Ano de 2310 - Edifício Brasil São Paulo
-- Vamos Ana, está na hora. -- Disse a professora para uma de suas alunas. Ana se apressou em levantar. Despediu-se de Dani e de Caio balançando a mão e caminhou ao encontro de sua mãe.
A professora olhou para a outra aluna e disse.
-- Dani, pode se preparar.
Dani deu uma última espiada nas imagens de uma antiga floresta que o seu quadro exibia. Por fim o dobrou e o depositou dentro de uma caixa na prateleira que continha o seu nome. Ela olhou pela janela. Esticou-se tentando encontrar o chão, muitos metros abaixo do andar da escola, mas o máximo que conseguiu ver foi a sétima varanda externa, cujo parquinho continha um único balanço que dançava ao vento.
Ela viu que a sombra do edifício ao norte já iria passar da metade da varanda e soube que estava na hora. A professora a chamou.
-- Vamos Dani, sua mãe chegou. -- A professora a acompanhou até a porta da escola.
Dani achou esse fato curioso, pois a professora não costumava deixar os alunos sozinhos na sala de aula. Antes de ser entregue para sua mãe, a professora segurou-a pelo ombro e agachou-se para ficar da altura dela.
-- Não se esqueça do trabalho para segunda-feira. -- disse e em seguida levantou-se.
Dani percebeu que havia certa ternura e melancolia no modo como estava sendo tratada pela professora, desde as últimas tardes. Olhando para sua mãe, Dani notou pela primeira vez como os traços dela se assemelhavam aos de sua professora.
-- Dani está crescendo. Não está? -- disse a mãe de Dani.
-- Está sim. -- concordou a professora. -- Vejo vocês semana que vem.
Dani assentiu, despediu-se de Caio que a observava da porta da sala e partiu segurando a mão de sua mãe.
-- Como foi o seu dia, querida.
Dani ainda pairava sobre pensamentos e dúvidas que a intrigaram durante as últimas horas e quase deixou de responder a sua mãe.-- Foi bom. -- Respondeu simplesmente.
Dani a viu chamar o elevador e lançar um olhar preocupado para a escola.
-- Aquele menino que ainda estava lá... A mãe dele se atrasou.
-- Acho que sim. -- respondeu Dani.
Ela ficou em silêncio pensando se deveria fazer o comentário a respeito de Caio que surgiu em sua mente. Achou que não deveria. Mas acabou fazendo mesmo assim.
-- Você sabia que ele tem um pai? É ele quem vai buscar as vezes.
A mãe de Dani lançou um olhar profundo para ela. Permaneceu com os olhos fixos nos dela por alguns instantes e depois desviou.
-- Curioso. -- Disse por fim.
As duas entraram no elevador e desceram. Pelo vidro lateral, Dani ficou olhando os outros elevadores subindo e descendo pelas estruturas dos outros edifícios, imaginando como eles seriam por dentro. Concluiu que deveriam ser exatamente iguais ao que ela estava, já que na parte externa não haviam muitas diferenças.
-- Ele já morou em outro edifício, sabia? -- Disse ela surpreendendo sua mãe.
-- Quem.
-- Caio. E o pai dele.
A sua mãe a olhou pensativa pela segunda vez e Dani soube que passara de algum limite ao dizer isso e agora, precisava mudar de assunto.
-- Hoje é sexta feira. Eles vem? -- disse em tom entristecido.
-- Sinto muito querida. Eles não vêm hoje.
Dani já sabia. Também sabia que a sua mãe a confortaria.
-- Mas eu estarei com você, a noite toda.
Ela sempre estava.
-- Quer ir lá fora, querida.
O rosto de Dani brilhou com o convite de sua mãe. Mas logo mudou para tons de desconfiança.
-- Agora? Não temos que esperar todo mundo chegar em seus andares.
-- Hoje não. Estamos sempre onde deveríamos estar, no exato momento em que nos aguardam. Não faz mal falhar de vez em quando.
Dani sorriu. A sua mãe sugeriu uma nova parada ao elevador e obedecendo, ele parou antes de chegar ao destino habitual.
