O Segredo
Os eventos, a partir daí, desenrolaram–se como se eles estivessem numa roda viva. Aurélio não se recordava da ordem das etapas, apenas que ele e sua tripulação foram conduzidos, manuseados, esterilizados, colocados em eletrodos, vestidos e preparados para terem os capacetes "aparafusados" um pouco antes do ingresso na nave. E em meio a tudo isso, a notícia negativa: o diretor de voo lhes avisou que Euzébio não poderia decolar. Não adiantou argumentar que era o piloto da missão. Que ele poderia ser costurado e medicado para continuar o tratamento na cidadela... Eles disseram que o ferimento precisava de estabilidade gravitacional para ser tratado.
O mundo de Euzébio, como ele conhecia, acabou-se. Mas havia um lugar para ele na sala de controle. Ele estava disposto a ajudar os colegas a realizarem o lançamento com êxito. O seu reserva foi acionado e buscado pelo Serviço Secreto – o que atrasou o lançamento em duas horas. Consequentemente a tripulação de Aurélio precisou segurar as necessidades por mais tempo do que o devido.
Todo mundo evitou beber água.
As televisões estavam ligadas no conflito que se estendia pelo planeta afora. As imagens eram terríveis, e os distraíam enquanto eles tentavam se concentrar na checagem para entrar na área onde estava o foguete. Mas uma cena os fez congelar por completo. Aliás, a todos na base, desde a equipe da sala de controle até os técnicos que trabalhavam junto ao foguete Mercúrio 12. Uma das tripulações foi capturada a caminho de um dos cofres e os astronautas foram desmembrados diante das câmeras (imagens feitas pelos seus captores e enviadas às redes de televisão). Todos ali sabiam o que iria acontecer com os corpos. Há algumas décadas, a prática do canibalismo se tornou comum e frequente entre os povos cujos alimentos se esgotavam. Mas tornou–se também comum entre os terroristas e guerrilheiros que viviam à margem dos recursos que pleiteavam.
Aurélio desviou os olhos para não ver o que a televisão fazia questão de exibir, em busca da elevação da audiência.
– Quantas tripulações conseguiram chegar à base? – indagou ao diretor de voo e chefe da missão em terra.
O diretor encolheu os ombros.
– Cada país selecionou um grupo com variedade étnica, para perpetuá–lo. Cada qual, transportando uma bomba populacional... Conhecida na gíria como o plano b, por causa de um antigo filme de ficção científica, chamado Interestelar. Conhece?
Aurélio fez que não, embora tenha ouvido falar.
– No nosso caso, – o diretor sorriu – não temos seres misteriosos nos ajudando a abrir um buraco de minhoca. Enfim, dos doze países que conseguiram construir suas bases e treinar suas equipes sem que a mídia ou os espiões descobrissem, oito tripulações chegaram às bases. Em duas etapas de lançamento. Até agora, quatro conseguiram decolar. Algumas bases foram descobertas e queimadas, explodidas, ou simplesmente, foram invadidas. Creio que vocês foram a quinta e última turma a chegar ao destino. As demais, que foram acionadas, não conseguiram. Está sendo um grande feito que o reserva de Euzébio tenha sido localizado e extraído com sucesso. Aliás – ele olhou para a tela plana a sua frente, que mostrava um ponto num mapa mundi – ele está quase chegando. Por sorte, nossa base continua desconhecida. Mas assim que nós lançarmos o foguete, desmontaremos tudo e partiremos para outro esconderijo. É para lá que direcionaremos os foguetes reutilizáveis. Para que não caiam em mãos ignóbeis.
Euzébio quase riu diante da escolha de palavras. Ele diria revoltados, revoltosos, psicóticos, bárbaros, assassinos... Qualquer uma dessas definições soaria menos pueril do que "ignóbeis".
De acordo com o diretor, a NASA tentaria enviar mais tripulações nos próximos dias. Aurélio balançou a cabeça. Só poderia torcer para que fossem afortunados como a sua tripulação.
–Calma, meu rapaz! – O diretor o encarou de um jeito estranho. – Você ainda não decolou. Sua tripulação só será computada no placar, e na coluna dos sortudos, quando alcançarem a cidadela.
