CAPÍTULO 6 - APENAS UM TOQUE
Mirela também havia ido embora, assim como as pessoas e os Combatentes, restando no pátio somente as crianças brincando de um lado e uma Clara matutando de outro. Por que Daniel a havia trazido em segredo? Isso explicava porque ela havia sido tratada como uma prisioneira por Nana no início, antes de tentar fugir e até mesmo pelo fato de receber visitas e cuidados apenas da senhora. Com um ferimento daqueles e pelo modo como as coisas se conduziam ali, o mais provável ter sido levada para a enfermaria como os demais feridos.
— Moça! Moça! — chamava uma das meninas mais velhas se aproximando de Clara. — Um dos garotos jogou a boneca de pano da Maria em cima da árvore, mas ela é muito alta...Será que você pode ajudar?
Clara olhou da menina à sua frente para o grupo reunido em volta de uma garotinha chorosa e de volta para a garota à sua frente.
— Ok. Vamos lá.
Clara acompanhou a garota e viu a boneca presa em um galho bem alto. Mesmo sem fazer a menor idéia de como iria tirá-la dali, aproximou-se da árvore. Olhou para os lados na esperança de encontrar uma vara ou coisa parecida, mas é claro que não havia.
— Fique aqui. — disse para a menina enquanto se dirigia à base da árvore.
Parou um momento e olhou para cima, analisando seus galhos. Com um impulso, começou a subir com uma agilidade e destreza que nem ela mesmo sabia que tinha. Era algo totalmente natural passar de um galho a outro até chegar ao local onde estava o brinquedo. Desprendendo-o, jogou-o para a pequena Maria olhando-a ansiosa do solo. Viu quando a menina agarrou a boneca e a abraçou com um grande sorriso no rosto. Sem perceber, Clara também estava sorrindo enquanto pensava com como era fácil fazer uma criança feliz.
— Obrigada, moça!! — agradeceu a menina mais velha enquanto voltava para onde estavam as outras.
Quando chegou ao solo, Clara estava sozinha ou pelo menos foi o que pensou até que percebeu um ligeiro movimento às suas costas e voltando-se, deu de cara com Daniel a poucos passos dela. O coração parou e acelerou fazendo as palmas das mãos suarem. Tudo parecia suspenso no breve momento em que seus olhares se cruzaram e ela se perdeu na imensidão negra, semelhante a um céu noturno com pequenos pontos brilhantes.
— A Nana...me...
A frase morreu nos lábios finos dele. Daniel fechou os olhos por um momento, parecendo concentrar-se. Levou as mãos às costas e parou a poucos metros de Clara. Ao abrir os olhos, a frase saiu mais firme.
— A Nana me disse que você já está melhor.
— É...sim. Eu acho que...sim. — gaguejou Clara, também tentando recompor seus pensamentos e passando as costas das mãos pela testa, como se isso pudesse ajudar a retomar o raciocínio. — Obrigada por....por perguntar.
O silêncio instalou-se entre eles e Clara se permitiu perder-se nos olhos de Daniel outra vez. Ele também a encarava. Aquelas sensações, o frio na barriga...já havia sentido antes? Tentou buscar no fundo da mente, mas havia se tornado difícil concentrar-se em algo além dele.
— Tem uma... — Ele começou, gesticulando para uma Clara confusa.
— O que?
— Tem uma...
De novo ele começou a gesticular em círculos com a mão acima da cabeça. Aproximou-se o suficiente para deixar apenas milímetros de distância entre eles e um coração batendo descompassado no peito de Clara.
— Tem uma folha no seu cabelo.
Daniel esticou a mão em sua direção para retirar a folha que havia se enroscado em seus cabelos e por uma fração de segundo Clara poderia jurar que ele tocou seu rosto suavemente enquanto abaixava o braço. Quem diria que algo tão sutil fosse capaz de provocar uma reação tão intensa como a que ela experimentava naquele momento? Era como se um choque elétrico sacudisse seus músculos. Nem queria imaginar o que lhe aconteceria se, de fato, Daniel a tocasse.
— A folha... — disse ele, mostrando-a enquanto o objeto caia suavemente, ziguezagueando até o chão. — Você...eu...
— Ah! Finalmente achei você! — interrompeu uma garota vindo em direção a eles com passos decididos e abraçando Daniel pela cintura. — O Gaspar está te procurando! — Parecendo perceber que ele mal tinha se mexido, pela primeira vez a garota notou Clara. — Oi! Acho que eu não te conheço.
— Essa é a Clara, prima... da Mirela. — Daniel respondeu rapidamente, voltando seu olhar para a garota que continuava presa à sua cintura como se ela fosse uma estranha. — Da Célula 2.
A garota tinha estatura mediana, era magra mas com um corpo bem delineado, pele bronzeada, lábios vermelhos, cabelos lisos presos em duas tranças que caíam sobre os ombros, castanhos assim como seus olhos, escrutinadores.
— Ah, lógico! Prazer. Marisol. — apresentou-se estendendo a mão para Clara que a apertou lentamente. Viu quando, de repente, a garota estreitou os olhos, examinando-a. — Prima?
