Conto
Os olhos de Tritão brilharam quando a professora anunciou que a nota dele havia sido a maior da turma. Se o brilho naqueles olhos não fosse suficiente, o sorriso que se abriu em seu rosto certamente seria a recompensa perfeita para Úrsula. O príncipe era seu melhor amigo e ela ficava feliz por deixá-lo feliz.
Os dois se conheceram no primeiro dia de aula, quando a mãe de Úrsula finalmente fez um feitiço para que a escola real aceitasse sua filha como parte da turma. Os outros príncipes e princesas, irmãos de Tritão, logo implicaram com ela por ser filha de uma bruxa, mas o jovem príncipe achou divertido ter uma amiga com dom para a magia.
Toda a família de Úrsula tinha aquele dom. Antes de sua mãe, seus familiares usavam o dom para ajudar as pessoas e o reino, por isso a mãe de Úrsula não fora expulsa de Atlântida quando começou a usar seu dom para proveito próprio. A família real se sentia em dívida para com a família de Úrsula.
Não que a jovem Úrsula estivesse muito interessada em seu próprio dom. Apesar de a família real aturar sua mãe e os feitiços dela – que felizmente não faziam mal a ninguém, só ajudavam-na e a família a conseguir tudo que queriam –, eles não gostavam muito da sereia, e esse sentimento de aversão acabou se estendendo para Úrsula e sua irmã Morgana. Sendo assim, Úrsula se sentia injustiçada e deixava seu dom de lado sempre que podia.
Quando chegou na escola real, ficou irritada por todos dizerem que ela era uma bruxa como a mãe, mas não fez nada para se vingar de quem a maltratava. Ao contrário, Úrsula escondeu cada vez mais a sua magia.
Fora Tritão quem mostrara a ela que não precisava se esconder e ter medo de ser quem ela era. Por isso Úrsula considerava sua amizade com Tritão uma das coisas mais importantes da sua vida de sereia.
Quando ela percebeu que seu amigo estava preocupado por não alcançar o título de melhor da turma – afinal, tanto ela quanto um de seus irmãos pareciam estar com um desempenho melhor que o dele –, Úrsula fez o que achou certo e ajudou o amigo.
Não usou nenhum tipo de magia, muito menos trapaceou para deixar que Tritão tirasse a nota máxima. Úrsula simplesmente disse ao irmão de Tritão que ele se arrependeria por tê-la tratado mal e o subconsciente do sereiano fez o resto do trabalho. O irmão de Tritão ficou tão preocupado com a possível vingança da "bruxa" que não conseguiu estudar para as provas e tirou nota baixa. Quanto a ela, bastou Úrsula não prestar atenção ao que respondia e sua nota caiu alguns pontos.
Como Tritão já era o próximo da lista de alunos com a melhor nota, foi fácil para ele atingir seu objetivo de ser o primeiro da turma. Independente de ter ficado para trás e não ter realmente tornado Tritão o melhor da turma – ela que se tornou e ao irmão de Tritão um pouco mais medíocres no estudo –, Úrsula acreditou com todas as suas forças que fizera o que era correto, pois seu amigo merecia ser considerado o melhor.
Tritão, porém, nunca soube o que ela fizera por ele e jamais poderia lhe agradecer ou retribuir o favor. Claro que Úrsula não viu nenhum problema naquilo, pois não tinha ajudado o amigo para obter uma recompensa; ela só queria vê-lo feliz.
***
Os olhos de Tritão brilharam quando o pai anunciou que observaria todos os filhos e escolheria o melhor entre eles para ser seu sucessor. Se o brilho naqueles olhos não fosse suficiente, o sorriso que se abriu em seu rosto certamente seria a recompensa perfeita para Úrsula. O príncipe era seu melhor amigo e ela ficava feliz por deixá-lo feliz.
