CAPÍTULO 7 - PRIMEIRA LEMBRANÇA
— Você podia fingir ser menos esquisita, né? — falou Mirela, enquanto as duas desciam o corredor até a área de treinamento.
— Não entendi.
— É melhor você ficar calada do que ficar dando bandeira como fez ontem na hora do almoço com o João. Desse jeito, logo, logo vão perceber que você não é daqui e nem de nenhuma outra célula. Parece até um bicho do mato!
O sol havia sumido atrás de algumas nuvens e a leve brisa agitava alguns fios que teimavam em se soltar da trança de Clara. O local estava cheio de gente e ao fundo, alguns trocavam socos e golpes enquanto outros treinavam tiro. Outros ainda, utilizavam aparelhos um pouco enferrujados para fazer algum tipo de exercício desconhecido para Clara. Mesmo esforçando-se em focar apenas em Mirela e suas passadas largas e decididas, tão logo adentrou o campo de treinamento, os olhos de Clara buscaram por Daniel, mas ele não estava ali. Talvez com Gaspar ou...em algum lugar com a namorada.
— A Nana me disse para pegar leve com você por causa da sua cabeça, então hoje vamos apenas treinar tiro, ok? — Mirela posicionou um alvo a alguma distância, voltando para junto de Clara. — Você já atirou, certo?
Com uma das armas dispostas na bancada ao lado em mãos, a loira bufou ao ver a cara de dúvida da companheira. Soltou um palavrão baixinho antes de se posicionar ao lado e explicar com uma ponta de impaciência:
— Pés abertos, na largura do ombro. Pé esquerdo na frente do direito, cotovelo direito reto e o esquerdo levemente flexionado...viu?
Terminando de demonstrar, Mirela entregou a arma à Clara que a segurou e posicionou-se como a loira havia demonstrado. Mirou no alvo e atirou uma, duas, três vezes. Tinha a esperança de ter acertado o centro como os outros combatentes das raias ao lado. Decepção total! Não chegara nem perto! A mira não era de todo ruim, mas estava bem longe da perfeição dos demais.
— É...acho que vamos ter bastante trabalho pela frente — Mirela suspirou resignada.
Clara também exalou, porém, desanimada e se sentindo um pouco humilhada. Tentava se ajustar a esta nova vida de toda forma e no fim, acabava sempre se sentindo um peixe fora d'água. Estava sempre pisando em ovos e se odiava cada vez mais por ter ficado paralisada na presença da única pessoa que poderia lançar um pouco de luz nas trevas de sua memória. Aqueles olhos negros a perseguiam, não saíam de sua cabeça e cada vez que pensava neles — e no dono deles — uma onda de calor e frio, felicidade e angústia parecia varrer todo o seu ser, tirando sua concentração das coisas mais simples.
Até tentou mais um pouco com a arma, mais para tentar desanuviar o semblante carregado de Mirela do que qualquer outra coisa e embora tenha registrado uma leve melhora, não seria o suficiente. A carranca da companheira confirmava suas suspeitas.
Após mais de duas horas daquela tortura chinesa, Mirela encerrou o treino alegando já estar tarde. Clara concordou sem hesitar.
As duas foram até o vestiário feminino para banhar-se. Tudo era muito rústico e os chuveiros, feitos de latas enormes acopladas ao fundo em chuveiros menores com uma torneira que possibilitava a saída ou não de água, fria, claro. Mas depois de uma tarde tentando melhorar a mira, Clara nem ligou para a temperatura da água e menos ainda para o fato de ser uma água terrosa, como de um rio após a enxurrada.
— Mirela, você disse que havia ido atrás de mim por que a Nana te pediu, mas se ela chegou há apenas dois anos com o Daniel, por que você a respeita tanto? — indagou Clara, enquanto se enrolava na toalha e saia da cabine ao lado de Mirela.
A outra garota também desligou o chuveiro e pegou a toalha pendurada em cima da porta.
— Há um ano, mais ou menos, eu peguei uma infecção muito grave. O Dr. Rezende e todos os outros enfermeiros chegaram ao ponto de dizer que eu não sobreviveria, mas então a Nana começou a cuidar de mim. Tirou-me da enfermaria e me colocou no quarto dela. Cuidou de mim como seu eu fosse sua filha, passou várias noites acordada... — relembrou Mirela com um raro sorriso. — Acho que ela deve ter usado todo o estoque de conhecimento sobre ervas, mas... no final das contas e contra todos os diagnósticos, eu acabei sobrevivendo. Se não fosse a Nana e a sua persistência, acho que eu não estaria mais aqui. Por isso devo tudo a ela e faço qualquer coisa pela Nana. — Mirela terminou de se vestir, amarrando o cabelo em um nó atrás da cabeça.