Algo na postura da garota fez Clara se sentir desconfortável.
— O que foi? — perguntou Daniel, também parecendo tenso.
— Não...nada... — Marisol balançando a cabeça e, dando um beijo no rosto de Daniel, continuou: — Vamos? Você sabe que o Gaspar não gosta muito de esperar. Até mais!
Marisol deu uma última olhada em Clara e se foi, arrastando Daniel com ela.
Clara ficou parada ali, sozinha durante alguns minutos vendo os dois se afastarem até entrarem no prédio. Um turbilhão de pensamentos e sentimentos tomavam conta de si...Como podia se sentir daquele jeito só por fitá-lo? Tinha medo e ao mesmo tempo ansiava pelo momento de poder ver Daniel novamente, o que era ridículo uma vez que ele havia acabado de entrar no complexo. E aquele toque? Havia realmente acontecido ou era alguma peça de sua mente já tão conturbada? Por que não conseguia pensar direito? Tinha vontade de sair gritando, tamanha a frustração. Não só precisava lidar com todos aqueles sentimentos como ainda não tinha obtido sequer uma resposta! Como teria sido tão estúpida a ponto de desperdiçar aquela oportunidade? E com uma namorada...qual seria a probabilidade de poder conversar sozinha com Daniel de novo?
— Moça! Moça! — Clara virou, deparando-se com a menina com quem havia conversado mais cedo. — Pode nos ensinar a subir na árvore tão rápido como você fez?
— Assim não precisamos pedir para mais ninguém... — completou a pequena Maria, apontando para a boneca, outra vez presa nos galhos de uma árvore próxima.
Clara deu um pequeno sorriso ante o olhar ansioso da menina antes de ir resgatar a boneca. Quando estava de volta ao chão, todas as crianças a esperavam aglomeradas e ansiosas para aprender como se fazia. Ela explicou e uma a uma elas tentaram subir. Entre tombos e risadas, por alguns momentos fora capaz de esquecer seus tormentos.
— O que vocês costumam fazer? — perguntou Clara para a garota mais velha — Julia.
— Não muito. A maioria do pessoal sai para lutar e os poucos que ficam tem muito o que fazer com os doentes, comida e a guarda.
— Eu vi que os que ficam aqui, que estão se recuperando, treinam num outro pátio lá atrás. Vocês não fazem o mesmo? Para se esconder caso haja um ataque, pelo menos? — As crianças balançaram a cabeça em negativa. — Ok. Talvez vocês sejam jovens demais para pegar em alguma arma, mas pelo menos precisam saber se esconder caso haja algum ataque e não tenha nenhum adulto para defendê-los. O primeiro passo é ficar em silêncio e se mover com o menor nível de ruído possível. Outro é esconder-se. Subir em algum lugar ou se abaixar é muito importante pois a mente humana acaba instintivamente cobrindo todas as direções, mas não costuma olhar para cima ou para baixo. — E apontando para as árvores, continuou. — Por isso não se deve ficar no nível dos olhos de outra pessoa. Ficar imóvel, especialmente à noite, também ajuda na camuflagem pois a primeira coisa que os olhos humanos detectam é o movimento, ainda mais no escuro. — As crianças a encaravam confusas. — Certo. Chega de blábláblá e vamos começar.
Assim o grupo se ocupou até Nana chamá-los para o almoço. Clara seguia atrás com a mulher enquanto as crianças riam e brincavam na frente, caçoando um do outro, naquele burburinho comum e alegre.
— Acho que você encontrou uma distração no final das contas. — comentou Nana, enquanto seguiam pelo corredor do refeitório. — Podia dizer que você até está feliz!
— É difícil não se divertir quando as crianças estão por perto. Uma pena que os adultos não tenham tempo de dar atenção à elas.
Em cima de uma mesa do outro lado do refeitório lotado, estava o gigante que Clara vira mais cedo. Ao redor, a agitação tomava conta das pessoas em um falatório sem fim. Ele próprio, agachado, conversava com alguns Combatentes.
— Aquele é o Gaspar, — Nana esclareceu em seu ouvido, apontando para o gigante. — o líder da nossa Célula e membro do conselho que te falei. Ele vai dar um retorno de como foram as últimas incursões.
— Se ele conseguir se fazer ouvir com toda essa barulheira, não é? — retrucou Mirela, parando ao lado delas, ofegante e suada. — O quê? Eu estava treinando! Coisa que você também deveria fazer mais tarde. Daqui a pouco vão começar achar estranho porque você é a única que fica por aí com as crianças. — terminou de forma rabugenta, franzindo o cenho.
— Silêncio! Silêncio! Shhhhh! — gritaram alguns no meio da multidão.
— Certo, certo — começou o líder, fazendo gestos amplos. — Como vocês já devem ter ouvido, nós conseguimos atingir fortemente as tropas do Governo no começo da semana. — Um burburinho começou a correr, logo silenciado pelo líder. — Calma, calma, gente! Ainda temos muito trabalho pela frente, mas com a união das Células no último confronto, nós conseguimos mandar a mensagem às tropas de que o nosso contingente aumentou! Finalmente, estamos conseguindo nos unir contra o inimigo comum e a era de domínio e repressão por parte deles está com os dias contados! — Nova comoção se iniciou e foi silenciada. — Eu quero agradecer a todos vocês que têm desempenhado papel fundamental neste processo. Todos, sem exceção, são muito importantes e não chegaríamos até aqui sem os nossos combatentes, nossos cozinheiros, nossos enfermeiros. Todos. Mas gostaria de agradecer especialmente ao Daniel.
