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Capítulo Único


"Sentirei a falta de todos vocês

Sabíamos que tudo tem um fim

Seremos homens melhores onde estivermos

O mundo é que está errado!"

 Dead Fish

     O que você faria para conseguir o que deseja? Pagaria qualquer preço independente das consequências? Seria burro ao ponto de arriscar tudo por algo tão banal, mas que uma força superior te impede de almejar isso? Alguns iriam longe demais, mas Renato apenas foi onde precisava ir, arrastando com sua expectativa as pessoas ao seu redor. Porém, toda jornada tem seu ponto de partida, e o início desse delirante relato musical, que poderia ser pintado como um filme pouco visual, é num aposento de adolescente.

     Naquele quarto tinha de tudo, havia instrumentos musicais nunca tocados e pôsteres nas paredes ilustrando bandas de rock alternativo que ninguém mais conhecia, mas cujo proprietário as adorava. Nos armários, todas as blusas eram pretas, estampadas com demônios e desenhos obscenos, e todas as calças jeans eram rasgadas. Os registros de suas aventuras ficavam guardadas em porta retratos na escrivaninha, dividindo espaço com seus livros de terror e ficção científica poucas vezes lidos. Renato era um rebelde sem causa, vivia se metendo em confusão simplesmente porque poderia fazer coisas assim acontecerem, mas ainda gostava de ler e possuía um repertório cultural afiadíssimo com suas leituras. Infelizmente não havia o mesmo interesse em relação às coisas da escola. Também gostava de coisas velhas, moda retrô, e de juntar lixo.

     Nosso herói disfuncional tem dezessete anos, é um garoto magrelo como qualquer outro daqueles confinados nos grandes centros urbanos, ouvindo suas músicas agressivas e odiando tudo e todos, indiferentes quanto a responsabilidade da vida devido a ilusão de ter tudo que se quer e não saber valorizar. Nesse instante em específico, imagine que ele está de costas para nós, vestindo uma jaqueta surrada, mas com cheiro de sabão em pó, e cheia de broches e experimentações. Com a agilidade de um gato desnutrido, Renato abre a janela de seu quarto, desce pelo telhado e corre pelo jardim até a rua, onde embarca apressado numa van que acabou de chegar. Um veículo comum, levemente envelhecido, pintado com grafittis na sua lateral.

     Se isso fosse um filme, creio que um dia será, o título dessa história apareceria exatamente agora, assim que a van sair acelerando pelas sombras da noite. A música tema também entraria agora, seguida do nome do diretor, do elenco e dos principais integrantes da equipe.

"Eu nunca sento do seu lado, Eu não aguento o seu papo

Você não parece comigo, E nem parece meu amigo"

— Cachorro Grande

     A van sai andando com uma velocidade imprudente e a música segue tocando, sendo emitida pelas ondas de um rádio fixado no painel. Renato está sentado no banco da frente, soltando a fumaça de seu cigarro para o lado de fora através da janela. No banco de trás estão Cássia, também dezessete anos, uma garota completamente séria, cujo cabelo curto e roupas neutras a fazem ser confundida com um garoto, e Agenor, de dezesseis, o mais sensível da turma, e que faz o favor de tentar beber cerveja num carro em movimento. De volta para a frente, quem dirige é Alex, de dezenove anos, um rapaz gigante com cara de marrento, e o fornecedor particular de cannabis do nosso pequeno esquadrão. Quando a van passa por uma lombada, Agenor perde seu equilíbrio já pífio e derruba a latinha, deixando uma poça amarela no banco.

     — Que merda, cara! — Alex esbraveja.

     Alex e Agenor começam uma discussão acalorada, que arranca risadas dos outros dois. Em meio a bagunça, os olhares de Renato e Cássia se encontram e o brilho se apaga, o semblante sério perdura e eles se afastam. No passado, esses dois desiludidos já foram o casal perfeito desse arquétipo jovem e irresponsável. Hoje, eles apenas se aturam, e secretamente se odeiam, ou algo mais.

     Corta para uma festa estranha com gente esquisita no quintal de uma casa, cheia de outros menores com as mesmas roupas, dançando as mesmas músicas estranhas, fumando os mesmos cigarros falsos, enrolando o mesmo papel de seda recheado com fragmentos da erva não aceita pela sociedade e bebendo as mesmas bebidas baratas, alguns até se arriscam a usar substâncias ilegais, mas disso não se fala até que alguém morra. Tudo isso se desenrola diante de um palco improvisado ao som de uma banda completamente desafinada, mas cheia de potencial. Aos fundos, Cássia está encostada numa parede, bebendo de uma garrafa de vinho. Sua paz é abalada quando Renato vem lhe abordar.

     — Ei, você vai continuar me evitando? — Renato a questiona. Por sua vez, Cássia nem se dá ao trabalho de responder, continua sem reação e lhe mostra o dedo do meio, onde um anel de caveira repousa — Você ainda usa o anel que eu te dei.

     — Eu gosto dele, e daí? — Cássia toma um gole.

     — Eu pensei que não quisesse mais nada de mim!

     — Sim! Eu joguei umas coisas fora, queimei outras, mas eu quis ficar com ele! — Sua voz demonstra arrogância. Renato permanece pensativo, e a postura da garota muda completamente, ele se desmonta com a decepção — Só não confunda as coisas. Acabou! — Um dedo é apontado no rosto de Renato — Ainda somos amigos e não vai passar disso — Cássia olha em volta — Agora vê se me deixa em paz.

     Cássia empurra Renato, larga a garrafa já vazia num ponto qualquer do gramado e caminha rumo a um grupo de meninas com o mesmo estilo que ela, unidas pelo fato de nenhuma delas ser heterossexual.

     A banda continua tocando seu repertório de rock nacional. Uma galera animada se junta na frente do palco para dançar, com Agenor no meio dela.

"Pane no sistema, alguém me desconfigurou

Aonde estão meus olhos de robô?"

 Pitty

     Renato está afastado, triste, saboreando um baseado sentado num banco de jardim. Agenor senta ao seu lado quando a música acaba.

     — E aí mano, como vão as coisas entre você e a Cássia?

     — Nada bem — Renato respondeu, cabisbaixo — Ainda não entendo o que faz alguém agir assim. Jogar tudo que a gente tinha fora em troco de nada!

     — Cássia sempre foi esquisitona mesmo, mas acho que ela teve seus motivos para terminar com você.

     — Ela nem sente a minha falta — Agenor e Renato observam o assunto de sua prosa flertando com outra garota — Sabia que ela ainda usa o anel que eu dei pra ela?

     — Já tinha reparado, e você usa o brinco dela — Renato passa os dedos pela orelha direita e encontra um pequeno alargador preto, um presente que ele nunca retirou — Vocês usavam brincos combinando porque achavam cafona usar alianças. Isso mostra que você ainda espera que vocês voltem um dia.

     — Ainda acho que ela não sente a minha falta.

     — Tanto faz! — Agenor se levanta e fica na frente do amigo — Você tem que superar isso e seguir em frente! Conhecer gente nova! Aproveita que tem muita mina bonita nessa festa. Um término de namoro meses atrás não vai te matar!

     — No momento eu quero ficar na minha e não incomodar ninguém.

     — Tudo bem — Agenor pega o celular no bolso da calça e vê que chegou uma mensagem a qual esperou ansiosamente — Preciso ir agora, a gente se ver — Então, ele sai andando.

     — Vai lá cagar!

     Agenor vira-se para Renato, ri, e segue seu caminho. Ele vai até um local um pouco distante do palco, onde encontra Roberto, de mesma idade, um ruivo de sorriso simpático, que sorri ao ver seu correspondente se aproximar.

     — Então, você veio mesmo?

     Enquanto isso, nem todo mundo estava feliz. Renato continua sentado, tentando afogar suas mágoas na bebida e na erva, mas quando percebe que isso não vai funcionar, que nem toda brisa do mundo poderia silenciar os lamentos de uma mente barulhenta, ele decide tentar evitar tudo se concentrando na música. "Meu Deus, que banda ruim!", ele pensou consigo mesmo.

     Convenientemente, um casal hétero aparece brigando logo à sua frente, roubando sua atenção um pouco distorcida. Ela, uma menina linda linda, de dezessete anos, com o cabelo tingido de vermelho ofuscante e amarrado numa trança delicada, além de uma maquiagem punk carregada e brilhante, o delineado perfeito que poucas conseguem fazer de forma tão simétrica. Já ele, apenas um cara otário, um padrão que nem devia estar ali e que não via a hora de ir embora. A garota está histérica, falando o mais alto possível e batendo o pé contra o idiota que se esforça para ter razão, mas só consegue se contradizer. Com um empurrão, ela faz o namorado tomar um banho de cerveja.

     — Puta merda! Olha o que você fez! — O Cara Otário sai com raiva, deixando a menina sozinha.

     — Vai se fuder, seu idiota! — Ela mostra o dedo do meio quando seu namorado lhe dá as costas.

     Irritada, a garota de cabelos vermelhos se senta no banco de jardim ao lado de Renato, chamando a sua atenção para a chateação que ela expressava. Nesse momento oportuno, no espectro da adaptação cinematográfica, um letreiro apareceria anunciando o seu nome. Ela se chama Priscilla.

     Após um instante de hesitação, Renato decide falar com ela.

     — Tudo bem?

     — Não, meu namorado é um idiota — Ela encara um ponto em particular — Posso?

     Renato percebe o restante do baseado ainda repousado em seus dedos, levemente amassado. A chama havia se apagado, mas ele fez questão de acender novamente para ela após acatar seu pedido. Priscilla estava tão nervosa que consumia a fumaça com tragadas profundas, buscando um leve tom de acalento para dissipar seu estresse.

     — Acho que você é bonita demais pra namorar um idiota — Ele arrisca.

     O comportamento da garota muda completamente, interessada naquele comentário descontraído. Primeiro, ela apaga a chama da piteira no próprio banco, pouco se importando na mancha de cinzas que ficará ali, depois, um sorriso dissimulado surge em seu rosto quando ela observa Renato, e percebe o quanto ele é atraente por baixo da aparente melancolia.

     — É, tem razão — Eles se cumprimentaram e anunciaram seus nomes.

     — Você quer dançar? — Renato propôs, e Priscilla aceitou.

"E até quem me vê lendo o jornal na fila do pão

Sabe que eu te encontrei"

— Los Hermanos

     Priscilla e Renato, de mãos dadas, saem para andar por aí, dançam, bebem juntos e dão risadas, encantados com a presença um do outro. Eles não se conheciam, mas uma forte conexão já surgia aí, disfarçada como um "esquema de festa". Tal cena tão singela é assistida por Cássia, já alterada, que continua com seus flertes. Sua atenção se desvia para o Cara Otário, debochando do jovem casal com sua panelinha de outros caras otários, tão sem personalidade quanto o original.