Ainda estava sol. Dani correu até o balanço. Havia um cheiro de chuva no ar e ela imaginou como seria ficar ali e se molhar. O gramado não era orgânico, pela primeira vez Dani o notou. Mas havia um perfume de terra molhada que fora perfeitamente reproduzido, caso também fosse simulado. A tarde estava agradável. Ela não queria ir embora e sua mãe não se apressou em chamá-la. Mas a noite começou a cair e elas não tiveram escolha.
As duas deixaram a varanda e voltaram para a sua acomodação. A mãe de Dani foi para a cozinha e ela para o banho. Após o jantar as duas ficaram juntas, como sempre ficavam. Já estava tarde e Dani viu que sua mãe dava sinais de que a queria dormindo, para fazer as coisas que as mães fazem quando suas filhas dormem. Mas ela não queria ir para a cama cedo. Não teve a visita que desejava mas pensou que se tivesse, teria de permanecer acordada e não se importaria com isso.
-- Preciso de ajuda com o trabalho da escola. -- disse ela.
-- Eu posso te ajudar. -- Respondeu sua mãe sorridente.
Dani sabia que sim. Foi até o seu quarto, pegou o quadro novo que havia ganhado dias atrás, mas que ainda não havia testado e voltou para a sala.
-- Sobre o que é esse trabalho Dani.
-- É sobre algum ponto de virada. Preciso descrever algo que mudou o mundo. Acho que tenho que encontrar alguma coisa que hoje é normal, mas há anos atrás era diferente. Sabe.
-- Não -- respondeu sua mãe, sorrindo interessada. -- Por que não me explica melhor.
-- A professora deu alguns exemplos. -- começou Dani -- na antiguidade os povos travavam guerras em que grandiosos exércitos se aniquilavam em um campo de batalha. Quanto maior o exército, maiores eram as chances de se vencer uma batalha. Mas isso mudou quando a humanidade inventou armas sofisticadas como metralhadoras e bombas. Então, os exércitos passaram a não fazer tanta diferença quanto os avanços em tecnologia militar. Isso foi um ponto de virada. Entende.
-- Sim querida. Mas então o seu trabalho é sobre guerras e essas coisas horríveis.
-- Não -- respondeu Dani decepcionada.
Dani concentrou-se e algumas imagens começaram a surgir em seu quadro.
-- Os seres humanos começaram a se dedicar para criar tecnologias militares cada vez mais avançadas. Através disso acabaram descobrindo outras coisas que também mudaram o mundo.
-- Sim eu entendo querida. Como esse quadro. Maravilhoso, não é.
-- Sim, mas antes disso houveram outras coisas, como o telégrafo. Isso foi a muito tempo. Aí, depois veio a internet. Que também é antigo, mas você sabe, o mundo começou a se comunicar de um jeito diferente. E esse foi outro ponto de virada.
-- Eu tenho orgulho de você querida.
Dani viu sua mãe brilhar com as demonstrações que ela a dava de sua inteligência. Então continuou.
-- A professora deu mais exemplos. Com a comunicação mais rápida, o mundo começou a dividir mais a sua cultura e as suas descobertas. Logo surgiram as naves estratosféricas e todo mundo podia viajar entre os principais pontos do planeta, em questão de horas. No começo foi um grande ponto de virada, pois antigamente, conhecer os quatro cantos da Terra era um privilégio para poucos. Mas aí, isso se tornou rápido e barato. O comércio começou a se aproximar de como é hoje. Transitar pela Terra se tornou algo tão normal que as pessoas simplesmente abandonaram certas regiões do planeta e se concentraram em grandes aglomerações.
Dani e sua mãe estavam deitadas em mesas de repouso, com as janelas abertas e com os escurecedores desligados, sendo iluminadas apenas pela luz de um luar brilhante. O sono que instantes atrás convidava Dani a se deitar, dera lugar a uma inquietação característica de quem adentra regiões férteis e imaginativas da própria mente. Ela continuou com a sua aula.