Todos os olhos se voltaram para o rapaz, parado num canto distante.
— Suba, aqui, meu amigo! — continuou Gaspar, ajudando-o a subir e passando o braço pelos ombros do rapaz. — Desde que ele chegou à nossa Célula tem nos provido com informações vitais para o nosso avanço nos últimos dois anos. Sem ele, certamente ainda estaríamos longe do lugar que estamos hoje. Obrigado. — Gaspar começou a bater palmas, seguido pelos presentes. — Mas ainda não acabou e temos muito trabalho pela frente! Assim, hoje será nosso dia de comemorar, mas amanhã devemos retomar nossos treinamentos e nos manter atentos às novas lutas que estão por vir até chegarmos à vitória!
Houve uma explosão de gritos e aplausos enquanto as pessoas se dirigiam para a fila onde receberiam a refeição.
Clara também se encaminhou com Mirela para a fila, mas não sem deixar de olhar uma vez sequer para Daniel que havia descido e agora recebia os cumprimentos dos companheiros com Marisol firmemente plantada ao seu lado. Percebeu, então, que Mirela também olhava para a mesma direção. Nana havia sumido.
— O Daniel não é desta Célula?
— O quê? Não, claro que não. — respondeu a garota, desviando o olhar para encarar Clara. — Chegou aqui há coisa de dois anos. Maldito seja o dia que ele veio para cá. — Havia amargura acompanhada de alguns olhares furtivos para onde Daniel estava.
— Ele era de uma outra Célula, então?
— Olha, só sei o que todos sabem: ele não pertencia a nenhuma Célula, acho que vivia em alguma vila longe, não sei ao certo. Mas sei que ele foi casado e que a esposa foi morta há cerca de uns três anos pelas tropas do Governo e que aí ele decidiu se juntar às Células. Acabou salvando o Gaspar de uma emboscada, virou o herói da vez e veio para nossa Célula junto com a Nana.
— Casado? — repetiu Clara, sufocando. Tinha a sensação de ter sido atingida por milhares de adagas.
— Pois é. Ao que parece ele já superou completamente a morte da esposa...ou vai ver que nem gostava dela tanto assim.
Clara a analisava. Por que tanta raiva se eles mal se falavam, como ela mesma havia dito? Haveria mais do que a garota havia deixado transparecer? Por segundos, o olhar de Clara cruzou com o de Daniel, mas logo Marisol o puxou pelo braço e os dois deixaram o refeitório.
As garotas pegaram suas bandejas e silenciosamente se instalaram na mesma mesa da vezes anteriores. Cada uma absorvida por seus próprios pensamentos, apenas concentram-se em suas refeições quando João se juntou à elas.
— Achei vocês! O que acharam do pronunciamento do Gaspar? Soube que ele e os outros membros do Conselho estão preparando uma grande ofensiva para tomar a Cidadela de vez! — disse o rapaz, animado.
— Como você sabe disso? — perguntou Clara.
— Ouvi os técnicos de rádio conversando no corredor enquanto eu voltava do treino. Aliás, eu não te vi lá, Clara. — João levou uma grande garfada à boca.
— Eu...estava treinando em outro lugar. — apressou-se em dizer, fingindo ignorar o olhar de pânico de Mirela. Precisava mudar de assunto ou a loira enfartaria. — Então, hoje pelo que entendi, é dia de comemoração?
— Verdade! Não sei como é na Célula 2, mas aqui a gente costuma fazer uma fogueira e o pessoal mais prendado costuma tocar uns violões velhos que encontramos em nossos reconhecimentos. Às vezes os outros também fazem um som legal com uns canos, latas e tudo quanto é sucata. É bem animado, embora eu não tenha a menor idéia de como eles conseguem tirar algum som de coisas que muitas vezes não passam de lixo para mim. — concluiu João, dando mais uma garfada. — E na sua Célula?
— Como assim? — Clara se fingiu de desentendida, tentando encontrar alguma resposta satisfatória.
— Ah...eles também tem alguns violões e umas flautas que fazem com bambu. Nada parecido com o nosso. — Mirela se antecipou, chutando Clara por baixo da mesa, calando-a.
— Ah, tá. Interessante! É que normalmente, como as Células são longe uma da outra e com todas essas investidas das tropas, quase não temos contatos com os outros combatentes....Você teve sorte de conseguir chegar aqui bem na hora que o pessoal dos mantimentos vinha da vila. — observou João, concentrando-se em terminar de comer para alívio das outras duas garotas.
Naquela noite, após um dia tão intenso, Clara não conseguia conciliar o sono. Virou-se algumas vezes na cama, sem sucesso. Decidiu, por fim, levantar-se continuar o que já começara: mapear o local em que estava.
Ei, psiu!!
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