II - Voltando pro mundo
Primeiro Dia
A noite tinha sido péssima. Aquela briga tinha simplesmente me detonado. Eu mal conseguia me mexer. Até que você sinta esse tipo de dor, esse tipo de exaustão, não há como explicar. Eu estava de luto; mas precisava trabalhar. Era meu primeiro dia no emprego novo, e eu não podia vacilar logo de cara. Tinha ao menos que estar lá, inteira ou aos pedaços.
As pernas tremiam em conjunto com as mãos. A sincronia não seria aprovada por um coreógrafo, mas pelo menos meus membros sabiam trabalhar em conjunto - ainda que em algo tão bizarro.
Na frente da minha patroa, uma senhora delicada e bondosa, de 84 anos, eu sorria. Enchia os pulmões antes de falar para que a voz saísse audível e viva quanto fosse possível. Pelo menos da boca pra fora eu era... feliz (?).
O trabalho não é difícil; ficar longe de casa, sim! Meu refúgio onde eu posso chorar a hora que quiser, o lugar que me protege do mundo. Eu não quero voltar pro mundo, não me encaixo mais. E depois de ontem essa certeza cresceu. Se a pessoa que mais é (foi) capaz de tocar minha alma e me entender, me disse aquilo, é porque talvez não haja mais esperanças pra mim.
Nesse exato momento, escolhi o canto mais escondido da cozinha do apartamento onde trabalho, estou com os ombros tensos esperando por um ataque a qualquer minuto, e minhas pernas não param de tremer. Eu não sei porque ainda estou viva, mas estou. E como eu ainda visto, ainda me alimento, durmo, gasto água e luz, preciso contribuir, já fui um peso morto por tempo demais. Ser sustentada pela mãe aos 27 não é lá muito chique né.
Em resumo é isso aí: eu não sei viver, não sei amar, nem me relacionar. A vida se tornou um puzzle, e eu sou péssima em puzzles.
Vasculhei o celular em busca de alguém, e lá estava ela, minha melhor amiga.
- Conversa comigo? - pedi - Acho que vou ter uma crise.
Ela conversou. Eu não queria um terapeuta naquele momento, queria alguém que mudasse o foco dos meus pensamentos pra algo mais agradável, e ela sempre consegue fazer isso por mim. Falamos sobre amenidades por alguns minutos, e eu me senti abraçada pela existência dela. Era tudo que eu precisava.
Segundo Dia
Acordei assustada com o barulho da bengala no piso de antigo de madeira. Era apenas a senhora de quem tomo conta indo ao banheiro.
Tinha ficado tão preocupada com o sono pesado que o ansiolítico causa, que nem fiz uso dele. Me mantive acordada o quanto pude, mas uma hora o sono me venceu e eu dormi feito pedra.
Após acordar no susto, o vazio (que ainda não era fome) voltou a me dominar. A solidão da primeira hora do dia veio como uma brisa fria, soprando em meu ouvido toda a incapacidade que eu tento disfarçar (ou superar). Lágrimas começaram a queimar meus olhos, e as mãos começaram a tremer. Ter uma crise de ansiedade no segundo dia de trabalho não estava nos meus planos. Por sorte ainda era bem cedo; eu tinha algum tempo pra me recuperar. E aí foi a vez da minha irmã ser minha salvadora. Conversamos um pouco, planejamos um jantar de dia das mães pra nossa mamãe lindona, até que eu melhorasse.
Decidi me levantar, fazer o café... agir. Servi o café, limpei a mesa, dei a ela os remédios. E aí era a minha vez de tomar café.
O primeiro gole desceu rompendo minha garganta, ultrapassando os nós; e aos poucos a vontade de morrer foi engolida junto com o café - e espero que seja expelida com ele também após a digestão e tudo o mais que vocês sabem.
Tentei focar nas prioridades. Arquitetei tudo na minha mente, focando nas partes boas: o jantar pra minha mãe, a limpeza do meu quintal (que tá cheio de entulho igual a minha vida), a reforma do meu quarto, e um day spa (também tô precisando de uma reforma).
A ansiedade me faz ter vontade de fazer tudo na mesma semana. No mesmo dia, se possível. Mas, ouvindo a voz da razão, eu priorizei. Primeiro o jantar, depois a casa e meu day spa.
*O day spa veio antes da casa. Mas não me arrependo. Agora gosto um pouco mais do que vejo no espelho!
O fato de relatar meus dias, exatamente (ou quase) como são, pode dar uma noção do quão confusa é a minha mente. Não chamo isso de biografia. Sou uma Maria ninguém, quem é que vai querer saber da minha vida? Prefiro chamar de diário de bordo. Uma tentativa de retorno ao mundo dos vivos.
Amor Próprio
Passamos quase o dia todo num sítio lindo, cheio de gente (fato que me apavorou), cheio de comida (fato que me conquistou), com árvores e montanhas pra todo lado; o tipo de lugar onde eu quero viver. O tipo de lugar onde pretendo criar um lar, ter um filho, um cachorro, uma vida!
Na volta desse 'passeio', vi que não havia muitas mensagens no meu celular, e certamente nenhuma mensagem da pessoa que eu mais queria. Decidida, enviei um 'Oii' (com dois is fica mais amistoso) e recebi um 'Oi' seco de volta. Engoli meu orgulho e perguntei: Como foi seu dia? Resposta: Está sendo ótimo.
A hostilidade foi sentida, e interpretada.
Por quê parece tão fácil pra ele simplesmente não falar comigo?
Por quê é tão difícil pra mim não falar com ele?
As coisas nunca acontecem como a gente espera mesmo. Não sei porque ainda me espanto! Nesse exato momento ele deve estar pensando o mesmo em relação a mim, ou sei lá, a gente nunca sabe o que se passa na cabeça das pessoas!
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