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Capítulo sexto


Ritchie Valens não compreendeu, na sua real amplitude e num primeiro momento, o que lhe tinha acontecido.

Ele escutou com atenção o que Mark lhe contava sobre encontrar-se noutra realidade temporal – era por demais evidente que o mundo que o rodeava tinha diferenças gritantes e escandalosas que não correspondiam ao que ele estava habituado. Aquilo era o futuro, um possível futuro. Havia mais, melhor, diferente, outros usos, outros desenhos, outras atitudes, mais ruído, a data num vulgar calendário. Mas no fundo continuava mentalmente preso à sua própria cronologia e era preciso que fizesse a longa viagem de trinta anos, desde o momento em que entrara naquele fatídico avião até àquele presente, sempre com a mesma idade de dezassete anos.

Mark mostrou-lhe o jornal desse dia, recolhido no balcão da cafetaria, antes de se sentarem a uma mesa nos fundos que era mais discreta por causa dessa localização. Seis de fevereiro. O ano era 1989. Ritchie emudecera, empalidecera, encolhera. Depois Mark contou-lhe que, de alguma maneira, ele tinha sido cuspido para o futuro e seria essa a explicação para que os destroços do avião tivessem desaparecido na manhã seguinte ao acidente.

Mark não foi inteiramente honesto. Para começar, escondeu-lhe a parte de que ele teria morrido em 1959, porque com o que acontecera, nem ele tinha a certeza se Holly, Richardson e o piloto da avioneta teriam morrido também, se tudo não estaria radicalmente mudado – um daqueles paradoxos que destruíam o universo ou algo assim. Pela reação do dono da loja de música era bem provável que o tal dia em 1959 tivesse sido mesmo funesto e de luto, com o desaparecimento de três grandes estrelas da música popular, jovens músicos talentosos e pioneiros do Rock 'n Roll. Mark simplesmente não queria arriscar ir rever a História para não apanhar um susto e perceber que estava a criar um buraco negro no tecido da galáxia. Por ora, lidava com o seu problema particular. E iria avançando com cautela, mostrando a pouco e pouco a verdade.

Se Ritchie interiorizou esse facto, Mark também não queria saber. Podia ser demasiado para o cérebro dele e o rapaz podia enlouquecer à sua frente.

Portanto, havia uma série de complicações novas que foram criadas, só naqueles últimos minutos em que ele tinha dito:

- Ritchie. Estamos no ano de 1989.

Por um instante, por um breve instante, o rapaz mostrou-se aliviado. Era como a resposta única, cabal e definitiva para tudo o que lhe fazia confusão, desde que despertara, na cama da pousada depois do acidente. Com essa declaração as várias peças do imenso quebra-cabeças encaixaram-se e tudo se esclareceu de uma maneira simples e direta. Um clarão de luz. No entanto, com o relâmpago soou o trovão, tudo ficou mais medonho e negro, então Ritchie reduziu-se a um rapaz extremamente só. Desligou corpo e alma, deixou-se ficar, quedo, apático, vazio.

O seu mundo já não existia – essa era a verdade. Trinta anos depois tudo o que ele conhecia já se teria esfumado. Incluindo a juventude dos que mais amava. As suas memórias recentes, memórias de um tempo fervente e próximo, próximo demais para recordar tudo com ínfimos pormenores de sentimentos e de acontecimentos, eram, em todos aqueles que ele queria rever com ânsia, a mãe, o irmão, a cunhada, os amigos, a namorada, eram memórias do passado, memórias apagadas em que a emoção ficara para trás, presa nessas reminiscências de há tanto.

Mark compreendeu que Ritchie lhe reservava, sem o saber, a tarefa ingrata de lhe contar o que sucedera desde aquela noite fria de fevereiro. Ou seja, falar da sua morte. Ritchie devia ter ficado também nos destroços do avião, devia estar morto como Buddy Holly, Richardson e o piloto – a fazer fé de que a História se mantinha e que não havia o tal cataclismo cósmico da alteração do curso do tempo – deveria ser apenas poeira, recordação, saudade. Para a sua família, para a sua namorada, para todos os seus amigos e até para os seus admiradores ele era apenas isso. Poeira, recordação, saudade. Nada mais. E era Mark que também lhe dizia que Ritchie podia voltar a Los Angeles, claro, era a sua cidade, mas que não iria encontrar nada daquilo que pensava encontrar, trinta anos depois.

- O que posso fazer, então? Não poderei... não poderei telefonar-lhes, entrar em contacto com eles? Saber se a minha mãe ainda está viva? – disse, por fim, ainda dormente.

- Não sei se vamos conseguir descobrir os seus telefones. Trinta anos depois, a tua mãe poderá morar noutra casa. É a hipótese mais provável.

