Hyatus
Ano de 16.251 Depois de Cristo
(Se assim, o tempo ainda estivesse sendo computado)
Colônias humanas no espaço sideral remoto.
Ayalla corria pelos corredores, sentindo-se cada vez mais tonta... A sombra a seguia de longe, esperando pelo momento em que seu organismo cederia. Mas ela não podia permitir. Precisava avisá-lo antes que fosse tarde... Desceu os degraus, imaginando que iria cair e rolar – quebrando o pescoço. Então, tudo estaria acabado. A sombra hesitou. Se pretendia acudir, ou terminar o serviço, Ayalla não sabia... Quando alcançou o andar inferior, sentiu o piso gelado sob os pés nus. Continuou correndo, cada vez mais trôpega.
A sombra não avançou; debatia-se entre deixar o efeito sedativo determinar até onde Ayalla iria, ou intervir antes que ela conseguisse chamar a atenção de alguém. Poderia tê-la agarrado no quarto, mas não o fez. Nunca esteve tão desconfortável com o seu papel naquela tragédia.
Ayalla prosseguiu escorando–se nas paredes. A visão turva não permitia que distinguisse as portas. Na próxima, na próxima... – ela repetia o mantra mental.
A sombra sabia o que havia na próxima porta: os aposentos reais do príncipe–herdeiro Demétrio. Noivo de Ayalla.
Outra sombra se juntou à primeira.
–Senão impedi-la agora, – disse a intrusa – ela conseguirá avisá-lo e sua família irá morrer, Dodge.
O argumento bastou para que a primeira sombra se decidisse por agir. Dodge olhou para a odiosa Miranda e foi ao encalço da noiva desafortunada. Ele era o chefe da guarda, o braço leal do pai delas, o príncipe Estênio.
Maldito o dia em que ele chamou a atenção de Miranda. Algumas garotas mimadas da corte costumavam dizer que o jovem guerreiro era atraente... E, naturalmente, tais comentários não passaram despercebidos à Princesa Miranda. Dodge recusou-se em ceder aos seus caprichos. Decisão fatal. Miranda colocou seus espiões para investigar as suas fraquezas e suscetibilidades e rapidamente trançou sua teia de influências e chantagens, e o transformou em um dos seus fantoches. Mas ela não sabia que Dodge nutria uma paixão secreta e impossível por Ayalla, a quem Miranda ordenou que drogasse para dar início à primeira etapa de seu plano de ascensão... Ela queria tornar-se rainha, mas para isso precisava eliminar a concorrência.
Sua irmã. Que agora cambaleava pelo corredor, atordoada e em desespero.
Não, Miranda nunca deveria saber. Teria feito pior: escolheria outro lacaio para o serviço. Ao aceitar, ele assumiu um jogo perigoso para salvar a vida da jovem que amava.
Dodge segurou Ayalla nos braços pouco antes que ela se estatelasse no chão, com os braços estendidos para a porta de Demétrio. Com a cabeça pendendo, ela girou os olhos enevoados para ele. Quase inconsciente, reconheceu–o.
–Dodge... – murmurou a jovem, dolorosamente surpreendida. E ele sentiu o peso de sua traição naquelas palavras.
Olhando ao redor, Dodge constatou que os guardas que cuidavam dos aposentos reais do sucessor ao trono, não podiam vê-los daquele trecho. Miranda deve ter lhes pagado muito bem para conseguir tamanha brecha de segurança. Ele se levantou, carregando a princesa nos braços. Ela pesava não mais que uma pluma. O coração de Dodge se afligiu... Quando chegou aonde estava Miranda.
– Livre-se do corpo – disse ela, com brutal indiferença.
E ficou determinado que Dodge mataria Ayalla. Ele olhou para o rosto daquela mulher tão ambiciosa e se afastou pela densa vegetação do bosque real, carregando, com infinito cuidado, a princesa desacordada.
–––
Filho primogênito do rei supremo, Senion XI, Demétrio era o príncipe–herdeiro entre todos os clãs principescos. Mas isso não lhe garantia a sucessão ao trono. Havia um Concílio formado pelos clãs, nos quais, os poderes, influências, fortunas e aliados de cada herdeiro de clã deveriam ser sopesados. O Concílio se reunia para validar a escolha do rei e os debates podiam durar semanas, dependendo do poder da casa real.