Aurélio tinha que concordar com a cruel lógica do chefe de voo. Ele se virou para o seu piloto ferido.
– De repente, você pode vir com a próxima tripulação – ele sugeriu.
O diretor de voo meneou a cabeça, ao escutar a sugestão.
–Só se algum dos tripulantes da próxima leva for emboscado e ferido. Não há lugar para passageiros extras, apenas substituições.
As sobrancelhas de Euzébio altearam.
– A esperança é a última que morre – foi tudo o que disse.
Pobre homem. Era a porcaria de uma loteria, isso, sim! Como a paciência do diretor para lidar com questões de fé, era curta, ateve-se aos fatos diante de seus olhos. Encolheu os ombros, não vendo necessidade de buscar palavras vazias de conforto. Já presenciara muitas desgraças para pensar em esperança e fé, nesta altura do campeonato.
Não havia esperança nem para ele, nem para os que ficavam na Terra; mas ele não tinha permissão de revelar a realidade aos que partiam. Do contrário, não partiriam.
– O quanto antes lançarmos vocês, mais rápido desmontamos a base e estaremos livres para partir – limitou–se a informar, afastando–se para receber o substituto de Euzébio, o qual acabava de chegar. Acrescentou por sobre o ombro: –A celeridade diminui os riscos para a equipe de lançamento.
Aurélio virou–se para o piloto.
– Adeus, meu amigo – sorriu com tristeza. – E boa sorte!
Euzébio olhou–o por um instante, ainda perplexo com tamanha reviravolta.
–Adeus – murmurou.
Aurélio encaminhou-se, relutante, para a área de checagem – aonde os outros o aguardavam.
–––
Os sons ecoavam abafados ao redor dos astronautas, por causa dos capacetes. As únicas vozes nítidas eram ouvidas dentro de suas cabeças, pelo ponto que recebia o sinal de comunicação. Sentindo–se comprimidos em seus trajes pesados, eles ouviam tudo que se passava na sala de controle. Então vieram os procedimentos...
–Contagem, sistemas... – soou o técnico, pelo rádio.
–Controle de rádio, atenção...
–Preparar configurações...
–Aguardar pré-ignição...
Era chegado o momento tão ansiado. Sentados e firmemente afivelados às poltronas do cockpit, eles assistiam e escutavam, enquanto a sala de controle preparava o lançamento. Só iriam assumir o real controle do pesado maquinário, quando a nave de transporte e o foguete estivessem em altitude suficiente para que fizessem a desacoplagem. O foguete então retornaria para ser reaproveitado. Para isso, a NASA mantinha equipes de caça-foguetes de plantão, ao redor do mundo. Bastava programar o raio da queda e pronto, ficava mais fácil recuperá-lo, antes que os fanáticos caçadores de heresias os encontrassem e destruíssem.
–Tripulação 17, atentos à contagem regressiva...
–Propulsores...
–Sistemas...
Finalmente, a voz do diretor de voo soou nos ouvidos de todos:
– Contagem regressiva...
E ao final, ele disse: – Acionar...
O som ensurdecedor do foguete – que rugia ao mesmo tempo em que a haste de sustentação era afastada – passou a ser o único som a preencher os ouvidos de cada um dos astronautas.
Tudo vibrava, estremecia e sacudia enquanto o foguete levantava voo para o céu infinito. Obviamente, Aurélio concluiu, a base teria de ser desmontada muito rápido. A cauda do foguete podia ser vista em toda aquela área, como uma grande flecha que anunciava aos quatro cantos: a base fica aqui!
Ele continuou tenso, enquanto o foguete vencia o atrito com a atmosfera. Tentou se acalmar para vislumbrar o futuro. Um futuro sem seus pais, irmãos e amigos. Cada qual naquela tripulação deixaria pra trás um mar de tragédias pessoais. Aurélio também tinha a sua coleção de sepulturas. Os amigos de infância... Dora, sua esposa e seu primeiro amor... Que morreu nas mãos dos guerrilheiros depois de viver horrores indescritíveis.
Eles a comeram – literal e figurativamente falando.