     O Cara Otário comenta algo inapropriado, fazendo o grupo inteiro dar risadas. Incomodada, Cássia cede aos seus instintos e vai até ele para lhe desferir um soco no rosto. Todo mundo em volta percebe, um momento de silêncio se prolonga, e em seguida um berro coletivo provoca a formação de uma roda punk, um tumulto de grandes proporções, onde os integrantes estavam dispostos a acertar seus socos e pontapés em qualquer coisa que se mexesse.

     Na cena romântica, Renato e Priscilla se aproximam para um beijo, mas alguém precisaria interromper.

     — Renato! Mano! — Alex chega correndo e fala ofegante — A Cássia tá muito bêbada, melhor a gente ir embora antes que der merda!

     — Certo — Renato se volta para Priscilla — Eu preciso ir agora.

     — Precisa mesmo?

     — Sim, eu moro lá em... — Alguém mexe nos equipamentos da banda, gerando um chiado que torna essa parte inaudível — E a minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Então eu preciso mesmo ir embora, mas eu me diverti muito hoje.

     — Também me diverti muito — Ela se aproxima do ouvido de Renato e sussurra — Até a próxima festa — A despedida vem com um beijo no rosto que o deixa corado.

     — Anda logo!

     Então, Priscilla observa Renato e Alex saírem correndo pelo gramado até encontrarem Agenor com seu companheiro ruivo. O trio se mete no meio da roda punk e resgatam uma louquíssima Cássia, que estava em cima de uma mesa se divertindo ao jogar garrafas de vidro nas cabeças das pessoas. A garota é arrastada sem protestar para dentro da van, estava muito ocupada morrendo de rir. Quando eles vão embora, Roberto se aproxima de Priscilla.

     — Até que enfim te achei, garota. Onde você se meteu?

     — Eu... Conheci alguém.

     Um tempo depois, no auge da madrugada e bem longe dali, Renato se despede de seus amigos ao chegar em casa. Sua mãe, uma senhora jovial chamada Paula, estava na cozinha tomando um chá, ela de fato não dormiria até que seu filho chegasse, e percebe atentamente quando Renato entra pela porta da frente usando a chave que ela o havia presenteado para situações assim.

     O sonolento Renato se jogou no sofá e adormeceu ali mesmo. Sua mãe chega com um cobertor para lhe poupar do frio. Tudo escurece em seguida quando a luz da cozinha é apagada.

***

     A câmera imaginária enquadra o céu azulado daquela manhã silenciosa, onde se encaixaria um letreiro anunciando o mês que havia se passado desde aquela festa. Em seguida, um movimento para baixo, e o prédio do colégio é enquadrado em nossa imagem mental.

     A turma está na sala de aula, onde a professora passa em cada cadeira entregando as provas já corrigidas. Agenor comemora ao ver sua nota perfeita estampada na folha, Alex arqueia a sobrancelha com a surpresa, e Cássia abre um sorriso ao ver seu resultado. Quando a prova de Renato é entregue, ninguém diz nada, apenas o observam com um olhar de pesar.

     Mais tarde, ao chegar em casa, Renato levaria uma bela bronca, o que, de fato, aconteceu.

     — Outro zero!? — Raul, o pai de Renato, esbraveja. Eles estão na sala da casa, e ele está tão irritado que só de segurar a folha já se amassa.

     — É, outro zero! — Renato debocha.

     — Você acha isso certo!?

     — Foda-se! É só uma prova! — Renato vira as costas para o seu progenitor, ele corre para o andar de cima.

     — Volta aqui! — O pai protesta.

     Lá em cima, Renato se tranca no quarto, larga suas coisas em qualquer lugar, e senta encolhido no chão, com seu rosto escondido pelos joelhos. Sua alma é tomada por indignação juvenil, e por um momento ele se enche de raiva, mas no fim tudo o que sobra é tristeza.

"Só não deixe a maré te levar"

— NxZero

     Mesmo a certeza de que está sozinho no seu quarto ainda permite que Renato sinta uma mão fria acaricia seu ombro e seu rosto.

     O clima muda completamente quando Raul entra na cozinha, encontrando Paula arrumando a mesa do jantar enquanto dança alegremente ouvindo uma música animada no rádio.

"Luz de fim de tarde, meu rosto em contraluz

Não posso compreender, não faz nenhum efeito

A minha aparição, será que errei na mão

As coisas são mais fáceis na televisão"

— Leo Jaime

     Raul chama sua esposa duas vezes, ela não ouve. Aborrecido, ele desliga o rádio.

     — Aff, na melhor parte — Paula reclama virando-se para o marido — Liga de novo, vai.

     — Não ouviu eu te chamando?

     — Não — Ela dá de ombros e vai guardar alguns pratos num armário embutido na parede.

     — Como que escuta com todo esse "rock n' roll" dentro de casa? Nós precisamos conversar sobre o nosso filho! — Ele fala tentando impor autoridade no tom de voz elevado.

     — O que foi dessa vez? — Paula parece não prestar atenção no marido, ela continua andando de um lado para o outro, concentrada na sua tarefa doméstica.

     — Já reparou que ele só vive tirando notas baixas, saindo escondido e fedendo a maconha? — Raul segue os movimentos da esposa.

     — Deixa o menino. Vai dizer que você nunca foi estudante? — Ela finalmente para de andar — Nunca se sentiu no limite? Prestes a explodir pressionado pela mamãe e pelo papai?

     — É diferente, eu pelo menos me esforçava.

     — Não, não é. Talvez você devesse dar mais atenção para o seu filho — Paula dá um apertão no queixo do marido e vai embora da cozinha, deixando-o sozinho e ainda com raiva por ter sua tão imaculada autoridade paterna masculina desafiada.

***

     No dia seguinte, Renato e Agenor estão na rua com outros adolescentes. Todos eles são estudantes uniformizados, e estão esperando o ônibus que nunca chega.

     Cansados de esperar, Renato e Agenor decidem atravessar a rua e procurar uma carona na sombra de uma árvore. Agenor pega seu celular e vasculha seus contatos, mas antes que pudesse fazer uma ligação, Renato fica paralisado de medo ao reconhecer o carro de seus pais se aproximando. O que viria dessa vez? O dia mal havia começado e ele já tomaria mais um esporro?

     — Renato, querido, ainda por aqui? — Paula fala com tranquilidade quando o carro para e o vidro abaixa.

     — Sim, o ônibus está atrasado.

     — Quer uma carona? — A mãe oferece.

     Renato confirma com a cabeça e faz um sinal para que Agenor vá com eles. Enquanto isso, Raul permanece em silêncio, com as mãos fixas no volante do veículo.

     — O ônibus tá vindo! — Um garoto anuncia do outro lado da rua.

     — A gente vai de carro! — Renato grita de volta, arrancando uma onda de zoação dos outros adolescentes diante de tamanha humilhação.

***

     Em outro ponto da cidade, Alex vai em direção a escola com sua tão amada van, dirigindo tranquilamente enquanto assobia a melodia de uma música qualquer. Porém, quando ele chega no local onde sempre costumava estacionar, a presença de dois policiais o faz dar meia volta e sair dali às pressas.

***

     Na sala de aula, antes dos compromissos educacionais começarem, um grupo de alunos está conversando sentados nas suas cadeiras. Na fila da frente, Cássia está acomodada em sua carteira, com os pés apoiados sobre a mesa, saboreando um pacote de biscoitos. Atrás dela, dois adolescentes, um menino e uma menina, estão numa discussão equivocada sobre política. O garoto demonstra toda a sua ignorância ao reproduzir falas preconceituosas com um sorriso irônico no rosto, enquanto a garota tenta corrigi-lo com a astucia de uma feminista, mas que só acaba sendo motivo de mais risadas para uma pessoa sem nada na cabeça.

     Cássia revira os olhos toda vez que um deles abre a boca para falar algo, e incomodada com os rumos da conversa se vira para eles e lhes oferece um biscoito, debochando do fato deles só falarem disso para chamar atenção. O ato reúne os dois espectros opostos para se retirarem, a rotulando como uma idiota. Cássia finalmente pode relaxar em paz, sem mais barulhos indesejados, mas a tranquilidade acaba quando Renato e Agenor chegam.

     — Ei — Cássia encara Renato com desânimo — Precisamos conversar.

     — Pode falar — O desânimo predomina em sua fala, depois volta seu olhar para o vazio.

     — Você continua me evitando — Renato senta numa cadeira ao lado.

     — Não to te evitando agora!

     — Então porque você não olha pra mim enquanto eu falo com você? — A garota o encarou a contragosto.

     — Satisfeito?

     — Sim, eu acho... Quer dizer, não!

     Cássia revira os olhos novamente.

     — Eu sinto que a gente não conseguiu retomar aquilo que tínhamos antes. Você diz que sim, mas nós não nos resolvemos.

     — Renato, me poupe dessa conversa chata! — Cássia se irrita — Você deveria respeitar o meu espaço, seu inconveniente!

     Como podem ver, Cássia sempre foi muito orgulhosa. Essa garota marrenta nunca deu moral para ninguém além de seu restrito grupo de meninos com quem simpatiza. Tal personalidade forte logo lhe rendeu o status de lenda urbana, um ser incompreensível que fazia o que ninguém mais podia, diziam por aí que Cássia havia levado uma facada no olho e a faca havia ficado cega, que ela conseguia contar até o infinito duas vezes, dentre outras hipérboles. Porém, o que ninguém sabia, por enquanto, é que o coração de pedra dessa menina inalcançável também possuía sentimentos.

***

     Do outro lado da escola, na sala da diretora, aquela que exerce a autoridade máxima do espaço escolar está trabalhando em seu computador quando Paula e Raul entram. Seu nome é Rita, ela já é velha, mas ainda tem cabelo colorido, num tom de azul vibrante e artificial. O pai anuncia sua chegada enquanto ele e sua esposa se sentam em poltronas diante da mesa.

     — Olá, vocês são os pais do Renato? — Ela diz após um cumprimento.

     — Sim, somos nós — Raul já chega sem paciência — O que foi que ele fez dessa vez? — Envergonhada com a postura do marido, Paula lhe desfere um peteleco discreto.