O pai de Demétrio possuía muito poder. Era um déspota e governava pelo terror. Seu reinado ficou conhecido como "Era das sombras". Qualquer passo em falso e cabeças rolavam, ou pessoas eram subtraídas sem mais nem menos. Deportadas para trabalhar nas colônias mineradoras. Assim, nenhum dos chefes de clãs ousou discordar do rei, quanto a sua escolha.
A vida de seu herdeiro não foi fácil... Ele sofreu com o comportamento colérico do pai. Assistiu a mãe ser morta a pancadas, num acesso de fúria e álcool – muito comum entre os reis de sua casta... Mas, especialmente, para Senion XI. Demétrio foi treinado para ser um homem resistente, frio, duro, implacável e impiedoso. E ele cumpria à risca o código de conduta do pai. Talvez por isso tenha sido o único filho a sobreviver, da longa prole de Senion. O único que retornou do campo de treinamento como um soldado preparado para a guerra.
Mas, em seu debute na corte do pai, o jovem príncipe conheceu as princesas–irmãs do clã de Estênio Àgar. E se apaixonou perdidamente por uma delas, Ayalla. Ela era meiga, doce, espontânea e o atraiu com a mesma intensidade que a irmã, Miranda, causou–lhe repulsa. Talvez porque ele e Miranda fossem muito parecidos. "Os parecidos se repelem e os opostos se atraem", costumava dizer Oseas, seu amigo e conselheiro, quando o assunto era amor.
Demétrio não tinha certeza se concordava. Nunca sentiu aquilo por ninguém. Tudo o que ele sabia era que Ayalla o fez enxergar o reino de uma forma diferente. Fez com que encontrasse a luz e a felicidade aonde só havia escuridão. Mas sua atitude férrea a assustava. Ele agia como o próprio pai em muitas situações – o único jeito que conhecia, o único jeito que aprendeu para lidar com o seu mundo.
Demétrio, então, exigiu que ela se tornasse sua esposa. Sofria de ciúmes... pois sabia que os outros príncipes e o próprio Dodge, chefe da guarda do pai dela, adoravam o chão em que Ayalla pisava. Seu ciúme desandou na festa de noivado. Demétrio se controlara a custo, afinal, não era toda hora que se encontravam homens leais, como Dodge. Além do mais, ele era o braço direito do pai de Ayalla, no quesito segurança. Senion o admoestou para que não expusesse sua fraqueza pela moça. Não lhe agradava que o filho gostasse tanto assim da futura esposa. Mas seu pai estava doente, e Demétrio sentia que sua libertação se aproximava. Quando fosse coroado, o velho rei, se já não estivesse morto, pediria para estar... Porque ele se encarregaria de mandá-lo para bem longe de suas vistas. Na ocasião, Demétrio ignorou o conselho de pai. Mostrou a todos o quanto se importava com a noiva.
–Venha – ele agarrou Ayalla e a puxou para o terraço sob os olhares venenosos de Miranda.
Ele estava ciente de que a irmã de Ayalla queria estar no lugar dela. A única que não via isso era a própria Ayalla.
–Quando nos casarmos, – ele lhe disse, com os lábios pairando sobre os seus – você não irá a lugar algum sem mim.
Ayalla estremeceu, como um pardal que foi agarrado pelas presas de uma cobra. Ele não gostava de se sentir uma cobra que devora um pardal. Mas o que sabia Demétrio sobre delicadeza e amor? Só sabia que Ayalla era o ar que ele respirava.
Dias se passaram após o episódio...
Agora, um terrível pesadelo o fazia acordar no meio da noite, todo suado. Sem saber o motivo, olhou para a porta do quarto e uma inquietação o assolou. O coração disparado no peito.
O nome de sua noiva brotou de seus lábios.
–Ayalla.
Ele foi até a porta e a escancarou. O vento revolveu–lhe os cabelos negros. O corredor estava deserto, exceto pelas sentinelas nas extremidades daquele andar.
Ele voltou a fechar a porta, pensativo.