-- Essa migração deu origem aos edifícios, sabia? Não é estanho pensar que antigamente as pessoas andavam sozinhas por aí, pelo chão.
-- Muito estranho querida. Eu teria medo. Como elas se protegiam das criaturas que vivem lá em baixo.
-- O mundo não era assim. A humanidade tinha dominado e exterminado grande parte das feras. As pessoas destruíam as arvores para plantar em grandes campos. Eu não consigo imaginar algo assim. Já pensou? Um lugar imenso, sem árvores ou edifícios, apenas pessoas andando pra lá e pra cá? Eu só acredito porque vi as fotos. Deixa eu te mostrar.
O quadro que Dani segurava mudou de cor e começou a exibir imagens de grandes plantações e de cidades lotadas de pessoas caminhando pelas ruas. Em uma das imagens era possível ver no meio de uma plantação de milho uma pequena construção.
-- Eles viviam ali dentro daquele quadradinho, acredita? Chamavam isso de casa... Ou cabana. Ou então oca. Agora não me lembro.
-- Sim, querida... -- disse a mãe de Dani fazendo uma cara de quem havia feito uma incrível descoberta. -- Parece que você encontrou o que procurava, não acha.
Dani olhou para a sua mãe sem concordar ou discordar. Ela ficou tentando entender se a sua mãe estava se referindo ao sentimento inusitado e novo que brotara nela a pouco e ainda não fora completamente identificado. Mas a mãe dela continuou.
-- Quando passamos a viver nos edifícios tudo mudou para melhor. Parece um bom ponto de virada para o seu trabalho, não acha.
Dani suspirou, desapontada.
-- Isso é um ponto de virada sim, mas já faz tanto tempo... Acho que preciso de algo mais recente. E além do mais, foi a professora quem deu esse exemplo. Preciso ser mais criativa.
-- A sua professora deu muitos exemplos. Não parece ter sobrado muita coisa.
-- Eu sei. E ela disse mais.
Nesse ponto Dani se sentou e tirou o casaco, deixando que o calor de suas ideias a conduzisse nas explicações.
-- Quando as pessoas começaram a viver agrupadas nos edifícios, elas pararam de andar pela terra. O que as levou a isso foi outro ponto de virada. A revolução no entretem...
-- Entretenimento? -- ajudou sua mãe.
-- Acho que é isso. É que, quando os primeiros ambientes simulados surgiram, foi quando as pessoas perderam o interesse em andar pelo chão e ir a lugares diferentes... Ir... Você sabe, andando, ou de elevador e não com a mente. Já pensou como seria estranho precisar estar em um lugar para poder conhecê-lo.
Dani pareceu curiosa e sem entender ao certo porque, esperançosa.
-- Eu concordo querida. Mas eu nunca deixaria você andar por aí sozinha, com todos os perigos que existem. As pessoas dessa época se arriscavam muito.
-- Poderia ser divertido.
-- Querida.
-- Olha.
Dani mostrou em seu quadro uma foto de uma menina que viveu séculos atrás. Dani e ela tinham mais ou menos a mesma idade. A menina da foto abria os braços em um gramado verde e natural. Ao fundo se via uma construção antiga, feita de pedra. Para Dani, a menina não parecia estar com medo ou correndo algum risco.
-- A sua professora não deveria estar incentivando esse tipo de coisa. Logo ela que assim como eu... Digo, nós que possibilitamos um mundo melhor. Curioso. Veja essa menina da foto está sozinha. Sabe por quê? Porque as crianças que viviam antigamente não ficavam com as suas mães. Sabia disso? As mães ficavam o dia todo longe de suas filhas, se arriscando e fazendo coisas inúteis. E por isso elas estavam sempre cansadas. Elas não cozinhavam, não levavam as filhas para a escola. E nem iam brincar com elas na parte externa do edifício.
Dani se enfureceu.
-- Não existiam edifícios. Todo lugar era a parte externa. Eu queria ser essa menina.