Depois que terminaram os estudos, ambos com menções honrosas por serem os melhores da turma, Úrsula e Tritão continuaram sendo melhores amigos. Ela o procurava para falar sobre todas as pessoas que a ridicularizavam por ser filha de uma bruxa; ele a procurava para reclamar do pai que não lhe dava atenção. Ela o encontrava para falar sobre as coisas que queria fazer com seu dom da magia para ajudar as pessoas, assim como seus antepassados antes da mãe dela; ele a encontrava para falar sobre todos os planos que tinha para o reino quando e se conseguisse se tornar rei.
Foi em um desses encontros que os dois conversaram sobre o método de escolha do pai de Tritão de quem seria o sucessor do trono. Normalmente, o filho favorito do rei era quem o rei escolhia para ser o sucessor, já que os feitos desse filho favorito eram sempre melhor observados pelo rei.
Tritão confessou a Úrsula que achava aquilo muito injusto, pois o pai só tinha olhos para seu irmão mais velho, independente de ele ser uma péssima escolha como rei, pois era mesquinho e egoísta e não se importava nem um pouco com o povo de Atlântida. Úrsula não se sentiu culpada por concordar com o amigo e pensar que o rei estava errado. Mesmo que Tritão não fosse o escolhido, o rei tinha outros filhos que pensavam mais no reino do que em si próprios, mas o rei só tinha olhos para o filho mais velho, que era o único que não se importava com ninguém além de si mesmo.
Após muita conversa, Úrsula finalmente entendeu que a maior frustração de Tritão era o fato de que ele provavelmente seria o menos cotado para ser rei, apesar de ser o seu maior desejo. Durante toda a sua vida – e Úrsula podia atestar que era verdade desde que ela o conhecera na escola –, Tritão fez de tudo para ser o melhor dos príncipes de Atlântida. Não só ele queria aquele trono, como também queria fazer tudo para o bem de seu povo.
Mais uma vez, Úrsula não foi capaz de discordar do amigo. Sendo a melhor amiga de Tritão, ela sabia que ele era devotado ao povo de Atlântida e que faria tudo que estivesse ao seu alcance para que eles fossem felizes e tivessem uma boa vida. Como havia caído nas graças de Tritão e recebera todo o carinho e apoio que ele poderia dar a alguém, Úrsula também acreditava que ele seria a melhor escolha para suceder ao trono e não concordava com o fato de o pai dele não ver o filho como realmente era.
Dessa vez, porém, não foi suficiente ela se resguardar de ser a melhor ou fazer uma ameaça falsa ao culpado. Dessa vez, Úrsula sabia que precisaria usar sua magia de verdade, pois só assim conseguiria ajudar o amigo.
Como ela considerava aquele ato uma bondade para com o próximo, que era seu objetivo maior, Úrsula não se preocupou em contar para a mãe o que estava fazendo. Ela também nem precisou do livro de feitiços da família, pois aquele era um feitiço simples e não requeria nenhum tipo de ajuda, principalmente para alguém que parecia ter herdado o maior poder da família – algo que sempre fora motivo de brigas entre ela e Morgana, pois sua mãe parecia gostar mais de Úrsula por ter um poder aparentemente maior que o de Morgana. Não que ela acreditasse nisso, pois, para Úrsula, ela só parecia mais forte pois treinava e se empenhava mais para acertar do que a irmã.
De qualquer forma, Úrsula fez o feitiço durante uma noite de verão, quando o mar estava tranquilo e cristalino, os peixes não estavam agitados com os pescadores e os sereianos estavam dormindo. Apesar de ser uma sereia quase rejeitada da sociedade, ninguém poderia negar que ela era uma das mais bonitas do reino, com seus cabelos negros como o abismo do oceano e a cauda roxa brilhante como corais. Era fácil para ela circular pelo reino sem que as pessoas ficassem curiosas sobre o que estava fazendo e esse era o motivo de conseguir chegar tão perto do palácio sem ser enxotada pelos guardas reais que protegiam o lugar. Por mais que muitos duvidassem, Úrsula nunca precisou usar sua magia para fazer com que as pessoas ouvissem o que tinha a dizer e acreditassem em suas intenções.
