CAPÍTULO 10 - FLASH
Após deixar a sala onde encontrara Daniel, Clara voltou ao dormitório para deixar seu arco e desceu para tomar café. No caminho ao refeitório e mesmo lá, várias pessoas a haviam cumprimentado, transmitindo seus pêsames. Num primeiro momento, ela não entendeu o motivo, mas depois, tudo ficou claro: para todos os efeitos ela era da Célula 2!
O café da manhã naquele dia era apenas um caldo de batatas e cenouras que ela tomou rápido querendo evitar a todo custo falar com as outras pessoas. Naquele momento Clara passou entender melhor Mirela: a partir do ponto em que você inventa uma mentira, tem que ficar sempre atento para não cair em contradição. Por isto ela parecia sempre tensa. Clara estava se sentindo assim para se condicionar a responder alguma coisa coerente sempre que lhe perguntavam como se sentia, o que iria fazer após os ataques, se alguém que ela conhecia havia sobrevivido. Limitou-se a dar respostas genéricas, que na maior parte das vezes era "estou muito abalada com o que aconteceu", evitando ao máximo entrar em qualquer detalhe.
Dirigiu-se ao auditório em busca de um pouco de sossego. A mente estava agitada com todos os acontecimentos. O flashde memória, Daniel...
Encontrou Nana lá, lendo para as crianças sentadas ao redor, no mais profundo silêncio, concentradas, olhos vidrados. Clara sentou-se em um cadeira a primeira fileira e também ouviu a narrativa. Por fim, Nana deu a leitura por encerrada ao fechar o livro, fazendo as crianças protestarem antes de retomar as brincadeiras.
— Reinações de Narizinho. — Nana disse, mostrando o livro à Clara. — Eles adoram.
— Eu não sabia que vocês costumavam ler.
— Para os combatentes não é muito comum, eles nem têm tempo para isso na maior parte das vezes. Mas sempre buscamos ensinar as crianças a ler e escrever. Meu marido me ensinou a ler depois que nos casamos.
— Mirela me disse que você e o Daniel não são daqui.
— Não. Chegamos há alguns anos. — Os olhos de Nana estavam fixos em algum ponto, talvez relembrando o marido e onde haviam vivido. — Mas acho que estamos vivendo tempos mais difíceis, agora. Ninguém esperava aquele ataque à Célula 2. — continuou, mudando a direção da conversa e fazendo Clara engolir a pergunta que estivera pronta para soltar. — Os líderes do conselho estão muito preocupados, principalmente com esta suspeita de que poderia haver um infiltrado... Eles são sempre muito cuidadosos em controlar o acesso de quem entra e sai das Células...
— Você acha que alguém de dentro ajudou as tropas do Governo?
— De que outro modo eles poderiam ter aniquilado a Célula 2 como fizeram? — indagou Nana, olhando-a preocupada. — O que nos traz um problema.
— Que problema, Nana?
— Você, minha filha. — E vendo o olhar confuso da garota, pousou uma mão em seu braço. — Nós sabemos que você não é prima da Mirela e nem veio da Célula 2. Não acredito que alguém vá ficar investigando por aí, mas se descobrirem que você não chegou com a equipe de mantimentos, com essa possibilidade de alguém de dentro ter ajudado, o fato de Daniel ter te trazido em segredo e você sem memória... — Fez uma pausa, suspirando.
— Nana, você acha que eu posso ser uma espiã? — indagou Clara, entendendo onde a senhora queria chegar. Aquela ideia jamais havia passado pela cabeça, porém, suas habilidades eram tão diferentes da forma como os combatentes eram treinados....Mas, se fosse isso, por que não a tinham mandado embora? Por que insistiam na mentira e a mantinham na Célula?
— Não sei, minha filha. Eu espero, sinceramente, que não..., mas esta é uma resposta que só você tem. — Nana pousou o dedo indicador levemente na têmpora da garota. — Aí, em sua mente. Só você pode nos dizer por onde andou.
"Não, não pode ser!" gritava uma voz dentro de si. Não fazia sentido... ou fazia? Teria sido o ataque a ela apenas um chamariz? Mas como sabiam que Daniel a traria para dentro da Célula? Qualquer um poderia tê-la encontrado, não especificamente ele. Poderiam tê-la levado para alguma das vilas...E como explicar sua falta de memória? Ainda que ela fosse uma espiã pouco iria ajudar se continuasse sem se lembrar de nada... Mais perguntas se acrescentavam às outras que ainda habitavam sua mente.
— Eu também queria poder saber, Nana. Não consigo me lembrar de nada e...mesmo que eu fosse algum tipo de espiã, que tipo de utilidade eu poderia ter se não me lembro de nada, nem mesmo do que supostamente seria a minha missão? — argumentou Clara, dando voz a parte de seus pensamentos e omitindo propositadamente os flashes que havia tido naquela manhã.