— É... eu também tenho muito a agradecer a ela. — concordou Clara, prendendo o cabelo em um coque no alto da cabeça com um pedaço de palito de madeira tipo hashique encontrara no chão. — Qual é a relação dela com Daniel? São parentes?
— Não, com certeza não. A Nana me disse que conhece o Daniel desde menino. Acho que o pai dele tinha um pequeno sítio ou coisa parecida e a Nana era vizinha deles. Depois que a mãe dele morreu, ela ajudou o pai a criá-lo como se fosse seu filho. O marido da Nana morreu há alguns anos e eles nunca tiveram filhos... — Mirela explicou enquanto se dirigiam ao refeitório.
O salão estava iluminado por diversas tochas dispostas nas paredes e velas sobre as mesas, mas estava completamente vazio, com exceção dos cozinheiros.
— Onde está todo mundo? — perguntou Clara.
— No pátio, provavelmente — respondeu a outra simplesmente enquanto apontava com o queixo para a porta de saída. — Quando temos comemorações como a de hoje, o pessoal janta mais cedo e fica perto da fogueira, conversando. Com um pouco de sorte, deve ter alguma música para animar.
Mirela trazia o semblante relaxado e aparentava estar de bom-humor, algo incomum, pelo menos, perto de Clara.
— Obrigada por tudo. — disse Clara, pegando a outra de surpresa e fazendo-a engasgar-se com a comida. — Você já deixou bem claro que é por causa da Nana, mas mesmo assim eu queria te agradecer. Sei que não sou a sua companhia preferida.
Mirela a considerou por alguns minutos, estreitando os olhos, os braços cruzados sobre o peito. Mirela apenas tolerava sua companhia em atenção a um pedido de Nana, isto era bem óbvio. Ainda assim, a garota se arriscara ao inventar a história da prima. Se alguém descobrisse, Mirela estaria em uma situação complicada. Sequer a própria Clara poderia assegurar que não trazia nenhum perigo à Célula uma vez que não se lembrava de nada. Os soldados sabiam seu nome. De onde a conheciam?
— Na verdade, ficar te pajeando por aí tem me mantido ocupada, já que ainda não posso voltar à ativa. — disse a garota, após um longo silêncio. — Mas, sinceramente, fico me perguntando de onde você veio... Pela sua pontaria, ou melhor, a falta dela, dificilmente você poderia fazer parte de alguma outra Célula.
Clara encolheu um pouco ante a crítica. Seria boa em alguma outra coisa? A angústia crescia dentro do peito; sua vida era como um livro em branco.
— Você acha possível fazer algum tipo de levantamento com as outras Células... sei lá, de repente eu passei por alguma em algum momento... — Forçou-se a dizer num tentativa de espantar os fantasmas de seus temores.
— Muito difícil. Para evitar que as tropas do governo saibam o número exato de combatentes, as Células não possuem registros sobre seus habitantes. Seria como encontrar uma agulha no palheiro até achar algum conhecido seu e isso pode levar meses.
Clara suspirou desanimada, curvando os ombros para frente. Mais uma tentativa frustrada...
Após o jantar, as duas foram para o pátio. Como sempre, estar no meio de muitas pessoas deixava Clara nervosa e assim, ela permaneceu em um canto enquanto Mirela ia ao encontro de João em uma roda animada não muito longe dali. Aquele dia havia sido longo e intenso, cheio de emoções e algumas descobertas para processar. Seu lado racional a impediu de procurar por Daniel no meio da multidão. Sabia o que um olhar dele era capaz de provocar.
Voltou para dentro do prédio e subiu o primeiro lance de escadas, mas ao virar para subir o segundo, deu de encontro com alguém no sentido contrário.
— Desculpa! Eu... — começou, o restante da frase morrendo quando subiu o olhar e se deparou com aqueles olhos negros encarando-a de volta.
Daniel limitava-se a encará-la. Sentindo o rosto em chamas, Clara desviou o olhar. Os pés começaram a leva-la para longe dali até o momento em que o cérebro começou a protestar por respostas. Respostas que somente Daniel possuía. Não! Não ficaria sem elas outra vez! Voltou-se e se deparou com o rapaz congelado no lugar, acompanhando-a apenas com o olhar.