Parada ao lado da torre do quarto do rei – lugar que ela visitara uma vez durante um passeio da escola real pelo palácio –, Úrsula recitou as palavras mágicas que fizeram a água tremer ao seu redor e viajar em uma velocidade extremamente acelerada até o quarto do rei. Enquanto seus olhos brilhavam com a mesma cor de sua cauda, Úrsula sussurrou as palavras que o feitiço se encarregaria de colocar na mente do rei:
― Observar todos os feitos de todos os príncipes é o melhor jeito de escolher o sucessor do trono.
Aquelas palavras, como ela esperava, entraram na mente do rei e se instalaram com tanta força, que nem um feitiço parecido poderia retirá-las.
No dia seguinte, o rei convocou todos para fazer um anúncio que poderia mudar a história de Atlântida e falou as palavras que Tritão queria tanto ouvir.
O jovem príncipe, depois de ouvir o anúncio e de ser liberado do salão como os outros súditos do reino, foi direto conversar com sua melhor amiga. Ele não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo e que ele finalmente teria uma chance de se tornar o rei. No entanto, ele não agradeceu a ajuda de Úrsula, já que não fazia ideia do quanto ela tinha influenciado naquela decisão do rei. Úrsula não se importou com aquilo, pois ela não havia feito nada para receber um agradecimento, ela havia conjurado o feitiço para deixar o amigo feliz e conseguira seu intento sem problemas.
***
Os olhos de Tritão brilharam quando ouviu o anúncio do pai dizendo que, depois de muita deliberação, ele passaria a coroa e o reino para suas mãos capazes. Se o brilho naqueles olhos não fosse suficiente, o sorriso que se abriu em seu rosto certamente seria a recompensa perfeita para Úrsula. O príncipe era seu melhor amigo e ela ficava feliz por deixá-lo feliz.
Com um toque de timidez e modéstia, Úrsula retribuiu o sorriso do novo rei de Atlântida de onde estava no meio do salão real. Não era a primeira vez que ela retribuía aquele sorriso, mas era a primeira vez que sentia algo diferente ao observá-lo. Seu estômago parecia revoltado, como se tivesse um cardume agitado lá dentro. Não era a primeira vez que se sentia assim, também.
Desde que o rei anunciara que observaria os filhos para escolher o novo rei, Tritão começou o que ele gostou de chamar de campanha. Todos os projetos que ele imaginara que faria quando e se conseguisse assumir o trono foram colocados em prática – ou pelo menos iniciados.
Porque também queria ajudar o povo de Atlântida, Úrsula ficou ao lado de Tritão o tempo todo – não que ela não fosse fazê-lo simplesmente por ser sua melhor amiga, mas saber que estava sendo útil para os seres do mar a deixava ainda mais feliz em ajudar – e tomou parte em todos e cada um dos projetos do amigo.
Primeiro, ela fez questão de contar a todos os sereianos que conhecia – os que gostavam dela porque seus ancestrais os ajudaram e os que acreditavam que ela seria tão egoísta e impertinente quanto a mãe – que Tritão era a melhor escolha para ser rei e que, se elas o procurassem, ele as ajudaria com muito prazer.
Depois, ela ajudou Tritão com a construção das casas de corais ao norte do palácio. Apesar de não ter muita força em sua cauda para carregar corais e nadar rápido, Úrsula fez o maior esforço para ajudar no projeto, voltando para casa com dores em todo seu corpo de sereia.
Muitos outros projetos se seguiram. No começo, Úrsula pensou que não podia ficar mais feliz ao ver o sorriso de Tritão, sempre orgulhoso e satisfeito. No entanto, à medida que o tempo foi passando, o sorriso que ela tanto apreciava começou a morrer nos lábios do príncipe e também em seus olhos. Preocupada, Úrsula quis saber o motivo e Tritão – com os olhos trovejando de raiva, as mãos fechadas em punhos e as escamas da cauda tremendo e reluzindo diversas cores além do azul natural – explicou-lhe que não estava adiantando nada o que estavam fazendo, que, apesar de ter dito que olharia para todos os seus filhos da mesma maneira a fim de escolher seu sucessor, o rei ainda só tinha olhos para o filho mais velho, que nada estava fazendo para merecer aquela atenção.