Agora Euzébio, seu último amigo, também ficava para trás, na incerteza da sobrevivência... A pergunta não era se, mas quando os que ficaram iriam morrer. Eles estavam se sacrificando pela sobrevivência da espécie.
Aurélio fechou os olhos pensando se valia à pena salvar uma raça que cometia tamanhas atrocidades. Cogitou se todos os esforços da NASA iriam ajudar num aspecto crucial: educação. Uma espécie que caminhava irremediavelmente para a incivilidade e a barbárie; que estava além de qualquer reação animal reflexa, para sequer ser adestrada. Quem dirá, educada... Nesse ponto, talvez fosse mais lógico dizer que os animais tinham mais chances de evolução e sobrevivência do que os humanos.
Bem, Aurélio ainda tinha esperanças de fazer a diferença.
–––
As tripulações que conseguiram ser lançadas alcançaram a Geiser quase que simultaneamente. Os foguetes se desacoplaram numa sincronia quase tão perfeita, que mais parecia um balé. O movimento geral foi um só, pois a NASA sabia que medidas seriam tomadas para que nenhuma outra nave pudesse ser lançada da Terra sem que houvesse retaliação por parte dos interesses contrários à exploração espacial. Provavelmente numa próxima tentativa, muitos dos foguetes seriam derrubados. Era preciso agora realocar as bases em outros esconderijos, fazer um inventário das matérias primas e criar novas estratégias de lançamento.
Os que se foram, agora, estavam aos cuidados da equipe da NASA a bordo da Geiser.
As comportas de acesso da cidadela abriram–se e as naves manobraram conforme as instruções da ponte de comando a fim de se acoplarem às plataformas do hangar gigantesco. Assim que as tripulações estavam asseguradas, com equilíbrio de atmosfera nos túneis de passagem, eram encaminhadas ao grande salão de convivência e ambientação. O trajeto do hangar ao salão lhes forneceu um pequeno vislumbre daquela imensa nave, seu funcionamento, e seus habitantes.
Quando o salão estava cheio de tripulantes, usando seus pesados trajes espaciais (alguns já davam conta de tirá-los e ajudar os colegas a tirarem), o comandante maior, de nome Xisto, apareceu no alto da ponte de comando. Fez–se silêncio imediato. Toda a movimentação cessou. Aurélio se perguntou se o nome do comandante era verdadeiro; provavelmente, uma escolha para a nova vida. As pessoas a bordo podiam fazer isso. Ele percebeu que já havia uma tripulação enorme, bem como um grupo de passageiros circulando pelos ambientes, encarando–os com curiosidade contida. Pessoas com trajes diferentes dos recém–chegados. Então, porque precisavam deles? Para que mais gente? Enquanto ele se debatia internamente com suas dúvidas e suspeitas, Xisto tomou a palavra.
–Vocês devem estar se perguntando por que não são os primeiros a chegar aqui – ele basicamente adivinhou–lhe os pensamentos. – Bem, esse lugar não se construiu sozinho. E as pessoas não iriam se arriscar retornando à Terra.
Ele se apoiou na grade, e encarou a multidão de astronautas.
– Cada um de vocês veio de uma família importante, com dinheiro suficiente para pagar pelo seu treinamento. Seus parentes e/ou patrocinadores sabiam que era um bilhete só de ida, uma forma de salvá-los... Porque o fato é que não há mais salvação para eles, nem para a Terra.
Os astronautas começaram a questionar, mas Xisto ergueu a mão. E o treinamento/hierarquia falou mais alto. Todos silenciaram.
–Ninguém aqui irá retornar a Terra. Estamos partindo para fundar novas colônias. Existem outras sete naves do porte da Geiser, estacionadas na parte escura da Lua. Naturalmente, os grupos terroristas, os guerrilheiros, e quaisquer outros movimentos contra–os–ricos–e–poderosos... – ele encolheu os ombros de um jeito jocoso. – Todos eles sabem o que estamos fazendo. Não podem provar, mas sabem. Eles não ligam se podem provar, desde que explodam tudo, entendem? E nós não ligamos que eles saibam, desde que estejamos bem longe quando tudo for pelos ares. Sim, porque existe uma pedra gigante a caminho do planeta azul e se não acabar com tudo... – Lançou um olhar desafiador para os rostos chocados a sua frente, e com um meneio, acrescentou: – Vai acabar com quase tudo.