Com aquilo, Nana estreitou novamente os olhos como sempre fazia quando parecia querer ler os pensamentos de Clara e depois suavizou-se.
— Também acho que não faz sentido. De qualquer forma estou muito preocupada...e Daniel também. — Mesmo sem querer, a simples menção do nome dele a fez dar um pequeno sobressalto em sua cadeira. — Ele está muito preocupado com o que pode acontecer se descobrirem a verdade. O Gaspar não costuma ser de muito diálogo, normalmente atira primeiro e pergunta depois...
Por que Daniel se preocuparia? Claro! Porque ele também mentira...e Mirela e Nana...todos estariam seriamente implicados.
— Clara! — chamou Maria, puxando seu braço e pelo franzir de cenho da garotinha, já estava esperando por uma resposta dela há algum tempo.
— O que foi, Maria? — indagou Clara, retornando à realidade para se deparar com os olhos perscrutadores de Nana firmemente cravados nela.
— Olha o que eu encontrei! — respondeu a garota, mostrando um objeto em suas mãos que Clara imediatamente reconheceu.
— Um estilingue? — perguntou Clara, tomando o objeto das mãos de Maria e testando-o.
— Você conhece? Sabe para que serve? — indagou a menina, ansiosa.
Clara abaixou-se, pegou um fragmento de reboco e, tracionando o elástico, o disparou em direção a uma lata em cima de uma mesa um pouco mais distante, derrubando-a.
Todas as crianças a olharam com surpresa e imediatamente se animaram. Também queriam tentar e saíram procurando tudo o que pudesse ser lançado por aquele instrumento. Clara as ensinou a disparar, enquanto elas também buscavam novos objetos que poderiam servir de alvo do estilingue. Também procuraram outros materiais para fabricar outros e até Nana as ajudou, sem desgrudar os olhos de Clara. O que estaria pensando? Acharia Clara uma mentirosa? Estaria com medo de Clara como ela tinha de si própria, de seu passado?
— Você mandou me chamar, Nana? — perguntou Mirela, parando ao lado da mulher e olhando ao redor ao dar-se conta do agito entre as crianças. — O que está acontecendo aqui?
— Clara ensinou uma nova brincadeira para as crianças. — respondeu Nana, levantando-se e alisando a saia. — Você pode levar a Clara para o treino de combate?
— Mas você tinha dito que o corte...
— Não podemos perder mais tempo, Mirela. Temos que nos preparar para tudo e... Manter as aparências. Após o ataque à Célula 2 vão convocar todos que estiverem em condições para a próxima ofensiva. Isso muda tudo. — interrompeu Nana com firmeza e olhando fixamente para Mirela que se encolheu ligeiramente.
— Ok, Nana. Você é quem manda.
O dia ensolarado de antes agora começava a mudar rapidamente como Clara pôde notar ao observar as pesadas nuvens que se aproximavam, trazendo consigo um vento impregnado de cheiro de chuva. Mesmo com o vento, ela podia sentir o suor escorrendo em uma linha fina no meio de suas costas enquanto acompanhava Mirela pelo campo de treinamento. Todas as raias de tiro, o campo de treinamento de luta e os aparelhos estavam ocupados. Com exceção das crianças, dos muito doentes e dos enfermeiros, os demais pareciam estar ali o que deu à Clara a compreensão do quão grave a situação era. Todos estavam se preparando para uma batalha dura contra as tropas do Governo.
Daniel também estava ali próximo, treinando com um dos rapazes da equipe de Gaspar. Seus olhos se cruzaram por segundos até que ela se forçou a desviar; precisava se concentrar ou levaria uma bela surra de Mirela e após toda humilhação no tiro, aquilo estava fora de cogitação. Apesar disso, sentiu o peso daqueles olhos negros sobre si por alguns minutos e, respirando fundo, usou toda sua força de vontade para se concentrar exclusivamente em Mirela.
— Vou começar com movimentos básicos. — anunciou a garota, parando em um canto do campo de treinamento. — E depois, se conseguirmos, podemos passar para algo mais complicado. Se bem que, se for como no tiro, a coisa pode demorar. — concluiu, provocando uma pontada de raiva em Clara.
Mirela investiu contra a outra, desferindo um soco em direção a seu rosto o qual Clara imediatamente bloqueou com o braço esquerdo estendido, enquanto acertava um soco com o outro punho na altura da garganta da garota, desestabilizando-a por alguns segundos. Aproveitando-se da surpresa momentânea, Clara passou sua perna esquerda por trás do pé de apoio de Mirela, jogando-a ao chão. Virou-a de bruços e a imobilizou segurando as mãos em suas costas.