-- Você queria ficar lá fora? Acho que as feras também gostariam disso. Se é o que quer posso deixar você lá em baixo por uns dias. Aposto que essa menina daria tudo para ter a vida que você tem.
-- Pelo menos a mãe dela tinha que trabalhar e não ficava com ela o tempo inteiro.
-- Dani! Já chega. Vá para o seu quarto.
Dani foi correndo para lá e fechou a porta com força ao entrar. Ela sentiu que começava a entender a estranha sensação que brotara em seu peito desde que... Percebeu que não sabia ao certo desde quando. Mas lembrou-se que não se sentia assim quando recebia visitas regularmente. Começou a se perguntar por que fora abandonada por eles? E... Quem exatamente eram eles? Percebeu que não sabia.
Durante aquela noite Dani quase não dormiu. Usando o seu quadro, produziu imagens nunca antes liberadas por sua mente. Foram tantos detalhes sobre a vida revelados em uma única dose de realidade que sentiu-se enjoada.
Sem entender exatamente o motivo, Dani sempre temera certos tipos de pensamentos. Sabendo que o quadro reagia a sua mente, de forma instintiva ela sempre soubera que certas ideias deveriam ser evitadas. Mas aquela noite a despertou para uma rebeldia até então desconhecida. Nada a impediu de pensar tudo o que sua mente solicitava.
O que acontece quando alguém caminha pelo superfície da Terra? Existe alguém que vive fora dos edifícios? Por que só o Caio tem um pai? Quem são os adultos que me visitavam? O que os adultos fazem quando não estão nos visitando? Por que a minha mãe se parece com a minha professora? Como surge um bebê? Como surge uma mãe?
Imagens de homens e mulheres adultos em detalhes pouco deduzíveis de como um bebê surge no mundo causaram em Dani nausea e ansiedade. Mas foi uma imagem de sua professora e outra de como surgem as mães que a causaram maior desconforto e desolação.
Na sequencia de buscas, Dani encontrou fotos de sua professora com diversos desconhecidos. Notou que ela fora responsável pela educação de todas as celebridades conhecidas por ela: atores e atrizes das simulações mais populares, atletas de jogos eletrônicos e até de membros de bandas semi-humanas.
Bastava que Dani pensasse em todas essas coisas, que mais imagens surgiam no quadro a derrubando para um poço inexplicavelmente profundo. Exausta, adormeceu.
Na manhã seguinte Dani ainda sentia o peso das descobertas exaustivas que haviam, de uma só vez, despencado sobre seus ombros. Mas o cheiro de seu café da manhã preferido a despertou. Ela foi até a cozinha e lá encontrou a sua mãe.
-- Desculpe -- disse ela sem saber precisamente pelo que estava se desculpando.
-- Tudo bem querida. Você está crescendo. -- O tom de voz de sua mãe sugeria que ela verdadeiramente não estava zangada.
Os primeiros momentos de seu dia foram observados silenciosamente. A sua fatia de pão de nozes com geleia já estava pela metade, quando Dani olhou nos olhos de sua mãe pela primeira vez naquela manhã.
Mesmo não sabendo explicar o que havia mudado desde o momento em que acordara, soube que receberia respostas sinceras como jamais recebera até então.
-- Eu não entendo. Onde eles estão? O meu pai e a minha...
Dani não pôde continuar.
-- Está tudo bem, querida. Eles vivem em muitos lugares. Fazem muitas coisas. As vezes não vêem o tempo passar. Um dia você entenderá melhor.
-- Por que Caio ainda pode ver o pai dele todos os dias.
-- Não é comum, querida, mas as vezes eles querem ficar com vocês... todos os dias... por mais tempo.
Mesmo sem ter explicações completas, no fundo Dani sentiu que confirmara o que já desconfiava a semanas. Com exceção de uma última coisa. Em um súbito momento de consciência sobre a vida e de seus pequenos detalhes repletos de significados, soube que não haveria no futuro, assim como não houvera no passado, momento mais adequado do que aquele para perguntar.
-- Você e a minha professora são...
-- Sim. Nós somos. Somos o que você procura... O tema para o seu trabalho da escola.
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