     — Vamos com calma — A diretora se prepara para começar seu relato — O ano mal começou e seu filho já pulou a catraca do ônibus para dar um soco na cara de um colega, tirou fotos das roupas íntimas de uma aluna, botou fogo na estufa, começou um ataque de bolinhas de papel contra o professor Josué, e mais recentemente quebrou o nariz de um colega com um martelo — Se isso fosse um filme, tais cenas apareceriam em meio a uma sequência musical com a narração de fundo.

     Paula está apática, achando inclusive algumas situações engraçadas, e Raul completamente irado.

     — Esse tal de Josué ainda dá aula aqui? Esse velho já devia estar num asilo! — A mãe comenta.

     — Além de várias depredações a carros de professores e espaços da escola. Eu os chamei para lhes deixar cientes da situação, essa suspensão do Renato vai ser a última. Da próxima vez vai ser expulsão.

     — Eu garanto que isso não vai se repetir! — Raul levanta repleto de ódio, e sai da sala a passos largos.

     — Dona Rita, perdão pelo comportamento do meu marido — Paula tenta se explicar, morta de vergonha — Aparentemente já sabemos de onde o Renato puxou tal impulsividade. Com licença.

     Paula corre para fora, procurando pelo marido. Ela o encontra no corredor, ele havia retirado seu cinto e andava por aí brandindo o vestuário como se manejasse um chicote.

     — Onde ele está!? Vou resolver isso agora! — Raul grita pelos corredores, chamando a atenção de quem passava. Um pai descontrolado com as atitudes do filho sempre é um evento interessante de se observar numa escola.

     — Não! — Paula segura o marido pelo braço — Você não vai fazer nada de cabeça quente!

     — Paula, eu perdi um dia inteiro de trabalho só pra vir aqui ouvir sobre as merdas que meu filho fez! Esse moleque precisa de um belo corretivo!

     — Meu querido, você sabe que não é assim que a banda toca! — A mãe se põe na frente do pai, que protesta cruzando os braços — Nós vamos para casa agora e quando o Renato chegar de noite você vai pensar duas vezes antes de tomar qualquer decisão exaltada. Vamos! — Paula vira as costas e sai andando, alguns passos à frente ela para e se certifica de que estava sendo acompanhada — Anda logo!

     Ainda irritado, Raul se limita a bufar antes de a seguir.

***

     Na hora do intervalo, a mesma turma de sempre se reúne numa rampa aos fundos da escola, numa passagem abandonada que levava a um terreno baldio. Um local esquecido do prédio que eles haviam encontrado por acaso, o ponto perfeito para fumar escondido. Alex conta uma piada, todos riem, menos Renato.

     — Às vezes eu me pergunto o que a gente ainda tá esperando... — Ele comenta, divagando em seus pensamentos.

     — O que? — Seus amigos o encaram após essa fala.

     — Por que a gente continua vindo para esse inferno de escola? — Renato se põe de perto diante de seu restrito grupo — Fazer simulados e outras coisas que não levam a nada! Eu não sei vocês, mas eu não quero ser mais um escravo do sistema.

     — Ah não, ele andou vendo teoria da conspiração no YouTube de novo! — Alex coça o queixo.

     — É sério! — Renato começa a caminhar de um lado para o outro enquanto fala — Por que a gente não some só um dia e vamos fazer coisas diferentes?

     — Tipo o que? — Cássia perguntou, com os braços cruzados e cara de deboche.

     — Qualquer coisa... Tipo... — Renato aponta para Agenor.

     — Uma fogueira?

     — Brincar de sete pecados? — Cássia complementa.

     — Exato! — Renato parabeniza Agenor e ignora Cássia — Por que a gente simplesmente não pega a van e vai para algum lugar isolado, fazemos uma fogueira e brincamos de sete pecados? Eu não sei vocês, mas eu tenho coragem!

      — É, o cara pirou na batatinha — Alex pontuou.

     Como se tivesse lembrado de algo muito íntimo, Renato passa a admirar o céu azulado.

     — Naquela noite eu conheci uma menina, eu não sei onde ela está agora — Seus amigos se entreolham, preocupados — Acho que eu devia simplesmente sair atrás dela. O destino me diz para encontrá-la.

     — Você nem sabe onde ela mora.

     — Mas eu sei! — A exclamação de Agenor atrai a atenção de Renato e dos outros, todos cheios de curiosidade — Um dos caras da banda estava tirando fotos para postar na página deles. Em uma das fotos vocês apareceram e ela comentou, assim eu achei o perfil dela.

     Pegando o celular, Agenor mostra a foto onde Renato e Priscilla aparecem ao fundo. Os olhos de Renato brilham ao rever a imagem de sua musa do verão.

     — Por que você não me disse isso antes?

     — Porque eu sabia que você ia querer fazer uma besteira dessas!

     — Porra, Age! — Renato o repreende — Seguir meus sentimentos é besteira agora? Eu esperava isso de qualquer um menos de você! — Agenor se mostra abalado — Enfim, onde ela mora?

     Agenor mostra a localização para os outros.

     — Nem é longe — Renato comenta.

     — Não! É lá em... — Um pássaro alça voo grasnando muito alto — No mínimo dois dias de carro, apenas! — Cássia o repreende.

     — Tempo suficiente para a gente aproveitar fazer o que tem vontade — Ele abre um sorriso malicioso — E também o tempo que termina minha suspensão! Vamos gente, por favor...

     — É, ele tem razão — Agenor diz, ficando ao lado do seu melhor amigo — Vai ser divertido.

     — Alex, por favor. Eu preciso que venha com a gente. Você é o único que tem habilitação — Renato lhe implora.

     — Só espero que não aconteça nada de ruim com minha van.

     — Como se aquela lata velha valesse alguma coisa! — Cássia ri de suas próprias palavras. Alex a encara com desprezo.

     — Relaxa, o destino proverá — Renato volta sua atenção para a única figura feminina presente — Você vem, Cass? — O convite atinge Agenor de surpresa, o deixando preocupado.

     — Só vou porque não tenho nada melhor pra fazer.

     — Garanto que não vai ser chato ou inconveniente.

     O sinal tocou, anunciando o fim do intervalo. Alex e Cássia logo retornam para o interior da escola. Ao ficarem sozinhos, Agenor puxa Renato para um assunto sério.

     — Tá maluco!? Acha mesmo uma boa ideia levar sua ex-namorada nessa "aventura"?

     — Sim, por que não? Somos só amigos, não somos? — Renato fala de um modo inocente.

     —Isso não vai dar certo, ela tá te evitando!

     — Vai dar certo, relaxa — Renato tenta lhe tranquilizar — Quem sabe no caminho a gente se resolve de vez — Agenor balança a cabeça em negação, enquanto isso, Renato grita para os outros — Galera! Tá combinado! Vamos hoje mesmo! A gente se encontra aqui às sete!

***

     À noite, Renato e Agenor estão voltando para casa num ônibus lotado. O instrumental de "Sertão das Almas" toca no rádio do veículo. Eles estão na parte de trás, quase encostados na porta, e Agenor está pensativo.

     — Esse é o único motivo? A garota?

     — É sim.

     — Tem certeza?

     — Claro.

     Uma mulher gorda passa por eles arrastando tudo. Incomodado, Renato dá sinal pedindo para descer. As portas se abrem na próxima parada.

     — Odeio ônibus lotado, muita pressão — Agora eles caminham em meio ao movimento tranquilo das ruas.

     — Verdade, não dá nem para ouvir meus pensamentos.

     Primeiro, uma mulher passa por eles conduzindo um pequeno cachorro na coleira. Incomodado pela fragrância arbórea que exalava dos meninos, o cachorro começa a latir pra eles, como se gritasse "Maconheiro! Maconheiro! Maconheiro!" em sua linguagem particular. Em seguida, um rapaz vem no sentido contrário trazendo um skate debaixo do braço. Renato arranca o skate dele, que revida com um palavrão, por sua vez recebendo como resposta o dedo do meio do ladrão. Os garotos seguem seu caminho, agora com Renato arriscando manobras.

     — Por que... — Agenor aponta para trás.

     — Relaxa, eu conheço ele. Depois devolvo — Renato tenta pular de uma calçada — Voltando ao que interessa, é só a garota e o lance da Cássia — Cansado de suas empreitadas radicais, Renato pega o skate e começa a andar de costas enquanto conversa com seu amigo — Eu queria mesmo reunir a galera e fazer algo do tipo. Mas você sabe que eu quase nunca tenho certeza do que faço — Volta a arriscar pequenas manobras.

     — Mano, isso é sério? A gente...

     — Ah, faça-me um favor! Parece o meu pai falando!

     — Desculpa.

     — De boa... Ei! Essa viagem é uma boa oportunidade para você ver o seu webnamorado!

     — O que!? — Mais uma vez, Agenor é pego de surpresa — Como você...

     — Eu sou doido, não sou cego — Volta a andar normalmente.

     — Nós somos só amigos.

     — Sei muito bem que tipo de amizade é essa... Mas e aí, como vocês se conheceram?

     — No League of Legends — Eles riem juntos — A primeira vez que a gente se viu pessoalmente foi naquela festa.

     — Que legal — Renato suspira — Enfim, o destino proverá.

     — Às vezes você pega umas viagens — Agenor ri, porém logo para de andar e deixar Renato seguir na frente, muito preocupado.

***

     Quando Renato chega em casa, encontra sua mãe sentada no sofá da sala, passando os canais sem interesse em nada. Mesmo apreensivo, não havia nenhum sinal de seu pai por perto.

     — Oi filho, como foi na escola hoje?

     — Bem, até... — Renato responde apático.

     Paula levanta do sofá e se aproxima do filho.

     — Você já sabe o que fomos fazer lá hoje?

     — Sim — Ele fica cabisbaixo — Eu garanto que não vou mais decepcionar vocês.

     — Você não é uma decepção, Renato — A mãe abraça o seu filho de modo acolhedor — Quer que eu faça um lanche?

     — Não precisa, eu comi no caminho. Eu vou... — O garoto aponta para o andar de cima.

     — Tudo bem.

     Renato sobe as escadas correndo. No seu quarto ele começa a arrumar as coisas para sua grande viagem, mas a primeira coisa que ele faz é colocar uma música para tocar.

"Não há mais desculpas

Você vai ter que me entender

Quando olhar pra trás

Procurando e não me ver"

— CPM 22

     Todo o material escolar nunca utilizado foi retirado da mochila e substituído por roupas e mais algumas miçangas. Ele troca de roupa, tira o uniforme encardido e coloca sua jaqueta personalizada por cima de uma camisa obscena dos anos noventa e amarra nos pés seus tênis vermelhos. A saída, como de costume, é pulando pela janela. A música continua tocando nos fones de ouvido do MP3 Player enquanto Renato anda pela rua. Chegando próximo ao refrão, o fugitivo é contagiado pela composição e passa a correr cantando com os braços levantados após um pulo.

