavras estivessem presas na minha garganta, e as notas musicais não queriam se alinhar. Eu estava bloqueada, paralisada por uma ideia que não conseguia prender, por uma emoção que não conseguia traduzir em som.
Me afastei um pouco, largando o violão na cadeira próxima e indo até a janela, observando as luzes fracas das casas vizinhas piscando na distância. As árvores balançavam suavemente, acompanhando o ritmo do vento que começava a aumentar, e lá fora tudo parecia calmo, sereno, em contraste com o turbilhão que acontecia dentro de mim. A cada respiração profunda, a sensação de frustração crescia. Eu queria tanto que as coisas fluíssem, que tudo se encaixasse de forma orgânica, mas, no lugar disso, eu estava aqui, lutando contra um vazio criativo.
Uma leve batida na porta interrompeu meu monólogo interno. Olhei para a porta, quase como se não acreditasse que alguém realmente estivesse ali, já que eu esperava por mais um tempo de solidão. A batida se repetiu, mais forte, como um pedido para ser atendida. Levantei-me com um suspiro, irritada por não ter o controle sobre aquele momento. Eu odiava quando as coisas fugiam do meu alcance.
— Pode entrar — disse, quase sem querer. O tom de minha voz traía o cansaço e a frustração que eu estava sentindo.
A porta se abriu com suavidade, e uma figura entrou na sala. Era Ana, com o cabelo bagunçado como se tivesse saído de algum lugar apressada. Ela me observou por um momento, como se tentasse entender o que estava acontecendo.
— Eu vi a luz acesa e decidi dar uma olhada — ela disse, sua voz casual, sem pressa. Ana tinha essa habilidade estranha de se mover de forma tranquila, como se nada no mundo pudesse ser pressa ou agonia para ela. Isso, de algum jeito, me irritava.
Olhei para o violão que ainda estava sobre a cadeira, como se ele fosse a coisa mais difícil do mundo para lidar naquele momento. Eu queria dizer algo, me abrir, mas a última coisa que eu queria era ser vista como alguém fraca, alguém que não sabia lidar com o próprio processo criativo. A última coisa que eu queria era ser a pessoa que estava implorando por ajuda em meio ao próprio caos. Então, ao invés disso, olhei para Ana e forcei um sorriso.
— Ah, você sabe, só tentando organizar minhas ideias... — disse, tentando parecer casual, mas sabia que não enganei nem a mim mesma.
Ela levantou uma sobrancelha, um sorriso travesso tomando conta do seu rosto. Eu sabia o que estava prestes a acontecer. Ela ia me zoar. E, em um momento como aquele, a última coisa que eu queria era que ela fizesse piada sobre a minha falta de inspiração. Eu não estava pronta para ouvir a velha piadinha sobre "bloqueio criativo".
— Você? Organizando ideias? Isso é quase uma metáfora, não? — Ana falou, dando um passo mais perto de onde eu estava. Ela parecia se divertir, mas, no fundo, sabia que eu estava irritada com o que ela estava insinuando.
Respondi com um olhar de reprovação, tentando disfarçar a minha frustração. Ela estava, de certa forma, certa. Eu não estava organizando nada. Estava tentando entender o que estava acontecendo comigo, por que a música não vinha. Por que a ideia não se formava da maneira como eu imaginava. Por que tudo parecia um grande borrão, um emaranhado de pensamentos e sentimentos sem forma.
— Não estou fazendo metáforas. Só estou tentando... — eu comecei, mas a interrupção foi rápida.
— Tentando o quê? Encontrar a sua alma perdida no violão? — Ana continuou com a zombaria, e, por mais que eu estivesse irritada, uma risada involuntária saiu de mim. A ironia da situação me atingiu com uma clareza desconfortável. Era exatamente o que eu estava tentando fazer, de certa forma. Encontrar a minha alma na música.
Ela se aproximou mais, olhou o violão e me deu um tapinha leve no ombro, como se estivesse tentando ser reconfortante, embora suas palavras estivessem longe de qualquer consolo.
— Você sempre fica assim, não é? Quando não consegue encontrar o que está procurando. — Ana observou. Sua voz não era zombeteira, mas sim um pouco mais séria. Eu senti a diferença, como se ela realmente estivesse tentando entender o que se passava na minha mente.