Indignada com a atitude do rei, tanto como súdita quanto como amiga de Tritão, Úrsula decidiu agir mais uma vez.
― Há sempre uma maneira de se conseguir o que quer ― era a frase favorita de sua mãe antes de fazer algum feitiço. E, como queria ajudar a tirar aquela raiva do amigo e a dar a ele o que desejava, Úrsula não pensou que haveria algo ruim em finalmente usar seus poderes para um feitiço de grande porte.
Afinal, sussurrar uma ideia na mente do rei não fora o suficiente para fazê-lo tomar a decisão certa, nem mesmo servira para fazê-lo tomar um rumo diferente. Dessa vez, Úrsula sabia que precisaria mudar a mente do rei completamente e esse tipo de feitiço não era algo tão simples quanto um sussurro.
Mesmo assim, ela não quis contar nada a ninguém, nem mesmo à sua mãe, pois sabia que qualquer um tentaria impedi-la.
― Grandes feitiços requerem muita força ― dizia sua mãe ― e um preço muito mais alto.
Úrsula sabia que estava arriscando muita coisa quando pegou o livro de feitiços de sua mãe escondido no meio da noite. Mesmo assim, como nunca vira ou soubera que sua família havia se encrencado ao usar os poderes para ajudar os outros, ela não pensou que o preço a pagar fosse tão alto quanto a mãe dizia, já que estava fazendo aquilo para ajudar a reparar uma injustiça.
Pegando escondido o livro de feitiços e os ingredientes da mãe, Úrsula criou um feitiço para que o rei tivesse olhos apenas para Tritão em vez de seu irmão mais velho, aumentando consideravelmente as chances do amigo de se tornar rei. Como ela esperava – e como qualquer um esperaria se soubesse o que ela tinha feito –, o feitiço fora impecável e Tritão conseguira seu lugar ao trono.
Agora Úrsula estava ali, no meio do salão real, ouvindo o rei anunciar que Tritão sucederia ao trono e vendo o sorriso satisfeito e ambicioso tomar conta das feições do amigo. Ela mesma não poderia estar mais feliz e orgulhosa do que naquele momento. Tudo o que tinha feito não tinha sido em vão.
A primeira pontada a atingiu quando os habitantes de Atlântida que estavam assistindo à cerimônia se aglomeraram rapidamente em torno de Tritão, assustando-a e afastando-a. Úrsula sabia que poderia conversar com o novo rei quando a cerimônia acabasse e ele não estivesse rodeado de seus seguidores e súditos, mesmo assim ela sentiu uma pontada em seu coração quando os olhos de Tritão se desviaram dos dela para a multidão, sem nem um pingo de tristeza ou remorso.
Enquanto se afastava para esperar no fundo do salão até todos irem embora, o sorriso de Úrsula foi diminuindo e os pensamentos dela vagaram para o lado sombrio. Tritão gostava da atenção que estava recebendo e não se sentia triste ou perturbado por não poder compartilhar aquele sentimento com sua melhor amiga imediatamente.
Outra pontada em seu peito fez com que ela fechasse os olhos e levasse a mão ao coração, sua respiração acelerando. Aquilo não era um sinal da tristeza por ter se afastado do amigo, como ela imaginara que fora o motivo da primeira pontada que sentira alguns segundos antes.
Por saber que poderia estragar a felicidade do amigo – até mesmo diminuir a importância da cerimônia a que acabara de assistir – ao chamar atenção para seu sofrimento, Úrsula não continuou esperando que todos fossem embora. Em vez disso, ela mesma saiu de fininho por uma das passagens laterais do grande salão do palácio.
Se ficasse e estragasse o momento de Tritão, tudo o que tinha feito seria em vão.
A terceira pontada que a atingiu não foi somente em seu peito. Na verdade, iniciou como uma terceira pontada no coração, mas reverberou por todo seu corpo, como as pequenas ondas mais fracas que seguem a primeira maior e mais forte.