"Chegou a hora de recomeçar!

Ter cada coisa em seu lugar

Tentar viver sem recordar jamais

E se a saudade me deixar falhar

Deixar o tempo tentar te apagar"

     Essa aventura que se iniciava só dizia respeito a ele. Quem o visse de fora apenas o perceberia como um idiota gritando na rua.

***

     Enquanto esse papelão acontecia, o casal estava em seu ninho de amor assistindo a novela do momento. Raul está distante, pensando no filho e no que a esposa havia dito mais cedo e no dia anterior.

     — Você tem razão, talvez eu devesse dar mais atenção no meu filho.

     — Eu avisei — Acaricia o cabelo do marido — Vai lá em cima falar com ele, pedir desculpas.

***

     Em outra casa, Agenor acaba de chegar e sobe direto para o seu quarto. Ele começa a arrumar suas coisas e tira a blusa, revelando no enquadramento a magreza muito aparente de seu corpo, fora do padrão idealizado pela ditadura da beleza.

     Agenor observa seu corpo doente em frente a um espelho e toma um remédio. Depois, veste uma camisa leve e liga o computador para conversar com Roberto. Ele aparenta estar nervoso na webcam.

     — Oi, como vai você? — Roberto acena no vídeo, ele está engomando roupa.

     — Oi, o que você está fazendo?

     — Arrumando umas coisas, e você?

     — Fugindo de casa.

     Preocupado, Roberto desliga o ferro de passar e se aproxima do computador.

     — O que? É sério?

     — Sim, sabe aquele meu amigo que ficou com a Priscilla na festa? — Explica

     — Ela só fala disso.

     — Ele colocou na cabeça que o "destino" quer que ele encontre a Priscilla ou algo do tipo — Ele faz as aspas com os dedos — Estamos indo para aí.

     — Você está falando sério? Tá tudo bem, de verdade? Verdade verdadeira, sem mentiras?

     — Sim, por isso que eu liguei — Agenor não parece animado — Chegaremos em dois dias, preciso que convença a Priscilla a ir para algum lugar na hora que a gente chegar.

     — Já sei o lugar perfeito. Vou levar ela para um shopping aqui perto. A gente se encontra no estacionamento, vou te passar a localização — Um pop up sobe discretamente na tela.

     — Perfeito. Eu preciso ir, a gente mantém contato.

     — Agenor... — Roberto fala com seriedade — Você quer mesmo ir nessa viagem?

     — Eu conheço o Renato há muito tempo, eu preciso ir. Ele é meio... Sensível. Difícil de explicar.

     — Tudo bem. Se cuida.

     — Obrigado, tchau.

     — Vou ficar te esperando.

     Agenor sorri e desliga, depois ele engole em seco. Algo o deixa muito triste.

***

     Raul abre a porta do quarto de Renato, sem nenhuma surpresa ao perceber que seu filho não estava lá. No fundo ele já esperava que não tivesse.

     — Paula! Corre aqui! — Raul grita.

     A esposa chega correndo, uma chama de preocupação maternal acende dentro dela.

     — O que foi?

     — Ele fugiu de novo...

     — Deve ter ido pra casa de algum amigo — Paula tenta se tranquilizar.

     — Sim, vou ligar pra casa do Aguinaldo e ver se ele está lá — Raul diz saindo do quarto.

     — É Agenor... — Paula vai logo atrás, após bater em sua testa.

***

     Agenor encontra a van no local marcado, aquele mesmo terreno baldio nos fundos da escola. Renato, Alex e Cássia já estão no seu aguardo.

     — Demorou, hein! — Renato o repreende.

     — Nem tanto, só precisei fazer uma coisa antes. Nada importante — Agenor se acomoda no banco de trás — Então, vamos?

     Os meninos encaram Agenor com desconfiança. Alex dá de ombros e liga o veículo, começando a dirigir. Cássia está distraída observando o céu noturno.

***

     Na sala de casa, Paula está no telefone conversando com a mãe de Cássia. Raul decide vasculhar o quarto de Renato, e desce de lá trazendo uma caixa cheia de coisas.

     — Ah certo, sim — Paula fala pausadamente no telefone — Eu retorno se tiver notícias, obrigada e boa noite — Desliga. O marido se aproxima — Cássia também sumiu.

     — E o Agenor — Raul senta no sofá e deposita a caixa sobre a mesa de centro — Onde será que eles foram dessa vez?

     — Uma festa talvez, ou um passeio. Daqui a pouco eles estão por aí. Eles sempre voltam... — Ela encara a caixa — O que é isso?

     — Achei no quarto do Renato.

     Eles começam a retirar tudo de dentro, observando os objetos. Dentre eles, haviam fotos, papéis rabiscados, escritos, brinquedos velhos, broches, desenhos, um volume de "Fé na Estrada - Seguindo os Passos de Jack Kerouac", e outras coisas mais impressionantes, como uma bandeira do Brasil Império. Raul encontra uma foto onde seu filho e seus amigos aparecem usando bonés azuis. Ela chama sua atenção.

     — Parece que ele tem bons amigos.

     — Apesar de tudo, ele é um bom garoto — Paula encontra outro item singular na caixa, uma fita cassete — Nós nem temos um vídeo.

     — Ele tem — De fato, também havia um reprodutor de fitas ali dentro.

     Raul liga o vídeo na televisão com nostalgia, há anos ele não via um desses. Enquanto a fita roda, eles assistem uma gravação amadora de Renato performando "Tu és o MDC da Minha Vida" com passos afetados na biblioteca da escola. Era uma declaração para Cássia, que assistia tudo morrendo de vergonha alheia. Foi impossível levar esse momento a sério, risadas foram proclamadas.

"Eu me lembro do dia em que você entrou num bode

Quebrou minha guitarra e minha coleção de Pink Floyd"

— Raul Seixas

     — Agora tô me sentindo mal por sempre ter sido tão duro com ele — Raul diz ao final.

     — Você fez o que achou melhor. Nós vamos resolver isso quando ele aparecer.

     — Sim, vamos esperar — Raul levanta — Vou beliscar alguma coisa, vai querer?

     — Não, obrigada.

     Raul vai até a cozinha. Sozinha na sala, Paula continua remexendo na caixa de lembranças de seu filho. Ela encontra uma foto de um rapaz sorridente e cabeludo, que a deixa extremamente abalada. Agora suas próprias lembranças, as mais dolorosas possíveis, estavam projetadas naquela caixa.

***

     A van passa por várias ruas. Renato está em seu lugar habitual, fumando na janela com o olhar distante enquanto observa a cidade passando. Ele sentia algo dentro de si ficando para trás, sendo atropelado por aquela van. Alex muda a estação do rádio várias vezes até encontrar algo que goste tocando, passando de Barão Vermelho a Djavan. Dessa vez é "Down Under" que preenche o ambiente com sua sensação contagiante de psicodelia.

"Traveling in a fried-out Kombi

On a hippie trail, head full of zombie"

—  Men At Work

     — Já repararam que a cidade fica mais bonita durante a noite? — Renato relaxa no banco, soltando fumaça — O silêncio predominante sendo entrecortado por pequenos ruídos isolados, o sentimento de solidão.

     — É tipo aquele vídeo do YouTube — Agenor recebe o cigarro das mãos de Renato — "O Paradoxo da Espera do Ônibus".

     — Sim... Porra! Simplesmente maravilhoso!

     Cassia agora está no banco de trás, deitada. Ela ouve a conversa, mas prefere não participar. Porém, o assunto lhe traz lembranças, tempos antes Renato a havia mostrado aquele vídeo. Ela cruza os dedos sobre a barriga e brinca com seus polegares.

     A música acaba, Alex troca de estação novamente. Agora eles ouvem "Sete Palmos".

"Só eu sei o que me faz bem

Só eu sei o que me convém

Então pare de se intrometer e me deixe em paz"

— Peixes Voadores

     — Porra... — Alex também traga o cigarro que trazia na mão apoiada sobre o volante — A larica tá batendo. Alguém trouxe comida!?

     — Eu não — Cássia finalmente levanta e interage.

     — Eu tenho — Agenor tira uma lata da mochila.

     — Isso é milho? — Renato pergunta com uma expressão de desagrado.

     — Milho tostado — Agenor bota alguns grãos na boca e começa a mastigar — É bom!

     — Que merda! — Alex reclama.

     — Eu tive uma ideia! — Renato encara os seus amigos.

     — E eu tenho até medo de perguntar qual é.

     Instantes depois, eles chegam num mercadinho bem humilde, cuja iluminação néon do letreiro oscila de maneira rítmica. A van é estacionada, ainda no meio fio, e todos descem dela. Por algum motivo Alex agora está usando uma peruca loira e cafona.

     — Alex, que merda é essa? — Agenor questiona.

     — Se vocês vão fazer essa idiotice de cara limpa o problema é de vocês. Eu vou esconder minha identidade — E durante toda a viagem Alex nunca mais tirou esse adereço.

     O grupo caminha rumo ao interior do estabelecimento comercial, os carros continuam correndo atrás deles. Lá dentro eles se separaram, indo cada um para um corredor, com Alex pegando um carrinho de compras. O local está quase vazio, havendo apenas um caixa jovem e depressivo e um segurança, além de poucos clientes dispersos.

     Ao perceber a movimentação incomum, o caixa encara o segurança, que fica de olho nos adolescentes infratores. Esses, por sua vez, tentavam discretamente encher seus bolsos e jaquetas com pacotes de biscoito, latas e todo tipo de guloseimas que eles não pretendiam pagar.

     O segurança observa Renato de longe, e logo percebe a tentativa de furto quando uma embalagem cai sobre o piso. Então, decide se aproximar desconfiado.

     — Ei, garoto! — O segurança o chama, desconfiado — Fazendo o que aí?

     Quando Renato é abordado por um aperto no ombro surge a necessidade de fugir. Nesse momento, nosso filme idealizado fica em câmera lenta e sem som, mais uma sequência musical se inicia.

"Eu nunca fui bom nisso, não levo jeito pra dizer

Que vai dar tudo certo e nenhum desastre vai acontecer"

— Tópaz

     O garoto pensa mais rápido e consegue se desvencilhar das mãos do guarda. Ele sai em disparada pelo corredor sendo perseguido, anunciando sua falha aos companheiros. Todo mundo corre junto, assustando os clientes do recinto.