Xisto caminhou ao longo da ponte, como uma diva uniformizada posando para uma cena de cinema. Parecia completamente alheio ao choque dos recém-chegados.
–Agora que a verdadeira missão foi revelada, vocês devem estar se perguntando, porque cada equipe treinou – ele ergueu a mão e começou a enumerar nos dedos – um piloto, um comandante, um astromédico, um astrofísico, um engenheiro de aerodinâmica e sistemas, um especialista em software e robótica, um agrônomo, e um astrobiólogo... – Ele baixou a mão e relanceou os olhos pelos nossos rostos atônitos. – Se a nave-mãe já possui uma tripulação e um comandante, que sou eu...?
Ele tocou o próprio peito, com um meio sorriso. Um meio sorriso que morreu, quando ele disse:
–Porque vocês não ficarão aqui, indefinidamente. Cada equipe dará conta de formar uma pequena colônia, nos planetas catalogados para tal. Vocês receberão o catálogo para estuda-lo, podem ficar tranquilos.
Xisto estalou os dedos para o assistente, que trouxe uma cópia encadernada do catálogo de planetas favoráveis a colonização humana.
–Sob sua responsabilidade, – prosseguiu Xisto, levantando o catálogo para que todos vissem – estarão bilhões de óvulos fertilizados, bem como as incubadoras Vivax, preparadas para manter e nutrir a concepção. Desde o feto até um bebê no estágio de sete meses. Bem, as informações e detalhamentos serão dados ao longo do curso intensivo, no qual, vocês deverão se matricular – ele apontou para uma mesa ao lado, onde um tripulante aguardava sorridente para cadastrar os alunos. – Vocês serão contatados por um instrutor que irá guia-los nesse processo, tão logo completem o cadastro.
"Nós forneceremos todo o suporte para o seu começo, mas o resto é com vocês e seus respectivos comandantes. Por favor, prestem atenção – ele gesticulou para as pessoas uniformizadas de branco. – Assim que fizerem o cadastro, sigam nossos funcionários até a ala de dormitórios destinados ao seu grupo. Amanhã terão um dia cheio, aprendendo a montar as naves exploratórias que irão conduzi-los a sua nova jornada. Vocês terão um cronograma apertado... Ah, se quiserem se despedir de seus parentes, aproveitem enquanto ainda estamos na órbita da Terra. Porque amanhã, talvez não seja garantido".
Ele dispensou a todos, que continuaram parados, no mesmo lugar, completamente enraizados. Eles não tinham assimilado nem um terço das instruções pensando no asteroide a caminho da Terra e pensando que seus entes queridos ficariam para trás... Para recebê-lo.
Mais tarde, em contato com os pais, Aurélio soube que nem mesmo o pessoal das bases de lançamento da NASA tinha conhecimento da real missão das naves Sustentable–trip, porque se tivessem, as pessoas ficariam histéricas para embarcar nos foguetes. Apenas algumas chefias seletas sabiam do plano. Os parentes dos astronautas, por outro lado, foram evacuados para bankers construídos em formato de condomínios de luxo subterrâneos. Estavam preparados para mantê-los por alguns anos, talvez mais de uma década, enquanto perdurasse o caos na superfície.
Aurélio conjecturou o que eles fariam se a superfície não se recuperasse.
Pelos menos, eles estariam relativamente seguros. Por um tempo. Aurélio tentou se consolar com isto, embora visse seus sonhos de salvar o planeta irem por água abaixo. Lamentou pelos pais, irmãos e amigos sobreviventes. Mas lamentou ainda mais por não poder voltar para ficar com eles. Todas as comunicações trocadas entre os astronautas e suas famílias estavam sendo monitoradas. Cessaram à meia–noite, sem razão aparente. Dali em diante, elas não foram mais permitidas. Aurélio tentou algumas vezes, mas lhe foi alegado problemas técnicos.
Os tripulantes jamais veriam ou falariam com a Terra outra vez.
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