Algo estava errado e ela sabia que tinha a ver com o feitiço que tinha feito. Pelo jeito, sua mãe estava certa quanto ao preço que precisava ser pago pelos feitiços mais poderosos.
Sem pensar duas vezes, principalmente porque não sabia quem mais procurar, Úrsula voltou rapidamente para casa. No meio do caminho, outras pontadas atingiram seu peito e espalharam-se por seu corpo. Cada vez que sentia uma nova pontada, as pequenas ondas que seguiam a maior se tornavam mais fortes, até que Úrsula sentiu como se todo seu corpo estivesse recebendo diversas picadas de ouriços do mar. Quando finalmente chegou em casa, a jovem sereia quase não tinha mais forças para se movimentar e sua cauda estava praticamente petrificada, como se não lhe servisse mais, tamanha era a dor que sentia se espalhar por ela.
Ao abrir a porta, Úrsula foi incapaz de segurar as lágrimas de dor que insistiam em deixar seus olhos – não que alguém pudesse notar quando chorava, já que as lágrimas se misturavam com a água do mar, ambas salgadas e frias. A mãe de Úrsula estava toda encolhida no chão, abraçando o próprio corpo com força, e Morgana estava desmaiada na entrada do próprio quarto.
― O que você fez? ― perguntou a mãe de Úrsula assim que viu a filha entrar se arrastando dentro de casa.
― Mãe... ― foi tudo que Úrsula conseguiu dizer antes de sentir a pontada mais forte de todas atravessar seu corpo, ao mesmo tempo em que via a mãe e a irmã tremerem e se agitarem.
Tudo o que já passara em sua vida voltou como flashes em sua mente. Os sereianos elogiando-a por ser a bela sereia neta da sereia mais gentil de toda Atlântida. Os habitantes do mar odiando-a e xingando-a por ser filha da sereia mais ambiciosa e egoísta que eles já conheceram. As horas incríveis que passara ao lado de Tritão, ajudando-o e fazendo-o feliz.
Tritão, o pensamento passou por sua mente e se manteve lá. Tritão me ajude.
Mas Úrsula não esperou que ele aparecesse. Por mais que sua mente gritasse o nome dele, seu corpo tremia e se debatia por vontade própria, e ela não tinha forças nem coragem de chamar por ele em voz alta. Fizera tudo por ele, mas ele não fazia ideia e por isso era ela quem estava pagando o preço. Ela e sua família.
Mais lágrimas se misturaram à água do mar quando ela observou os corpos de sua família e o seu próprio mudarem drasticamente. Os cabelos lustrosos e brilhantes caíram e quebraram, tornando-se duros e curtos. As caudas de escamas primorosas e sublimes tornaram-se praticamente lisas antes de se repartirem em seis diferentes tentáculos. As cores vivas que as três sereias apresentavam em suas caudas enegreceram e as ventosas foram tingidas de cores escuras e foscas.
Pouco antes de desmaiar como sua mãe e Morgana, Úrsula percebeu o preço que estava pagando pelo feitiço que tinha feito para ajudar Tritão: ela e sua família estavam deixando de ser sereias e se tornando cecaelias. Pouco antes de perder a consciência, Úrsula se tornou o que mais odiava: uma verdadeira bruxa do mar.
Quando retomou a lucidez, Úrsula não estava mais se debatendo, nem sua irmã e sua mãe, que estavam na frente dela sendo arrastadas por guardas reais. Ao sentir dois pares de mãos segurarem seus braços, Úrsula sentiu medo, mas não reagiu. Se os guardas estavam ali, com certeza levariam ela e sua família para ver o rei e, como ela tinha garantido, o rei agora era seu melhor amigo.
O trajeto que levara muito tempo no dia anterior levou um terço do tempo agora que ela estava sendo carregada pelos sereianos, sem precisar usar os tentáculos que ainda precisaria aprender a controlar. Rapidamente, eles chegaram ao salão real e Úrsula se viu frente a frente com Tritão; ele sentado no trono e ela diante dele, jogada no chão pelos guardas que a levaram até lá.