"Eu tenho os meus problemas e a certeza que você tem os seus.

Quem sabe a gente aceita todos eles, juntos, só dessa vez?"

     A cena retorna à velocidade normal. Agenor acaba sendo atropelado pelo carrinho de Alex e cai lá dentro, sendo arrastado. O caixa se assusta quando Renato e Cássia passam apressados por ele, com Alex vindo logo atrás carregando seu passageiro e derrubando latas empilhadas.

"Se for pra tudo dar errado

Quero que seja com você"

     Em frente ao mercadinho, os garotos correm para dentro da van. Renato se joga no banco da frente com Alex, enquanto Cássia entra pela porta lateral e ajuda Agenor a sair do carrinho e embarcar. Percebendo que o segurança os observa e vê que ele perdeu alguma coisa, Cássia lhe mostra o dedo do meio antes de bater a porta com força. A van vai embora quando Alex começa a dirigir.

     Agora o grupo está novamente unido pela animação, com todos rindo da empreitada no mercado. Renato tira do bolso um maço de notas fartas.

     — Caralho, você pegou o dinheiro do cara! — Alex exclama, animado.

     — Mano, tu é foda! — Cássia abraça Renato pelo banco de trás e lhe dar um beijo no rosto, que o deixa com cara de bobo.

"O que podia ser, sempre vai ser melhor que é

As possibilidades vão perseguir o que a gente escolher

Vamos perder a calma pra encontrar três dias depois

No meio da saudade de nunca ser menos que nós dois"

     O dinheiro roubado é totalmente gasto em batata frita de um drive thru, o que gera uma guerra de comida a contragosto de Alex. Depois, juntos e felizes, Renato e Cássia brincam de seguir um avião no céu pela janela. Posteriormente, o ex-casal desce diante do muro de um terreno baldio e começam a escrever poesias e letras de músicas com tinta em spray. A intervenção é assinada quando "Renato esteve aqui" é escrito bem grande no centro da parede.

     Naquela rua deserta eles tiram fotos diante de seus escritos, dançam e improvisam brincadeiras. Renato ri o tempo todo, plenamente feliz por estar ali com seus amigos. Alex sobe numa calçada alta e improvisa um salto mortal de costas, a execução perfeita lhe rendeu aplausos. Quando Cássia tenta imitar o movimento, ela derruba Agenor ao cair por cima dele.

"Se for pra tudo dar errado

Quero que seja com você"

     A van estaciona na orla de uma praia, onde Renato, Cássia e Agenor correm pela areia para se jogar no mar, largando suas roupas no caminho. Alex observa a felicidade de seus amigos antes de se juntar na brincadeira aquática de molhar uns aos outros. Em seguida, sacos de lixo são incendiados por um isqueiro para improvisar a tão sonhada fogueira para dançarem em volta como um belo conjunto de drogados dançando.

     Perto do que restou do lixo flamejante eles se sentam na areia e observam fogos de artifício sendo lançados de um barco em alto mar, incendiando o céu enegrecido com suas explosões coloridas. Aplausos se sucedem, e Renato percebe o quanto ele ama seus amigos. Todos eles.

***

     Mais tarde, todos já estão secos e com roupas trocadas. A van está estacionada numa vaga do calçadão da orla, com a porta lateral aberta. Renato está sentado no chão da van, seus amigos estão em volta dispostos no meio fio, e como todo adolescente padrão metido a músico ele arrisca tocar Legião Urbana no violão.

     — E o que foi escondido é o que se escondeu, e o que foi prometido ninguém prometeu — Renato finge que sabe cantar, mesmo como todos sabendo que ele não sabe. No fim, a única coisa que faz Alex, Agenor e, principalmente, Cássia aturarem a falta de talento de Renato é a cerveja gelada que eles tomavam e a euforia proeminente dos eventos anteriores — Nem foi tempo perdido! Somos tão jovens... Tão jovens... Tão jovens!

     Falsos aplausos ecoam ao final do show de horror. Renato guarda o violão e abre uma latinha. Ao fundo, um grupo de mendigos se aquece no que sobrou da fogueira.

     — Eu vou tirar água do joelho. Já volto — Cássia levanta do chão frio e caminha até um bar do outro lado da rua.

     Ninguém sabia, mas Cássia tinha outras intenções naquele banheiro.

***

     Raul e Paula estão vendo um filme na sala de casa com todas as luzes apagadas. Raul está deitado no sofá com a cabeça apoiada no colo da esposa, que está comendo pipoca num balde, tentando esconder suas preocupações tão intensas.

     — Amanhã cedo vamos fazer um boletim — O marido fala — Quer dizer... Caso ele não tenha aparecido.

     Uma notificação de mensagem faz o celular de Paula, depositado no braço do sofá, se acender e atrair a atenção do casal.

     — Quem é? — Raul pergunta.

     — A amiga do Renato.

     — O que disse? — Ele levanta e observa o aparelho.

     — Não façam o boletim, estamos bem... — Paula responde lendo o que foi escrito.

     Nesse momento, naquele banheiro sujo de bar, Cássia estava sentada sobre a tampa do vaso sanitário, digitando.

     — Deixa eu ver se entendi. O Renato arrastou os amigos para uma viagem para outra cidade para encontrar uma garota que ele conheceu numa festa? — Raul questiona após a mensagem ser lida.

     — Sim, exatamente isso.

     — E para onde eles foram? — Paula mostra o celular, a reação de Raul é basicamente uma surpresa. Um singelo wilhelm scream surge no filme dentro do pseudofilme — Puta merda! Vamos atrás deles agora! — Raul levanta do sofá, mas é puxado novamente pela esposa.

     — Espera, ela disse pra gente só sair de manhã. Eles não estão nem na metade do caminho.

     — Tudo bem então — Raul deita novamente.

     — Simples assim?

     — É, tô tentando ser mais "de boas" como você. Relaxar um pouco. O que poderia acontecer? — Ele diz com tranquilidade.

     — Também gostaria de saber...

***

     Na orla, Cássia sai do bar e caminha calmamente até o local onde a van estava estacionada. Um marginal malcheiroso se aproxima silencioso por trás dela, a abordando com uma faca que trazia escondida. Cássia se irrita com a situação, mas se mantém calada para evitar o pior.

     — Você vem comigo, gatinha — O criminoso tenta lhe empurrar de volta para a rua. Uma garrafa de vidro é jogada e quebra em suas costas. Surpreso, o raptor acaba afrouxando suas mãos sobre Cássia, que aproveita para se soltar e revidar as agressões com um chute no saco — Sua vadia!

     O marginal contra-ataca com violência, derrubando-a com tentativas de golpear sua barriga com facadas.

     — Ei, amigo! — Uma voz chama a sua atenção — Deixa a garota em paz!

     É Alex quem se aproxima, ainda com a peruca na cabeça e com mais uma garrafa em mãos.

     — Não se mete, fedelho!

     — Quer levar outra? — Alex quebra a garrafa no poste e joga novamente, o criminoso valentão foge amedrontado. Alex se aproxima e ajuda Cássia a se levantar — Aquele filho da puta te machucou?

     — Não, tô de boa — Cássia limpa a sujeira das calças — Como você...

     — Pura sorte, queria conversar com você a sós. O Renato não vai desistir.

     — Foda-se, eu não me importo mais — Cássia responde com desprezo — Ele tá feliz, deixa rolar.

     — Ok, então. Você está realmente bem?

     — Sim, você me salvou. Gostei da coragem de enfrentar o trombadinha.

     — Quando você passa um tempo no reformatório você aprende a lidar com esse tipo de pessoa — Alex fala com o olhar distante.

     — Reformatório... Que história é essa? — Cássia é pega de surpresa.

"Algo que você não identifica insiste em lhe atormentar

Você implora por proteção, não sabe como vai acabar

Oh crianças, isso é só o fim..."

— Camisa de Vênus

     — A minha história — Alex começa sua narração, preso em suas memórias que correm na cabeça como um flashback do filme da sua vida — Quando se tem doze anos e passa o dia vendo bebês sendo levados do orfanato você começa a acreditar que nunca vai ter uma família. Que ninguém vai gostar de você um dia — O pequeno Alex está numa janela observando um recém-nascido ser entregue a um casal — Então você começa a pensar que pode se virar por conta própria, mas você não pode e faz merda. A criança que queria ser livre acaba presa de novo, num lugar muito pior que um abrigo de adoção — Dois guardas arrastam o pequeno Alex por um corredor empoeirado — Ainda não acabou... — Cássia está ouvindo tudo com atenção, incapaz de dizer qualquer coisa — Teve uma noite que começaram uma rebelião, eu estava escondido esperando a confusão acabar, mas logo percebi que era a minha chance de fugir dali, escapar daquele pesadelo. Eu fui com um pequeno grupo e entramos no matagal, mas eu fui o único que saiu — Os garotos desaparecem entre as árvores em meio a sons de tiros — E foi na beira da estrada que eu os encontrei...

     — Quem?

     — O mais próximo que eu tive de uma família — O pequeno Alex caminha pelo acostamento, um carro se aproxima ao fundo — Um casal e o filho único, eles tinham uma casa grande, com piscina e afins. Eles me levaram pra lá e eu me ofereci pra ser um tipo de "mordomo", não queria ser um peso morto na casa dos outros. Eu fazia faxina, limpava a piscina... E lavava a van. O cara fazia aqueles transportes escolares e eu sabia que o meu passado voltaria e traria problemas, então no dia que descobri que a van não tinha rastreador eu a roubei.

     — A lata velha é roubada!? — Alex confirma balançando a cabeça.

     — Mudei a placa, queimei documentos, tirei outros falsos, tanto do carro quanto pra mim e pros meus "pais". Eu gastei cada centavo que tinha pra deixá-la o mais diferente possível, para evitar que ela seja reconhecida. Então eu vim pra cá, voltei a estudar, aluguei meu quartinho e conheci vocês.

     — Nossa, nem sei o que dizer. Mas você não devia mais se importar com o seu passado, eu sei que é difícil, mas olha tudo o que você passou, olha o que passamos. Você até pode se sentir, mas não está sozinho — Cássia repousa sua mão no ombro do amigo — Você tem amigos, e tem a mim. Se isso não é uma família então...

     — Você tem razão, mas olha em volta — Alex a interrompe — Todo mundo tem alguém especial. O Renato tem a garota da festa, o Agenor o cara da internet e você tem quem quiser. E eu? Eu só tenho a van, sei que não vale nada, mas é tudo que eu tenho.