Eu não sabia como explicar. Eu não sabia nem por onde começar. A música, para mim, sempre foi mais do que notas ou palavras. Era um reflexo, uma extensão do que eu sentia e pensava. Quando ela não vinha, quando eu não conseguia capturá-la, parecia que estava perdendo uma parte de mim mesma. Era como tentar prender um vento que se esvaía a cada tentativa.
Olhei para o piano, suas teclas brancas e pretas, esperando ser tocadas. Eu sabia que o que eu precisava não era de um tapa nas costas ou de uma piada. Eu precisava de algo mais profundo, mais real. Mas, como pedir isso? Como pedir algo que não sabia como encontrar?
Ana parecia entender o que estava passando pela minha cabeça, ou talvez fosse só sua percepção aguçada, mas, de alguma forma, ela pegou o violão e o colocou de volta sobre a cadeira com suavidade, como se estivesse me dando permissão para descansar. Era como se ela me dissesse, sem palavras, que estava tudo bem não saber a resposta agora.
Ela caminhou até o piano e sentou-se diante dele, com uma expressão mais séria, mais concentrada. Eu fiquei observando, esperando que ela começasse a tocar, mas não foi isso que aconteceu. Ela apenas tocou algumas teclas aleatórias, sem pressa, sem expectativa. Só o som das notas preenchendo o ar.
Eu a observei por um tempo, sem saber o que pensar. Era como se ela estivesse me mostrando algo sem sequer tentar. Algo que eu não conseguia ver, ou talvez não quisesse ver. A leveza com que ela lidava com a música, como se tudo fosse apenas parte do processo, era algo que eu estava perdendo de vista. E eu precisava aprender de novo a ser leve, a não carregar todo o peso da criação como se fosse uma obrigação.
— Você não precisa forçar as coisas, sabe? A música vai vir quando for o momento certo — Ana disse, sua voz suave, sem a usual brincadeira. Ela parecia ter percebido que eu estava tentando lidar com algo muito maior do que apenas um bloqueio criativo.
Eu respirei fundo e, pela primeira vez naquela noite, senti uma leveza no peito. Não era que eu tivesse encontrado a resposta ou que a música fosse aparecer magicamente, mas, talvez, fosse só uma questão de dar espaço para as coisas acontecerem no tempo delas.
— Acho que você tem razão — respondi, sorrindo de leve, com um suspiro. — Eu estou tentando demais. Talvez eu só precise de um pouco de tempo.
Ana olhou para mim com um sorriso quase imperceptível, mas eu sabia que ela estava feliz por eu ter finalmente admitido aquilo. A sala estava silenciosa, mas dessa vez, o silêncio parecia mais confortável. Eu não precisava mais lutar contra ele. A música viria, quando fosse a hora.
__________
Eu estava em pé, ainda diante do piano, a luz fraca da lâmpada ao lado lançando sombras suaves sobre as teclas. A sala estava quieta, a única companhia era o leve som da respiração que se misturava com o farfalhar da madrugada. Tudo ao meu redor parecia ter desacelerado, o mundo lá fora desaparecendo enquanto eu focava em um único ponto: o piano à minha frente. Eu havia chegado tão longe, mas ainda havia algo que eu precisava concluir. Uma última nota, um último toque, algo que estava faltando para que a música finalmente fizesse sentido.
Há duas semanas, tudo parecia perdido. Eu me sentia como se estivesse andando em círculos, sem rumo, sem saber para onde minhas emoções me levavam. A música que eu tentava criar parecia se esquivar, se desfazer antes que eu pudesse sequer entender o que era. Cada tentativa soava inacabada, como se minha alma estivesse incompleta, incapaz de transparecer algo claro através das notas. Mas agora, depois de tanto esforço, eu sabia que havia algo ali. Algo de verdade, algo que estava pronto para ser ouvido.
Meu olhar se fixou nas teclas, e as mãos se moveram, quase por instinto, para o lugar exato onde as notas começavam a formar as linhas de uma melodia que se encaixava. Algo que era meu, algo que refletia o que eu sentia, mas que ainda estava escondido. Eu sabia que havia encontrado a chave, uma maneira de expressar tudo o que estava dentro de mim, e, ao fazer isso, tudo ao meu redor parecia ganhar um novo significado. Mesmo a sala silenciosa, o piano, o som das teclas sendo pressionadas, tudo se tornava parte desse momento.