— Você me deve respostas. — soltou, encarando-o com firmeza.
— Eu sei. — A resposta simples e curta a surpreendeu. Daniel tinha a postura um pouco rígida, parecia tão nervoso quanto ela. — Você quer conversar agora? Não acho que com tudo o que está acontecendo nós tenhamos outra oportunidade de falar a sós novamente.
Clara ficou estática, cérebro em pane. Apenas o encarava, observando cada linha do rosto magro sob a luz amarelada das tochas. A sombra da barba por fazer, pequenas linhas brancas ao redor dos olhos devido ao sol. Os lábios... Como seria...?
— Você vem? — indagou ele, tirando-a do devaneio e arrancando-lhe um aceno positivo. — Vamos por aqui.
Daniel passou por ela, subindo os degraus com rapidez e deixando atrás de si, além de uma Clara confusa, um aroma de menta com banho tomado e... Daniel. Seus cabelos molhados caíam pelo pescoço quase fundindo-se à camiseta preta.
Clara tentava coordenar os passos para segui-lo enquanto os pensamentos seguiam totalmente descoordenados. Era quase impossível manter o foco nas perguntas tendo Daniel por perto.
No final do corredor, à direita, Daniel parou em um local do prédio onde os corredores possuíam apenas muretas baixas e não pequenas janelas como no restante do edifício. Apoiou os braços na mureta enquanto Clara parava a uma distância segura, fazendo o mesmo. Durante alguns segundos, nenhum dos dois disse nada. Apenas ficaram ali, olhando o horizonte enquanto uma lua cheia e tão amarela quanto um queijo enfeitava o céu e derramava um suave brilho sobre a terra. Ao fundo, Clara podia ver as ruínas de uma cidade e do lado direito, muito longe, o que parecia ter sido um aeroporto com dezenas de aeronaves estacionadas. Banhadas pelo luar, os aviões assumiam dimensões fantasmagóricas. Um pouco abaixo, Clara viu a muralha onde havia subido durante sua tentativa de fuga e onde hoje os guardas se posicionavam, andando de um lado para o outro.
— O que você quer saber? — perguntou Daniel, sem tirar os olhos do horizonte.
— Tudo — Clara respondeu de forma direta, decidida a não virar o rosto para encará-lo sob nenhuma hipótese.
O vento soprou, balançando algumas mechas de seu cabelo que haviam se desprendido do coque bem como o cabelo úmido de Daniel como ela vira pelo canto dos olhos.
— Na verdade, eu também não tenho muito a contar — continuou ele, ainda olhando para o horizonte. — Há umas duas semanas, nós saímos em uma missão de reconhecimento. Normalmente eu acabo dando umas voltas nas redondezas para identificar rastros das tropas do Governo e naquela noite, enquanto eu fazia isso, ali, perto da cidade — Ele apontou para as ruínas que ao longe. — escutei os gritos de uma garota. Quando me aproximei, vi dois guardas com você. — Dando um pequeno sorriso, continuou: — Você deu trabalho a eles... — O sorriso deixou seus lábios quando ele prosseguiu: — Quando eu cheguei, você já estava desacordada. Dei um jeito neles, levei você até próximo do nosso acampamento e te trouxe para cá em um dos veículos. — terminou, desta vez, voltando a cabeça para encará-la.
— Só isso? — Clara estreitou os olhos, analisando as feições de Daniel.
— Desculpe. Sei que você procurava mais respostas, mas... — Ele voltou a olhar para o horizonte. — Sei lá...de repente com isso você consiga... — deu um suspiro e balançando a cabeça, concluiu: — Achei que com isso você conseguiria se lembrar de algo.
Não, definitivamente ela não conseguia. Tentou de todas as formas lembrar-se da cidade ou do que estaria fazendo ali, dos guardas, mas nada, absolutamente nada lhe viera à mente. Novamente, o tão temido silêncio e o branco de sua memória responderam às suas perguntas. Aquilo era tão frustrante! Parecia que todas as portas a levavam para um beco sem saída. Outra vez sentia que estava perdendo o controle; que a esperança de saber sobre o seu passado se tornava cada vez mais tênue. Talvez ela nunca mais fosse lembrar de nada. Revolta, medo, tristeza, todos os sentimentos brigavam dentro de si numa confusão que a fez fechar os olhos, ansiando que, ao abrir, tudo estaria diferente. Ela estaria diferente.