     — Eu não sabia que aquela merda era tão importante pra você — Cássia fala de cabeça baixa, arrependida de ter menosprezado os sentimentos de Alex antes ao insultar o seu amado veículo.

     — Tem coisas que ninguém sabe.

     Eles voltam para onde Renato e Agenor estavam, Cássia permanece pensativa durante o trajeto. O incidente logo se torna uma divertida fofoca, mas as revelações não são comentadas. Tem algumas coisas que ninguém sabe, e outras que ninguém precisa saber.

***

     Longe dali, no local demarcado pelo destino como o rumo dessa viagem, Priscilla também sentia falta de Renato, mas havia se esquecido de ir atrás dele. Estava muito ocupada tentando se livrar de um macho escroto, o ex-namorado tóxico que nunca largou do seu pé. Por sorte, nossa mocinha não tão indefesa tinha a ajuda de seu melhor amigo gay.

     — Lembra daquele garoto da festa? — Roberto decide provocar — Não cheguei a ver ele, como se parecia?

     — Então — Priscilla pensa por um momento, tentando relembrar a aparência de uma pessoa que nunca saiu da sua mente — Ele parecia o Kurt Cobain — Mentira, não havia a mínima semelhança nessa comparação, Kurt Cobain não era feio.

     Naquela noite, Priscilla e Roberto estão deitados juntos no quarto dela, assistindo algum romance teen clichê da Netflix e rindo de bobagens naquele recanto cor de rosa que combinava o fofo com o macabro. Uma pedra surge colidindo na janela fechada, chamando a atenção deles e os assustando.

     — O que foi isso?

     — Deve ser um vândalo fazendo merda — Roberto responde — Seria engraçado se fosse o cara otário te fazendo uma serenata.

     Priscilla levanta e abre a janela, ao olhar para baixo ela não gosta do que vê.

     — Mas é o cara otário — Lá embaixo, a criatura heteronormativa aparece acenando, totalmente drogado.

     — Que cara chato! — Roberto fica na janela ao lado da amiga.

     — Ei, Priscilla! — O cara otário a chama — Eu vim cantar uma música para você!

     — Vai embora, idiota! Isso lá é hora de cantar!? — Ela revida.

     — E tem hora pra ver o amor da minha vida!?

     — Para com isso, branquelo! Ela não te quer mais! — Roberto grita pela janela.

     — Eu vou fazer de tudo para reconquistar ela. Agora eu vou cantar! — A música é proferida de um modo tão horrível que seria uma ofensa a todos os envolvidos transcrever esse momento.

     — Misericórdia, o cara surtou de vez! — Priscilla se encolheu abaixo da janela, chamando Roberto para uma conversa particular — Me deixou sozinha na festa por causa de uma blusa gola polo de marca cara que nem original era e agora vem cantar que eu o abandonei.

     — O que vamos fazer? — Roberto fala morrendo de vergonha alheia. É impressionante o quanto uma pessoa consegue desafinar tanto ao ser desprovida de talento.

     — Tive uma ideia! — Após um plano ser formulado e cochichado, Roberto sai correndo.

     O cara otário continua cantando, mesmo sem a menor noção de tom e afinação. Uma enxurrada de água cai sobre sua cabeça, o deixamos inteiramente molhado e irritado com a ação.

     — Some daqui! — Na janela, Priscilla está com um balde em mãos, trazido por Roberto.

     — Tá achando que isso aqui é The Voice!?

***

     Na casa do Renato, seus pais estão no quarto, sozinhos no escuro. Raul já dorme, mas Paula continua acordada, observando o teto liso. Agoniada com sua inércia, ela senta na cama e liga o abajur, acordando seu marido.

     — Amor, está tudo bem?

     — Tô preocupada com o Renato — Ela diz.

     — Então agora você está preocupada? — Raul comenta de um modo sacana.

     — Eu sempre estive, seu palhaço! — Paul ri por um momento, mas logo retorna a seriedade — Mas o que me preocupa agora são os problemas de pesadelo dele.

     — Pensei que tivessem parado.

     Paula encara o marido, chegou a hora da verdade.

     — As noites dele são agitadas desde que o irmão dele morreu.

***

     Alex dirige a van enquanto Renato, Cássia e Agenor cantam alegremente uma composição de Charlie Brown Jr. O efeito da planta mágica destrincha a melodia, revelando todos os mínimos detalhes perdidos na frequência. Eles nunca mais ouviriam essa música do mesmo jeito.

"Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério

O jovem no Brasil nunca é levado a sério!"

     E quando a música termina com Cássia entregando todos os vocais dos últimos versos com sua potência vocal arrasadora, Alex para o veículo no estacionamento de um posto de gasolina.

     — Hora de dormir, crianças! — Alex anuncia — Foi um longo dia!

     — É, boa noite pessoal — Cássia logo cai no sono.

     — Boa noite!

     A seguir, cada um se acomoda num lugar diferente. Alex continua no banco da frente, enquanto Renato caminha até o último. Agenor e Cássia ficam cada um em um dos bancos do meio.

     Renato fecha os olhos. Tudo estava silencioso, quieto até demais.

     Ao dormir, Renato é levado a um sonho onde o mundo é tomado por tons de roxo, rosa e um filtro granulado digno de VHS, o que deixa tudo ainda mais irreal e desfocado. Parece uma brisa vaporwave incentivada por música experimental, e uma melodia digna desse estilo artístico canta ao fundo do devaneio onírico.

     Ele entra pela porta da frente de sua casa, chegando em sua tão conhecida sala, mas anda de um modo desengonçado como se estivesse bêbado. De fato, Renato se sentia zonzo, tentando manter o equilíbrio ao se encostar nas paredes. Numa tentativa de retornar à normalidade, Renato esfrega os olhos e se alonga.

     Olhando em volta ele percebe uma série de diferenças. Uma fantasmagórica luz azulada entrava pelas janelas, os móveis haviam sumido, e no centro do cômodo surge uma estátua grega de mármore polido, com samambaias verdes vibrantes aos seus pés. Setas, num tom de amarelo bem pálido, saem da estátua e flutuam pelo ar, lhe indicando a direção como num videogame.

     Renato segue as setas subindo as escadas, agora percebendo que os quadros de sua família presentes nas paredes foram substituídos por pinturas renascentistas. As setas o levam até o banheiro, de onde uma iluminação avermelhada infernal ecoava pelas brechas da porta. Toda a cena é tomada pelo vermelho, tremendo de desespero e forçando a aproximação do garoto.

     A porta lentamente se abre.

***

     Alex é o único ainda acordado, sem sono, enquanto todos os outros dormem tranquilamente. Eles são acordados quando Renato começa a gritar e se debater. Assustados, pulam para o banco de trás. Alex agarra Renato na tentativa de acalmá-lo, e os outros ficam sem reação, sem saberem o que fazer.

     Quando Renato acorda ofegante, ele olha em volta encontrando o olhar de preocupação dos seus amigos.

     — Gente, eu fiz de novo... Me desculpem — Renato se encolhe e começa a chorar. Seus amigos se entreolham sem se entender.

***

     Após revelar o maior segredo da sua vida, Paula é tomada pela tensão e pela tristeza. Raul está curioso com a afirmação, mas assume uma postura compassiva para amparar o dilema secreto da esposa.

     — Irmão?

     — É uma longa história, nunca contei por puro medo.

     — Ah meu amor, medo de que? — Raul segura firme as mãos de Paula — Você sabe que pode confiar em mim. Estamos juntos faz tanto tempo.

     — Eu não espero que me entenda... — Paula hesita em falar, como se as palavras lhe atingissem como balas que iriam destroçar a sua alma com culpas e arrependimentos. Ela mostra para Raul a foto do rapaz que encontrou nas coisas de Renato — Eu engravidei pela primeira vez aos dezesseis anos. O cara não quis assumir o filho então eu tive que cuidar do Max sozinha, perdi a melhor época da minha vida — Lembranças também se propagam. A Paula adolescente chorando com o teste de gravidez positivo em mãos — Por isso eu tento ser legalzona, ouvir as músicas do momento, fingir me divertir, na tentativa de tentar recuperar o tempo perdido. Eu tive a sorte de ter a ajuda da minha mãe, foi ela quem criou o Max na verdade. Aproveitei essa ajuda para voltar a estudar e terminar o ensino médio, fui pra faculdade, me formei e te conheci. Max já tinha dez anos quando o Renato nasceu.

     A imagem do Max criança vendo o pequeno Renato nos braços da mãe surge em sua mente.

     — Por que não me contou que já tinha um filho quando nos conhecemos?

     — Porque até então eu nunca tinha sido uma mãe presente pro Max, e quando te conheci eu tinha certeza de que tinha encontrado o amor da minha vida e que poderíamos ser uma família feliz. O Max estaria melhor morando com a avó por enquanto, e o Renato seria minha chance de fazer tudo direito. Eu só não sabia como tudo isso teria afetado ele.

     — Continue — Raul ouve com atenção.

     — Tudo ia bem, de vez em quando eu visitava o Max, mas ele sempre se queixava de não receber atenção. Eu lembro da última vez que o vi, ele estava alterado e eu também não estava bem. Nós brigamos feio naquele dia e eu falei algo que sempre me arrependi.

     Ela se lembra claramente desse dia, do Max, já um moço, com o cabelo grande e encaracolado, trancado em seu quarto jogando no PlayStation.

     — O que você disse? — A resposta veio rápido como um raio, enchendo os olhos de Paula de lágrimas.

     — Eu disse que nunca quis que ele tivesse nascido — Ela enxuga as lágrimas — E o Max era apegado ao irmão, teve um dia que deixei o Renato ir lá nas férias. E foi nesse dia que o Max cortou os pulsos no banheiro, aos dezesseis anos de idade, e o Renato viu tudo — Um arrepio corre no seu corpo ao imaginar essa cena macabra. O pequeno Renato correndo para o lavabo, encontrando seu irmão ensanguentado na banheira, lhe encarando com um olhar distante — Foi aí que os pesadelos começaram. Com o tempo eu consegui acalmar ele, mas em noites como essa eles costumam voltar. E é tudo culpa minha.

     — Meu amor, não é muito adequado julgar as ações de uma mãe a respeito dos filhos — Raul diz calmamente — Mas nem de longe você é uma mãe ruim, as coisas com o Max foram complicadas mesmo, mas você está certa em relação ao Renato. Ele é sua chance de recomeçar, você sempre fez tudo por ele, e ninguém pode tirar isso de você.

     — Mas se eu realmente fosse uma boa mãe, meu filho não estaria por aí nessa viagem maluca!