— Olha aqui, Mirela, eu sei que você tem feito tudo isso porque a Nana pediu. Até entendo que você anda tensa em ter que sustentar a mentira, mas juro... — disse ela, encostando os lábios bem próximos à orelha de Mirela que continuava com o rosto pressionado contra o chão. — Estou cansada de você me humilhando e mandando em mim como seu eu fosse sua subordinada! E acredite, tenho muito mais surpresas do que você pode imaginar! — concluiu entre dentes, largando Mirela e levantando-se.
Clara deu a volta até o lugar onde estivera anteriormente e a loira voltar para a posição inicial. Mirela prendeu os cabelos desgrenhados e no instante seguinte investiu contra Clara agarrando-a pela cintura e jogando-a no chão. Clara retornou com uma série de cotoveladas na região entre a nuca e a clavícula de Mirela, e embora tenha conseguido que ela afrouxasse o aperto em sua cintura aquilo ainda não tinha sido suficiente para se libertar e a luta prosseguiu equilibrada, ora com Mirela levando a melhor, ora com Clara.
Finalmente, usando toda a força, Clara conseguiu sair do chão e ficou sentada sobre a cintura de Mirela. A outra acertou-lhe um soco, desestabilizando-a momentaneamente. Aproveitando-se, Mirela voltou a jogar Clara no chão, imobilizando-a com suas pernas e virando-a com o rosto no chão.
— E só para seu governo, Clara, — começou, falando no ouvido da garota enquanto puxava seus cabelos. — no começo eu fiz pela Nana, mas agora eu faço por você! Por que você se tornou uma amiga para mim e se eu sou dura com você, é porque eu sei que você pode fazer muito mais! — terminou, soltando os cabelos de Clara e jogando-se no chão ao lado, exausta.
As duas permaneceram estiradas no solo, lado a lado, durante alguns minutos, ofegantes enquanto tentavam se restabelecer. Aquela série havia sido dura para ambas e, enquanto Clara sentia uma das costelas onde Mirela havia atingido um soco, Mirela limpava o sangue que corria do nariz onde Clara a havia acertado com uma cotovelada. Ambas se olharam e começaram a rir, pois, no final das contas e apesar de algumas escoriações, aquela luta havia ajudado a liberar as tensões que ambas traziam há dias.
Mirela levantou-se primeiro e estendeu a mão para ajudar Clara, ambas ficaram em posição novamente para mais uma série de golpes. Apesar de extremamente concentrada no que fazia para se desviar dos golpes de Mirela, Clara estava ciente da presença de Daniel a poucos metros, mas...havia algo mais. Num momento em que tinha a parceira dominada em um golpe, buscou pela multidão, e em vez de encontrar os olhos negros que imaginara deparou-se com os olhos castanhos de Marisol que a observavam atentamente. O ódio que ela lhe devotava e como era esperado por Clara, estava lá, mas havia algo mais enquanto a moça a fuzilava com o olhar. Clara tentou identificar o que era, contudo não houve tempo para que conseguisse descobrir, pois Mirela a agarrou por trás e neste momento, tudo mudou.
Num instante e em um flash, um fragmento de memória daquela noite atingiu-a mais potente que qualquer golpe desferido por Mirela até ali. As emoções que se apoderaram dela foram tão violentas que fizeram com que se desequilibrasse e caísse de joelhos sobre o solo, olhos fechados e respiração ofegante. Tentava desesperadamente controlar-se e raciocinar enquanto um gélido calafrio de medo percorria sua espinha. Não! Aquilo não estava certo! Queria gritar contra as imagens em sua cabeça... Não era muito, apenas um flash: braços a agarraram por trás como Mirela fizera há pouco. Ela se defendeu e então deparou-se com os olhos negros de Daniel encarando-a. Não podia acreditar que a lembrança que tivera há duas noites quando o ouvira suplicar tão angustiado, não passava de um sonho...
— Clara? — chamou Mirela, pousando a mão levemente em seu braço. — Tudo bem? Peguei muito pesado?
Clara levou as mãos à cabeça, ainda com os olhos fechados e tentando se acalmar. Um sentimento crescia em seu peito até quase sufocá-la. Abriu os olhos, um misto de medo, desconfiança e raiva...Como pudera ser tão idiota? Como pudera deixar-se enganar daquela forma? Viu a expressão preocupada de Mirela que havia se ajoelhado em sua frente e a examinava atentamente. Desviou o olhar pelo campo até finalmente encontrá-lo.
Naquele momento, Daniel parecia ter dominado seu oponente dando-lhe uma chave de pescoço e, mesmo tão concentrado, desviou seu olhar da luta para encontrar o de Clara. Em questão de segundos, sua expressão até então focada no embate modificou-se pelo que quer que ele tivesse lido nas feições de Clara. Preocupação e pânico refletiam-se em seu olhar quando ele abandonou seu oponente e começou a caminhar em sua direção. Sem pensar duas vezes, Clara virou-se e saiu correndo do campo, deixando uma Mirela completamente desorientada. Mesmo de costas, viu quando em seu caminho ele parou para trocar algumas palavras com a amiga antes de sair correndo atrás dela.