–––
Por sete longos anos, Ayalla viveu na aldeia dos mineradores, observando o ir e vir dos prisioneiros usados nas escavações. As condições de vida eram desumanas. Ela passava privações, mas a vida não era tão terrível graças às atenções de Dodge. Ele teve o cuidado para ocultá-la da sanha de sua irmã, que se casou com Demétrio e tornou–se a rainha suprema quando Senion faleceu e o marido foi coroado com toda a pompa. Ayalla viveu ali, só, incógnita, sabendo que jamais poderia se aproximar de Demétrio. Miranda construiu sua teia em torno dele.
Ela seria apanhada antes mesmo que tentasse.
Dodge a visitava todos os meses. Até que nos últimos dois anos, ele não apareceu mais. E ela teve a certeza de que algo grave aconteceu. Ficou conjecturando o quê, até que um mensageiro lhe entregou uma carta programada para envio no caso de que algo sucedesse. Mais tarde, ela ficaria sabendo que Miranda descobriu a verdade: que ele não fez o serviço, e que a irmã estava vivendo escondida em alguma das colônias. Dodge foi interrogado e torturado para que entregasse o seu paradeiro. Morreu sem contar. Apesar de ter deixado tudo preparado para que Miranda não a encontrasse, era uma questão de tempo até que a rede criada pela rainha suprema a localizasse. Afinal, ela tinha muito a perder se descobrissem que Ayalla estava viva.
Quando uma nova leva de prisioneiros chegou às minas, Ayalla reconheceu entre eles o famoso comandante Silas – acusado de alta traição por uma intriga da rainha. Silas foi companheiro de armas de Demétrio. Ayalla imaginava que o rei supremo não tinha conhecimento da metade das decisões tomadas na corte. E quando tinha, a rede ao redor dele devia ser tão convincente, que de certo aparava todas as informações verdadeiras. Pelo menos era a ideia que ela tinha da inocência de Demétrio. Queria acreditar que por trás da couraça houvesse um coração de verdade. Todas as misérias e absurdos pelos quais ela via o povo passar, todos os desmandos da corte e a opulência em que vivia não eram responsabilidade de Demétrio. Ela viu em seus olhos. Havia bondade lá.
Mas um dia, ela o avistou de longe, quando teve de ir à cidade para buscar alguns mantimentos que não estavam disponíveis na vila. Por uma coincidência, ou conspiração do universo, o casal supremo estava lá, e desfilou pela avenida com seu cortejo e toda a pompa, usando as insígnias e trajes reais. Demétrio estava diferente. O rosto pétreo. O olhar cruel.
Desolada, Ayalla voltou à vila e começou a refletir. Com a chegada de Silas ao trabalho forçado, ela teve esperança de que pudesse partir daquele planeta para alguma outra colônia mais distante, antes que Miranda a encontrasse. Ela então esquematizou um plano, e num dia de trabalho qualquer, quando o comandante chegou ao alojamento, ela deu um jeito de falar com ele...
(Afinal, fora designada para fazer a limpeza dos dormitórios, entregar água e a ração aos prisioneiros – nunca o suficiente para durar o dia todo, mas o suficiente para deixá-los vivos por um longo tempo. Era desumano, tanto para os prisioneiros, quanto para os serviçais, porém, pagava um salário que ajudava em seu sustento.)
Logo, a jovem percebeu que todo o esquadrão do comandante foi preso com ele. Homens e mulheres leais ao exército, especialmente a Silas. Mas, por quê? Claro, ela descobriu que ele esteve lutando pelo que achava certo e foi punido.
Demétrio tornou-se um rei cruel e Ayalla concluiu que agiu bem ao não tentar contatá-lo. Ele não era como ela imaginava. Miranda, sim, era a mulher ideal para ser sua rainha–suprema.
Quando abordou o ex-comandante, Silas não a reconheceu de cara, pois Ayalla não estava vestida como uma princesa, não tinha mais os cabelos viçosos, não comia bem o suficiente. Ela era apenas uma moça pobre encarregada da faxina e da comida. Quando lhe entregou a sua porção, mas não soltou o pacote, ele levantou o olhar... Foi aí que veio o reconhecimento.
E a voz musical, pela qual a princesa ficou famosa, confirmou:
–Comandante – disse ela, num sussurro. – Podemos nos ajudar mutuamente.
–––
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