Pela primeira vez desde que o conhecera, o olhar de Tritão em sua direção expressava surpresa e desgosto – e talvez um pouco de nojo, mas Úrsula não queria acreditar naquilo.
― O que...? ― Tritão nem conseguiu terminar a pergunta, porque um nó se formou em sua garganta.
― Tritão ― chamou Úrsula, mas se calou imediatamente. Apesar de não estar se sentindo muito forte para falar normalmente, mesmo com a voz baixa, Úrsula pôde ouvir a mudança que sucedeu-se a sua antes melodiosa voz de sereia. Ela nunca mais teria a capacidade de cativar os navegantes e essa constatação partiu seu coração, assim como os olhos arregalados de Tritão. ― Eu...
Ela também não conseguiu terminar de falar.
― A culpa é toda sua! ― A voz estridente da mãe de Úrsula atingiu-a como um canhão de navio. Principalmente porque se dirigia ao rei e não a Úrsula, como esta havia imaginado que seria. ― Minha filha está pagando o preço pelo seu sucesso.
― Como ousa! ― Tritão indignou-se.
― Mamãe! ― Úrsula implorou. Independente de achar que o preço que estava pagando por ajudar o amigo era alto demais, Úrsula não queria agir como se fosse culpa dele, já que ele não sabia de nada.
― Ela fez isso por você ― a mãe de Úrsula cuspia as palavras carregadas de repugnância e amargura. ― Você só é rei por causa dela, e ainda tem a capacidade de trazê-la aqui como se fosse uma criminosa? O que ela fez de errado? O que nós fizemos de errado?
Úrsula podia ver as escamas de Tritão tremendo e suas mãos se fechando – uma delas, em torno do tridente. Ela sabia que o rei estava ficando irritado.
― Você e sua família foram trazidas aqui porque foram denunciadas como bruxas do mar ― o rei falou com os dentes cerrados. ― Eu não pude acreditar, então quis ver com meus próprios olhos antes de expulsá-las do reino.
― Expulsar?! ― Foi a vez de Morgana indignar-se.
O olhar que Tritão lançou a sua irmã fez Úrsula se encolher também. Nunca tinha visto o amigo ser tão implacável.
― Tritão...
Antes que Úrsula pudesse terminar de falar, os olhos rigorosos de Tritão se voltaram para ela ao mesmo tempo em que as pontas do tridente de um dos guardas colaram no seu pescoço.
― Você vai falar com respeito diante de sua majestade ou não sairá daqui viva ― o guarda falou.
Úrsula engoliu em seco.
― Deixe-a ― ordenou Tritão, e Úrsula quase se sentiu aliviada quando a rigidez deixou rapidamente os olhos do rei e o tridente foi afastado de seu pescoço, mas foi só quase, pois a voz de Tritão ainda era intransigente quando se dirigiu a ela. ― O que você fez?
― Eu só queria ajudá-lo ― Úrsula usou sua melhor arma – a única que tinha –, a verdade. ― Só queria deixá-lo feliz.
― Está insinuando que eu não consegui o trono por meus próprios méritos?
― Eu jamais diria isso! Você mereceu... Você merece ser rei. É o único capaz de fazê-lo de uma forma que o povo de Atlântida não seja prejudicado. Por isso fiz o que pude para garantir que você tivesse o que merecia e queria tanto...
O riso desdenhoso e enojado que deixou os lábios de Tritão foi suficiente para calar Úrsula. Desde que entrara naquele salão e encarara o melhor amigo, Úrsula fez um grande esforço para não se sentir mal pelo nojo que ele parecia sentir por sua nova forma. Tritão fora o único, além de sua família, que nunca a vira como uma bruxa do mar disfarçada de sereia, mas, ao que tudo indicava, vê-la como uma cecaelia mudou sua opinião completamente.
― Você usou um feitiço em mim? ― ele perguntou, os dentes cerrados e a mão no tridente com os nódulos brancos de tanta força que fazia ao apertá-lo. Antes que Úrsula pudesse responder, ele continuou: ― Usou um feitiço em meu pai, o rei?
― Tritão...