Não sabia exatamente para onde estava indo, apenas se dirigiu para dentro do prédio correndo como se isso pudesse livrá-la das memórias em seu encalço, qual assombrações. Embora fosse rápida, Daniel o era ainda mais e não demorou muito para que a alcançasse.
— Clara, o que foi? — perguntou ele, puxando-a pelo braço, fazendo-a parar.
Ela mal conseguia encará-lo tamanha confusão de sentimentos, mantendo o olhar no chão e sentindo as lágrimas quentes descerem pela face. Não queria que ele a visse daquela forma, tão fragilizada e confusa. Ao mesmo tempo, as pernas não obedeciam aos comandos de sua mente, mantendo-a parada naquele lugar. Ele a segurava pelos ombros, e a pouca distância era torturante.
— Clara, por favor, fale alguma coisa. Você está me deixando preocupado! — pediu Daniel num tom tão angustiado como o que ouvira no sonho que tivera.
— Você... — ela começou com uma voz trêmula e então, tomando coragem de expressar o que lembrava, continuou: — Foi você, Daniel! Você me atacou naquela noite! Por que mentiu?
— Clara, eu.... Espera.... Não é isso... — iniciou Daniel, completamente desconsertado e avançando mais rápido, tentando abraçá-la. — Não desse jeito...
— Você me atacou, Daniel! Sim ou não?! — gritou Clara descontrolada, afastando-se de seus braços até encostar na parede atrás de si. — Sim ou não???
Daniel estava branco como cera e com um rápido olhar sobre os ombros para algo que lhe chamara a atenção, aproximou-se tentando pegá-la pelo braço.
— Clara, você tem que me ouvir! Eu posso explicar, mas aqui não é um bom lugar. — disse ele com urgência, seus olhos suplicantes enquanto continuava lançando olhares por sobre seus ombros.
— Mas o que diabos está acontecendo aqui? — indagou Marisol, sua voz e passos cada vez mais próximos até que parou entre Daniel e Clara. Olhando rapidamente de um para o outro, continuou com fúria, avançando para Clara já acuada contra a parede: — O que você quer com o meu namorado, sua espiãzinha de merda?
— O que? — retornou Clara, confusa assim como Daniel.
— Eu sei muito bem o que você é, ou melhor, o que não é! Eu achei muito estranho aquela história de você ser prima da Mirela e resolvi investigar... — Marisol tinha um ar vitorioso. — E adivinha? A prima da Mirela morreu no verão passado e ela não se chamava Clara...Bruna era o nome dela! Por isso eu sempre achei que tinha algo errado com você! E se você não é quem diz ser...bem...com certeza é uma espiã!
Marisol recuou dois passos, observando com um sorriso satisfeito, o efeito de suas palavras. Clara a encarava aturdida, tentando entender o raciocínio da namorada de Daniel. Talvez por isso ele a havia atacado? Mas, se fosse isso, por que a trouxera para a Célula? Por quê? Por quê? Novamente sentia-se impotente... A cada resposta, uma nova descoberta simplesmente parecia varrer como um castelo de cartas o pouco que conseguia se lembrar.
— Marisol, espera... — começou Daniel, virando-se para a namorada e pegando-a pelo braço. — Vamos conversar...
— Conversar o que, Daniel? A única pessoa com quem eu vou conversar é com o Gaspar! — concluiu Marisol, afastando-se rapidamente.
Clara apenas a olhou, ainda encostada contra a parede enquanto Daniel corria atrás de Marisol e discutia com ela. Que tipo de pesadelo era aquele? Então, saiu em disparada pelo corredor, aumentando a velocidade quando ouviu os gritos de Daniel pedindo para que ela parasse. Ela não parou, não até entrar no auditório. Rumou até um canto em uma das fileiras mais distantes e escuras onde se sentou. Respirava com dificuldade, o ar parecendo queimar a garganta e os pulmões, aquela sensação de ardor se espalhando por todo corpo até se concentrar num único lugar. Sentiu como se um ferro em brasa próximo à costela direita, na lateral do corpo, a estivesse atravessando. Mirela teria acertado com tanta força? Levantou a camiseta e deparou-se com o pequeno ponto ainda vermelho entre o abdômen e suas costelas. Naquele momento, não conseguiu mais frear as memórias daquela noite, arrastando-a, afogando-a, como um mar em fúria.
Ei, psiu!!
Sevocê gostou do capítulo, não deixe de votar! Fico feliz em saber o que osleitores estão achando da história :-)
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