     Raul se acomoda mais próximo de Paula, enxugando suas lágrimas e acariciando seus cabelos.

     — Olha, você não devia se culpar pelos problemas dos outros. Só nós mesmos sabemos lidar com certas coisas — Agora é Paula quem escuta — Eu não sabia que você perdeu um filho e você não sabia como o Max se sentia rejeitado. Da mesma forma, nenhum de nós sabia que o Renato queria sumir. Amanhã nós vamos pegar o carro, achar o Renato e eu sei que você vai saber o que fazer. Você vai ver como tudo vai se resolver.

     Paula começa a rir sem motivos.

     — O que foi?

     — Eu não gosto quando você tem razão!

     O casal ri juntos e começa uma divertida guerra de travesseiros.

***

     Na van, Renato conta os fatos da curta vida de Max para seus amigos, deixando todos perplexos.

     — Nossa cara, que pesado — Agenor mastiga alguns pedacinhos de milho tostado — Eu nem sabia que você tinha um irmão.

     — É algo que eu nunca contei pra ninguém.

     — Pelo menos ele confia na gente pra contar esses segredos — Alex comenta.

     — Não tenho motivos para não confiar. Vocês são meus melhores amigos — Suspiros e sorrisos acompanham essa declaração — Sabe, às vezes eu sinto o Max comigo, me protegendo... Como um fantasma!

     Um som de pancada se faz ouvir na janela próxima, revelando o surgimento de uma marca de mão no vidro manchado. Alex sai para olhar em volta do veículo enquanto todos os outros permanecem assustados e estáticos em seus lugares, aproveitando-se do fato de continuar ameaçador mesmo trazendo no casco uma peruca de quinta categoria. Lá fora, o mais velho nada encontra, ele não podia ver o espírito atormentado que os acompanhava desde o início da viagem. Renato poderia o ver, mas nem se deu ao trabalho de movimentar um músculo sequer. Alex volta para dentro, e a primeira coisa que vê é Agenor se benzendo freneticamente igual ao "Chaves" naquele famigerado episódio em que adentra na casa da Bruxa.

     — Então hoje é a noite das revelações? — Alex encara Cássia após essa fala dela, como uma advertência. O clima já estava pesado demais após a história de suicídio e a manifestação do além, e a bonita ainda insistiria em estragar todo o resto.

     — O que você quis dizer com isso? — Renato pergunta.

     — Nada não, deixa pra lá — Ela fala como se tentasse esconder algo — Só não esperava algo assim vindo de você. Sempre tão tranquilo, despreocupado. Quem diria né?

     — Já que hoje é a noite das revelações então também vou fazer uma — Agenor fala a plenos pulmões — Eu sou gay!

     Alex, Cássia e Renato encaram Agenor sem reação.

     — Uau! Que novidade! Ninguém sabia!

     — Ainda bem que já sabiam, eu nem queria contar mesmo.

     — Também vou revelar uma coisa — Cássia diz — Eu já peguei a namorada do meu irmão — Pelo menos ela consegue arrancar risadas dos demais.

     — Quando alguém vem me perguntar onde é algum lugar eu sempre dou a informação errada só pra ver a pessoa perdida — Agora é a vez do Alex, coçando a cabeça por baixo da peruca.

     — Eu já escondi bolinhos de maconha na cesta da menina que vende doces — Renato confessa.

     — E eu comprei um doce — Agenor completa, fazendo os outros rirem mais ainda.

     — Não sei vocês, mas depois de tantas revelações eu vou dormir. Boa noite! — Cássia volta a se esgueirar até o banco em que estava antes.

     — Também vou — Agenor faz o mesmo.

     — Você vai conseguir dormir? — Alex pergunta para Renato antes de se retirar.

     — Talvez, eu só quero ficar um pouco sozinho.

     Lá no fundo, Renato sabia que não estava sozinho. Ele tinha seus amigos por perto, bons amigos, e mais perto ainda havia o fantasma cabeludo que o vigiava pela janela.

***

     Bem cedo na manhã seguinte, Alex dirige a van enquanto o sol nasce, iluminando os pavimentos urbanos. Cássia está ao seu lado no banco da frente, havia perdido o sono ainda na madrugada, preocupada com algo. Os outros dormiam aos fundos. "Hotel California" toca no rádio.

"You can checkout anytime you like

But you can never leave!"

— Eagles

     — Essa música demora muito, é quase meia hora só nesse toque! — Cássia reclama, referindo-se ao solo instrumental transcorrido. Na mesma hora, a música acaba — Ué!

     A van é estacionada na parte de trás de um supermercado, acordando os dorminhocos.

     — Vão lá! — Alex ordena. Os outros descem e correm em direção a um banheiro localizado nos fundos do estabelecimento, carregando escovas e pastas de dente.

     Cássia entra no banheiro, se tranca em uma cabine e começa a digitar, entrando em contato com os pais de Renato. Por sua vez, Raul e Paula recebem a mensagem enquanto tomam café e decidem sair de casa. Em seguida, Cássia faz sua higiene, volta para a van e encontra Alex esperando na janela.

     — Ainda não voltaram? — Alex negou balançando a cabeça — Vai lá, eu vigio a lata velha.

     Alex resmunga e desce do veículo, indo em direção aos banheiros. Quando ele se afasta, Cássia passa a mexer no GPS na intenção de manipular a trajetória da viagem e atrasar o grupo. Renato e Agenor retornam logo depois.

     — Cadê o Alex? — A chegada de Renato assusta Cássia, quase pega no flagra em sua ação de sabotagem.

     — Foi cortar o rabo do macaco — Ela responde com seu deboche habitual. Renato começa a ri muito.

     — Não entendi — Agenor comenta, confuso. A explicação é sussurrada por Renato em seu ouvido, o deixando enojado — Que merda!

***

     No caminho para o reencontro, Raul dirige seu carro, onde Paula vai no banco do carona. Ambos estão pensativos.

     — Como vai ser quando a gente encontrar o Renato? — Paula pergunta, muito mais questionando a si mesma do que falando com o marido.

     — Normal — Eles passam pelo muro pixado.

     — Como assim "normal"!?

     — Você vai falar umas coisas, ele vai fazer cena e outras coisas vão acontecer.

     — Será que eu conseguiria demonstrar o papel que uma mãe deveria ter enquanto... — Ela encerra sua suposição quando olha para o marido e vê que ele não parece interessado — Você ouviu alguma coisa que eu falei?

     — Desculpa, é que eu me distrai — Ele aponta para o céu — Olha lá o avião!

     — Como você consegue ficar tão despreocupado numa situação dessas?

     — Eu sou apenas um pai exigente demais com o filho, você tem mais o que resolver. Meus problemas com o Renato podem esperar.

     — Entendi. Sabe... — Paula chega a uma conclusão após uma risada — Tomei uma decisão em relação a essa aventura do Renato.

***

     Seguindo em frente, Agenor acompanha o motorista na área frontal, trazendo um mapa em mãos. Renato ainda está distante, no último banco, arrancando notas solitárias do violão. Lá fora, o tempo havia mudado de uma hora para outra, se enchendo de nuvens violentas.

     — Tem algo errado acontecendo — Agenor comenta.

     — O que foi dessa vez! — Alex já transmite irritação.

     — Pelo que eu entendi — Agenor apoia o mapa no painel da van e começa a apontar pontos distintos — A gente não devia estar aqui, a gente devia estar aqui!

     — Que droga! Então estamos andando em círculos!

     — Parece que sim.

     Uma torrente de insultos é proferida pelo motorista.

     — Pega seu celular, sei lá, olha no Maps.

     — Precisa de internet e meus créditos acabaram — Agenor explica, iniciando mais um tsunami de palavrões vindos de Alex.

     — Que merda! Talvez esse aqui funcione! — Alex começa a apertar no GPS agressivamente até constatar que o aparelho nem sequer liga — Puta que pariu! Por que nada aqui funciona!?

     No seu ato de agressividade, Alex tira os olhos da estrada, e ao retorna ele se assusta com um cachorro que havia surgido no meio do caminho.

     — Alexandre! Cuidado! — Agenor o alerta.

     Para desviar do animal, Alex faz uma manobra seguida de uma freada brusca. O cachorro se assusta e foge, enquanto o motorista e seu copiloto disfuncional ficam ofegantes com a situação.

     — Puta merda! — Agenor esbraveja.

     — Que merda foi essa? — Renato surge vindo dos fundos, o violão havia caído com força sobre ele durante a manobra, deixando sua testa dolorida. Cássia vem logo atrás.

     — O GPS não funciona, quase morremos e estamos perdidos — Agenor simplesmente solta, arrumando seus cabelos bagunçados.

     A turma desce da van, encontrando uma estrada fantasmagórica coberta pela neblina cada vez mais densa. O céu fica ainda mais escuro a cada segundo que passava, uma tempestade se aproxima no clima que não apresentava uma nuvem sequer alguns minutos atrás. Agenor e Alex tentam abordar os poucos carros que passam e pedir ajuda, mas nenhum lhes dar atenção.

     — Parece que estamos realmente perdidos, melhor voltar antes da gente se perder ainda mais — Alex sugere.

     — Ou a gasolina acabe — Agenor acrescenta.

     Renato é tomado por uma severa crise de ansiedade ao ver sua viagem dando errado, ele não poderia deixar tudo o que planejou desmoronar assim.

     — Não! Não podemos voltar! — Renato grita desesperado, sua voz ecoando pelas sombras da estrada — Nós precisamos chegar lá! Eu preciso chegar lá! Eu preciso ver ela!

     — Acorda, cara! — Alex perde a paciência — Você acha que é assim tão simples!? Que vamos chegar numa cidade imensa e uma garota que nem lembra que você existe vai brotar do nada na sua frente para vocês terem o "felizes para sempre"!?

     — Sim! O destino vai arrumar isso!

     — Destino não existe, Renato! É só uma ilusão! Uma ilusão que fez a gente se perder no meio do nada!

     Agenor fica intimidado com o bate-boca entre seus amigos, mas Cássia fica ainda mais preocupada. Ela conhecia bem aqueles dois, sabia o quanto Alex podia ser agressivo e o quanto Renato podia falar besteira. O trágico se mostrava inevitável. Cássia precisava falar algo para evitar o pior, sem saber que sua escolha iria desencadear algo muito mais avassalador que uma briga masculina.

     — Calma, logo vão vir buscar a gente — Cássia intervém, chamando a atenção de Renato com sua fala.

     — Eles quem? — Renato se aproxima de Cássia — Eles quem!? Me fala! — A garota se torna alvo de seu descontrole — O que foi que você fez, Cássia?