― Por que fez isso, Úrsula?! ― A voz de Tritão ecoou pelas paredes do salão real. ― Pensei que você fosse diferente do que todos diziam. ― Dessa vez, ela pôde ouvir a mágoa na voz do amigo.
― Tritão...
― Quantas vezes?
Aquela pergunta a pegou desprevenida e Úrsula não conseguiu fazer nada além de arregalar os olhos antes de desviá-los para baixo. Ela não poderia mentir para ele mesmo se quisesse.
― Quantas vezes usou um feitiço em mim?
― Nunca usei um feitiço em você ― ela respondeu, encarando-o de novo. O queixo erguido era prova suficiente da confiança em suas palavras.
― Quantas vezes usou um feitiço em meu pai?
Assim como tinha certeza de que não mentira quando dizia que nunca havia enfeitiçado Tritão, Úrsula tinha certeza de que enfeitiçara o rei mais vezes do que seria justo. Por esse motivo, ela baixou os olhos de novo. Pela primeira vez sentindo vergonha pelo que tinha feito para ajudar o amigo.
― Você não é diferente do que as pessoas diziam de você e de sua mãe.
Porque podia ouvir a tristeza na voz de Tritão, Úrsula não teve coragem de levantar os olhos novamente. Diferente de sua mãe que começou a praguejar e acusar Tritão de ser o responsável pelo que ela e as filhas estavam passando.
Tritão ouviu tudo calado, ainda olhando para Úrsula, que olhava para baixo. Por ter passado grande parte de sua vida sendo amigo dela, ele esperava que ela levantasse a cabeça e dissesse que nunca tinha feito nada daquilo de que era acusada. Ele acreditaria nela mesmo que sua transformação em cecaelia fosse prova suficiente de que ela estaria mentindo. Tritão queria que ela mentisse. Pela primeira vez em sua vida, Tritão torcia para que ela mentisse para ele, pois só assim ele poderia ajudá-la. Porém não foi o que aconteceu e ele se sentiu triste por ter que castigar alguém que fora verdadeira com ele em todos os momentos em que estiveram juntos.
Sem levantar os olhos novamente, Úrsula ouviu o amigo dar a ordem para que ela e sua família fossem expulsas do reino. Sem levantar os olhos, Úrsula foi banida para uma caverna nas profundezas de um abismo escuro. Sem levantar os olhos, Úrsula ouvira as acusações de sua mãe e de sua irmã.
Quando finalmente levantou os olhos de novo e ergueu a cabeça, Úrsula só conseguiu sentir ódio. Uma fúria tão pura e profunda que fez seus olhos ficarem permanentemente roxos; um brilho fantasmagórico nas profundezas do oceano.
Ela fora boa, fora amiga, fora fiel e tudo o que recebeu em troca foi nojo e desdém. Ela usara seus poderes para ajudar os outros e só ela pagara o preço. Nunca mais prometeu a si mesma, nunca mais pagaria o preço por ninguém. E, a partir de então, passou a cobrar preços muito mais caros por sua ajuda. Ela havia pago por outro alguém e agora todos pagariam por ela.
***
Os olhos de Tritão brilharam quando a música soou e Sebastião cantou a apresentação da filha mais nova do rei. Se o brilho naqueles olhos não fosse suficiente, o sorriso que se abriu em seu rosto certamente seria o castigo perfeito para Úrsula. O rei fora seu melhor amigo e ela ficaria feliz quando finalmente conseguisse arrancar a felicidade dele.
Quando percebeu que Ariel não estava onde deveria estar, Úrsula sorriu desdenhosa e satisfatoriamente enquanto se retirava do salão real onde entrara disfarçada. A princesa seria a chave da sua vingança.
Tudo o que dera a Tritão, Úrsula tiraria sem pensar duas vezes; sentiria grande prazer em fazê-lo.
Tritão soube de tudo o que ela fizera por ele e jamais lhe agradeceu ou retribuiu o favor. Úrsula via aquilo como ofensa e deslealdade, pois nunca tinha mentido para o amigo ou exigido uma recompensa. Agora, ela só queria vê-lo infeliz.
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