Eu havia dedicado tanto tempo a isso. Dois meses. Cada dia passado em busca de algo mais profundo. Em cada tentativa frustrada, eu encontrava uma nova forma de me entender, de me expressar, de lidar com as emoções que não sabia como comunicar. A música tinha sido minha válvula de escape. Eu precisava dela como nunca antes. Não só para os outros, mas para mim mesma. Ela estava me moldando, me transformando, e eu não conseguia mais imaginar uma vida sem essa jornada.
O primeiro movimento da música saiu com facilidade. Eu ainda estava insegura, mas, à medida que as notas se conectavam, um novo tipo de confiança crescia dentro de mim. As dificuldades que eu tinha enfrentado nos últimos dias pareciam desaparecer. O piano tornou-se o meu refúgio, um lugar onde eu podia ir e simplesmente ser. Não havia mais pressa. Eu poderia finalmente respirar e sentir que estava no lugar certo.
A melodia se desenvolvia aos poucos. Eu passei de uma simples progressão de acordes para algo mais complexo. As notas fluíam como se a própria composição estivesse viva, respondendo à minha vontade de criar, de me expressar. A música começou a tomar forma de uma maneira que eu não tinha conseguido antes. Eu já não estava tentando forçar algo que não existia. Eu estava simplesmente sendo. O piano estava me guiando, e eu estava apenas seguindo.
Havia algo de libertador nisso, como se, ao tocar cada acorde, estivesse me libertando de algo que estava preso dentro de mim. Cada nota parecia cortar as camadas de confusão e angústia que me envolviam. Eu estava criando algo, não apenas com as mãos, mas com o meu coração. Eu poderia finalmente ver o que estava faltando. Estava tudo ali, em cada tecla, em cada pausa, em cada mudança de dinâmica.
Eu sabia que ainda havia muito o que fazer. A música estava longe de estar finalizada. Eu precisava ajustar algumas partes, encaixar outras. Eu queria que ela fosse perfeita, mas sabia que a perfeição não existia. O importante era o que ela significava. O que ela representava.
De repente, o peso de todo esse processo começou a cair sobre mim. Eu tinha me afastado por tanto tempo, concentrada na música, nas notas, nos acordes. Era como se o tempo tivesse se distorcido, e eu não me desse conta de como o relógio havia avançado. Eu olhei para a janela e percebi que a madrugada havia passado, e a primeira luz do dia já começava a se insinuar por entre as cortinas. O sol estava prestes a nascer, e eu, aparentemente, não havia notado o quanto o tempo havia voado.
Minha mente estava mais clara agora. Eu sabia o que precisava ser feito. A última parte da composição estava ao alcance das minhas mãos, eu só precisava encontrar as palavras, a melodia certa. Eu toquei as teclas novamente, agora com uma sensação de urgência. Eu não sabia o que viria depois, mas eu sabia que, naquele momento, estava dando tudo o que eu tinha.
O tempo pareceu desacelerar enquanto minhas mãos dançavam sobre o piano. A música tomava forma diante dos meus olhos, e eu sabia que, quando finalmente concluísse, tudo faria sentido. Aquela melodia que parecia distante e incompleta agora estava quase inteira, quase ali. Eu podia senti-la em minha pele, em cada movimento que eu fazia. Era como se, ao tocar, eu estivesse tocando algo muito maior do que eu mesma.
Foi quando, finalmente, as últimas notas saíram. Não houve grande celebração. Eu não me joguei para trás, não respirei aliviada. Eu apenas parei. Olhei para o piano e fiquei ali, absorvendo a magnitude do que acabara de acontecer. A música estava completa.
Eu sabia que ainda teria muito o que fazer depois. Havia os ajustes, as correções, o momento de compartilhá-la. Mas, por enquanto, estava ali. Eu havia colocado tudo o que eu tinha. Eu havia dedicado tanto a isso, e agora, finalmente, a música estava completa.
Fiquei sentada por um tempo, ouvindo o silêncio após a última nota. Eu estava cansada, mas satisfeita de uma forma que eu nunca havia experimentado antes. Era como se tivesse colocado toda a minha alma naquele piano, como se o som da música tivesse saído do meu próprio ser. Eu finalmente tinha feito isso. Não era apenas uma música. Era uma parte de mim. Ela era minha história, minha luta, minha verdade.
Eu respirei fundo e me levantei. Não havia mais nada que eu precisasse fazer. Eu sabia que estava pronta. A música estava pronta. Eu estava pronta. Agora, só restava compartilhar.
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