À frente deles estavam dois batidos de chocolate, umas panquecas e ainda tinham sido pedidos dois hambúrgueres que estavam a ser confecionados, que viriam com uma quantidade absurda de batatas fritas. Naquela cafetaria as doses de batatas eram monstruosas.

- O xerife de Clear Lake poderá ajudar-nos. Aliás, a esta altura já terá descoberto quem sou eu, Richard Steven Valenzuela, nascido em maio de 1941 e que, nesta data, deveria ter quarenta e sete anos e não dezassete! Hoje é segunda-feira, os serviços dos registos já estão em funcionamento...

- Podemos falar com o xerife, sim – admitiu Mark, vagamente. Depois censurou-se mentalmente. Não se mostrava empenhado em resolver aquilo, o que era de certo modo caricato. Ele estava a ajudar o rapaz desde o início, o que devia incluir todas as classificações possíveis de ajuda.

- O xerife irá localizar a minha mãe. Acredito... acredito que ela ainda estará viva. E o meu irmão. E a Donna.

- É melhor esqueceres a Donna.

- Porquê?! – indignou-se Ritchie.

- Ora, meu... porque ela era a tua namorada, a esta altura está mais velha e casada com outro, com filhos e tudo. Não vais querer revê-la. Se me tivesse acontecido o mesmo, eu não queria rever a minha namorada. Já a tua mãe e o teu irmão, o caso é diferente. São família. Sangue do nosso sangue. Vão amar-nos sempre. As namoradas... as namoradas vão e vêm.

- Escrevi-lhe uma canção...

- Acredito que ela goste ainda de se lembrar desse pormenor. Tem uma canção famosa com o nome dela e tal. Ela guarda-te no coração, tenho a certeza. Mas refez a sua vida. Passou-se tanto tempo...

Ritchie ficou calado. Melancólico e contemplativo. Começou a chover no exterior e as gotas da chuva escorriam pela vidraça. O dia tornara-se ainda mais cinzento.

Os hambúrgueres chegaram, mas nem Mark ou Ritchie tinham fome. Nem sequer tinham provado as panquecas ou bebido um pouco do batido. Mark pediu a conta e pagou logo. As batatas fritas cheiravam muito bem. Ele borrifou-as de ketchup, agarrou numa que usou para espalhar o molho, pensou em trincá-la e prová-la, sabendo de antemão que estaria deliciosa, mas devolveu-a ao monte, frustrado por se sentir tão mal quanto o rapaz cantor.

- E o que foi que aconteceu comigo?

Mark inclinou a cabeça para a esquerda.

- O que queres dizer?

- O acidente aconteceu, não aconteceu? No dia três de fevereiro de 1959 a avioneta onde viajavam eu, o Buddy e o Richardson despenhou-se...

- Sim, acho que isso aconteceu. Pelo menos, no passado que existia antes de eu ter presenciado o acidente. Há uma semana era um facto irrefutável. Nesta altura em que existe a minha interferência não te posso assegurar que tenha acontecido. Até tenho medo de ir verificar.

- Explica-te, por favor.

- Salvei-te, Ritchie.

- Devia ter morrido com os outros, então...

- Fiz uma amiga, em Clear Lake. Chama-se Carol. Ela gosta muito de música dos anos 50 e dos anos 60 do século XX. Quando te reconheci, ainda na pousada da minha tia, falei com ela ao telefone e estive a fazer-lhe perguntas sobre ti. Ela contou-me a tua história... a tua breve história. Pelo menos no dia três de fevereiro de 1989 mantinha-se a versão dos acontecimentos de que, trinta anos antes, uma avioneta tinha caído em Clear Lake, no estado do Iowa, provocando a morte a três músicos famosos. Hoje, depois de te ter arrastado comigo... Agora, neste preciso momento, depois de te contar o que te estou a contar, ao teres conhecimento de que estás no futuro... não sei se as coisas continuam a ser assim. Interferir com o tempo é muito complicado.

- Então... eu morri.

Nem uma pergunta, nem uma afirmação.

Mark assentiu.

Pronto, estava feito. Tinha gerado o paradoxo. Fechou os olhos com força, não aconteceu nada. Mark abriu-os, a respirar muito depressa.

A verdade fora exposta e agora...

O que fazer agora?

Ritchie levantou-se bruscamente. Agarrou na guitarra que se encontrava pousada no banco, ao seu lado e saiu da cafetaria. Mark chamou-o, falou-lhe nas batatas fritas que eram excelentes ali, mas o rapaz não voltou para trás. E seria melhor deixá-lo com os seus pensamentos, com a sua versão dos factos conjugando com o que sentia e com o que experimentava desde o passado sábado.

Assentou os cotovelos na mesa, apertou a cabeça entre as mãos.

Mark não sabia o que fazer a seguir.

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