Permaneceu em silêncio, olhos bem fechados durante algum tempo, tentando manter a calma e a racionalidade quando sentiu um leve resvalar em seu dedo mínimo. Abriu os olhos e deu de cara com Daniel, que a fitava com evidente preocupação nos olhos e...remorso? Por que ele sentiria remorso? Estaria escondendo alguma coisa? Mas, o que? O que ele estaria mantendo em segredo?
Ela piscou algumas vezes para ter certeza. Era muito boa em ler pessoas, mas com o turbilhão de sentimentos que se alternavam no momento, começou a duvidar do próprio julgamento. Ao baixar os olhos para sua mão, viu que a dele estava muito próxima e que talvez não tivesse sido sua imaginação. De fato ele a havia tocado, tão sutilmente quanto de manhã?
— Escondendo-se de mim? — indagou uma voz conhecida em um leve tom de brincadeira atrás de Clara que provocou um pequeno sobressalto nos dois. — E o que você está fazendo aqui? — Com cara de poucos amigos, Marisol passou por Clara, parando ao lado de Daniel.
— Perdida. Ela só estava perdida. — respondeu Daniel, retomando o controle da situação primeiro.
Marisol manteve os olhos em Clara, não parecendo acreditar nem um pouco naquilo.
— Perdida, não é? — duvidou a garota, fulminando Clara com o olhar. Tinha certeza de que se os olhos de Marisol soltassem raios, ela já teria sido vaporizada naquele momento.
— Achei você! — Mirela passou por Clara, instalando-se entre ela e Marisol, com um braço possessivo posicionado ao redor da cintura de Daniel. — Estava te procurando! — continuou a loira, olhando para todos e demorando-se alguns segundos em Daniel, como se conversassem em silêncio. — Perdida outra vez?
— É...de novo. — balbuciou Clara.
— Mirela, você devia cuidar melhor da sua prima! Cada vez que ela se "perde" parece "encontrar" o meu namorado!
A loira não respondeu de imediato como normalmente fazia. Apenas se limitou a olhar os três, tomando o cuidado de evitar ao máximo o olhar de Marisol.
— Pois é, né, Marisol? Coincidência! Mas agora que eu te achei, vamos embora, certo, Clara? Vou providenciar um mapa para você! Vamos!
Mirela puxou a amiga pela mão, que a seguiu em silêncio. Clara não tinha mais forças para lutar. Estava exausta, física e emocionalmente.
Do pouco que conhecia a loira, imaginou o sermão que ouviria assim que dobrassem o corredor, porém, para seu espanto, nada disso aconteceu. Prosseguiram caladas e assim permaneceram até o dormitório.
Tão logo pousou a cabeça no fino travesseiro, Clara apagou caindo em um sono pesado. Breu, puro e simples, de alguma forma, acolhedor após tantos acontecimentos.
Mais tarde, naquela mesma noite, ainda envolta pela escuridão ouviu uma voz que suplicava baixinho, em um pedido angustiado:
— Não, não, não...por favor, não! Por favor, não!
Com grande dificuldade, ela conseguiu se forçar a abrir os olhos. Encontrou olhos escuros marejados de lágrimas que a fitavam de volta, num misto de preocupação, angústia e alívio. Dedos tocaram suavemente seu rosto; um cheiro de mato, terra e algo mais chegava às suas narinas. Esforçou-se ao máximo por manter-se focada no que se passava ao redor, mas aos poucos aqueles olhos começaram a ficar cada vez mais embaçados até que se reduzirem a um borrão.
— Não! — acordou num sobressalto, ouvindo sua própria voz.
Sentada na cama, a roupa grudava-lhe ao corpo. Em parte, devido à noite quente, e também, devido ao sonho conturbado.
Com o céu se tingindo de um leve tom rosado, alguns pássaros gritavam ao longe nas árvores indicando o alvorecer de um novo dia. Apesar da noite mal dormida, Clara se sentia um pouco mais aliviada. Aliviada porque finalmente tinha uma resposta para muitas de suas perguntas: aquele não era apenas um sonho, mas uma lembrança... Daniel, no final das contas, havia lhe contado a verdade: ele a encontrara após ter sido atacada pelas tropas, pensou deslizando os dedos suavemente por onde agora restava apenas uma cicatriz na base de sua cabeça.
Ei, psiu!!
Se você gostou do capítulo, não deixe de votar! Fico feliz em saber o que os leitores estão achando da história :-)
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