     — Os seus pais... — Ela tenta evitar o olhar de decepção que surge no rosto de Renato.

     — Então você entregou a gente!? E com certeza também sabotou o GPS! — Cássia confirma balançando a cabeça.

     — Renato, calma — Agenor tenta fazer algo, em vão.

     — Calma é o cacete! — O estrago já havia sido feito — Ela não tinha o direito de estragar tudo! Nenhum de vocês tem!

     — Eu fiz isso pro seu próprio bem, porra! — Dessa vez, Cássia decide levantar a voz, mas sem conseguir assumir sua persona características, haviam tantos sentimentos silenciados lhe impedindo. Ela estava na beira do abismo.

     — E desde quando você sabe o que é melhor pra mim!?

     — Desde sempre porquê eu te amo, porra! — Seus olhos se enchem de lágrimas, deixando todos confusos. Como alguém tão forte poderia acabar assim, derrotada, vendo tudo o que sempre escondeu fugir de si, ferindo seu orgulho de um modo que nunca poderia se curar.

     Por um instante, Renato fica confuso, depois assume tom de seriedade.

     — Agora já é tarde para isso.

     Cássia e Renato continuam aos gritos um com o outro, acompanhados dos primeiros pingos da chuva que logo se torna um temporal. Um flashback do passado retorna com a câmera lenta que registra toda a cena, fazendo Renato relembrar os momentos que passou em seu relacionamento desastroso com Cássia, sempre tão fria. Ela realmente o amava, mas amava mais ainda sua zona de conforto, e não estava disposto a sair daquele espaço que lhe rendia tanto poder. Logo ela percebeu que tudo não passou de uma ilusão que a deixou sem nada, sem poder, sem segurança, sem amor, e sem o Renato.

"Por cada noite sem dormir

Cada dia que passou

Por cada vez, cada vez

Que eu me senti assim"

NxZero

     Renato dorme no sofá de sua casa, lembrando do olhar de tédio que Cássia sempre mostrava quando eles se encontravam nos corredores da escola. Então, ele é visto sentado num balanço, sozinho.

"Pela grana que gastei

Pelo tempo que perdi

Que foi em vão

E eu fiquei sem ter para onde ir"

     Renato lembra de quando comprou um buquê de rosas para ela, e teve que abandona-lo no meio fio logo em seguida. Então, surge a imagem de Cássia na festa, tão indiferente.

"Cada briga sem razão

Cada verso sem refrão

Você virou as costas para quem te era bom"

     Cássia fecha a porta na cara de Renato, que tomado pela tristeza vai embora. No tempo presente a briga continua.

"Mas não vou ficar aqui

Me lamentando por você

Essa é a última vez que faço essa ligação

Escute bem"

     Em seu quarto, Renato pega o seu celular e faz uma ligação que ninguém atende. Ele coloca sua jaqueta e sai pela janela.

"Porque quando eu desligar

Você não vai saber mais nada sobre mim

Chegamos ao fim

O último 'alô' é na verdade um 'adeus'

Esqueça aqueles planos, eles não são mais seus"

     De volta a realidade, o calor do momento faz Renato acabar empurrando Cássia no asfalto, e Alex tem que correr para segura-la antes que se machuque. Mais gritos se sucedem.

     Num impulso, Renato corre até a van, sobe no veículo e vai embora mesmo sem saber dirigir. A câmera imaginária registra em close a expressão de surpresa de cada personagem, com Cássia sendo a última, ainda caída. Faróis surgem em meio a neblina.

     — Gente! Um carro! — Agenor anuncia.

     Alex, Agenor e Cássia correm até ele e conseguem fazê-lo parar, então os adolescentes encharcados veem Raul e Paula surgindo por trás do vidro molhado.

"Pra você o amanhã nunca existiu

Esqueceu tudo o que vivemos ontem

Jogou fora dias, meses e lembranças

Nosso tempo você desperdiçou

Não há mais nada a fazer"

     O piloto inexperiente tenta manter o controle do veículo, que derrapa muito. Em mais um flashback, Renato é visto rasgando vários papéis e jogando tudo para o alto.

"Quando eu desligar

Você não vai saber

Mais nada sobre mim"

     Renato perdeu de vez o mínimo domínio que ele possuía da van. Na tentativa de frear, o veículo saiu da estrada e bateu de frente com uma árvore. Renato é arremessado contra o volante.

"Chegamos ao fim

O último 'alô' é na verdade um 'adeus'"

     Quando Paula abaixa o vidro do carro, os adolescentes correm até lá e tentam explicar tudo o que aconteceu, com gritos eufóricos de temor que se atropelavam e saiam atrapalhados. Por fim, eles entram no carro e seguem com pressa.

"Esqueça aqueles planos

Eles não são mais seus"

     Quando Renato levanta a cabeça e vê o que aconteceu, ele se debruça no volante e começa a chorar. Nosso ponto de vista se afasta lentamente da van, dando espaço para a luz dos faróis denunciarem a aproximação de um carro. Mais alguém via a cena na chuva, alguém que não podia se molhar.

***

     Em outra cidade, outro alguém não se molhou na chuva. Roberto chega na casa de Priscilla chacoalhando um guarda-chuva, e encontra-a em seu quarto deitada sobre a cama, ouvindo e cantando juntos aquela música triste da Pitty que todo mundo ama.

"E não adianta nem me procurar

Em outros timbres, outros risos

Eu estava aqui o tempo todo

Só você não viu "

— Pitty

     — Priscilla? — Ele a chama.

     — Opa, e aí? — A garota levanta da cama.

     — Bora sair hoje, ir pro shopping... Sei lá!

     — Vamos, espera só eu me arrumar.

     Roberto vira de costas, mas não esconde seu constrangimento quando Priscilla vai em direção ao seu armário e tira sua blusa velha. Ela fica ali por um tempo com tudo de fora, mexendo nas suas roupas até achar algo que goste. Enquanto isso, o ruivo pega o celular e começa a se comunicar com Agenor.

     — Não sei se eu vou com um vestido, uma blusa bem por aqui amarrada... Uma bota talvez...

     — Dá pra agilizar! — Roberto reclama.

     — Calma, seu grosso!

***

     A tempestade ficou para trás, deixando naquela estrada as nuvens tímidas que se separavam aos poucos pelo céu claro, indiferentes ao que acontecia abaixo do firmamento.

     Um ainda irado Alex retira a van do local da batida, e analisa o resultado junto de Agenor, que tenta o convencer de que foi só um arranhão. Cássia está sozinha sentada no carro dos pais de Renato, esses, por sua vez, estão um pouco distantes, sentados na grama de um vale, observando a paisagem. A ausência de neblina agora deixa a vegetação pacífica aparente.

     — Então é isso? — Renato se mostra um pouco abalado — Acabou a viagem.

     — Só ficamos preocupados com você — Disse o pai — Por isso viemos.

     — Preocupados... — Ele debocha — Como se vocês se preocupassem comigo. Quero deixar bem claro que eu só fugi porque já cansei de ficar sempre perto de quem não gosto e longe de quem amo.

     — Sabe — Raul olha o horizonte — Quando eu tinha a sua idade eu também odiava meus pais, eu também queria fugir. Você conseguiu em uma noite fazer tudo o que eu sempre quis a vida toda.

     — Então seu sonho de infância era fazer uma fogueira?

     — Talvez... — O pai fica desconcertado.

     — Tentamos uma vez e não deu certo — A mãe diz, arrancando risadas naquele momento tenso. Renato a encara.

     — Mãe, eu disse que não ia mais te decepcionar.

     — Você não é uma decepção, Renato — Paula abraça seu filho, emocionada — Eu tive tanto medo de te perder assim como perdi o Max, mas eu nunca vou te abandonar. Você sempre vai ter uma família que te ama. Eu quero ver você crescer, amadurecer, seguir os seus sonhos, e mesmo quando errar você nunca vai ser uma decepção. Você é o filho que eu sempre quis ter.

     — Eu... — Renato absorve as palavras degustando o peso delas. Ele não sabia como retribuir tanto afeto, isso o deixava paralisado, e com vontade de chorar — Obrigado...

     — E sobre zoar o Josué, até que foi bem legal — O comentário cômico foi a chave de ouro que selou a reconciliação — Não faria sentido terminar assim.

     — O que?

     — Você não veio até aqui pra desistir agora — O pai concluiu — A viagem ainda não acabou.

     Enfim, Renato se sentiu aceito. Tais palavras bastaram para entender seus pais, ver que eram como ele, sonhadores. O trio retornou para os veículos em harmonia, mas os progenitores voltaram a ser sombrios no caminho.

     — E se você fizer isso de novo eu vou te dar uma surra que vai te virar do avesso.

     — Ainda precisamos conversar sobre suas notas.

***

     De volta à estrada, tudo parecia ter se resolvido, menos para alguém. Cássia, totalmente desconfortável, continuava se lamentando, refletindo se havia feito as escolhas certas desde o começo. Ela realmente amava Renato, mas não queria namorar com ele, ela queria ser livre, não depender de ninguém, e evitá-lo foi o único modo encontrado de conseguir o que desejava. Não imaginava que seguir suas vontades faria tudo desmoronar. Agora, com Renato no carro dos pais, ela pode extravasar ao som da música que tocava no último volume.

"Eu sempre te falei

Tudo o que passei

Pra quantos caras dei"

Litera

     Ainda na onda de flashbacks, Cássia relembra a vergonha que Renato passou gravando aquele vídeo.

"Não vi meu tempo passar

Quando dei por mim

Perdi o meu lugar"

     As conversas do começo de nossa história se repetem, acompanhadas de todo o desprezo possível.

"E eis que outro mundo

Te levou pra longe, longe

Fez da minha esperança

Uma dança que cansa girar"

     Uma cena clássica revista por uma nova perspectiva, a roda punk, agora com Cássia mostrando o ciúme que a fez começar aquela confusão.

"Virar o mundo deveras

Sentar sobre suas pernas

Sei que vai lembrar da trouxa aqui

Que te guardou dentro o que pôde"

     Cássia começa a chorar com as mãos no rosto, soltando gritos histéricos. Alex observa o show pelo retrovisor, e Agenor, que estava ao lado da garota, se afasta um pouco no banco. Olhando pela janela ele encontra uma loja de piscinas.

     — Dizem que a gente sabe que tá longe de casa quando ver aquilo na estrada — Encara Cássia — Você tá bem?

     — Eu quero morrer!

     — Calma, o destino arruma tudo.

     — Foda-se o destino.

***

     Roberto e Priscilla estão sentados numa mesa da praça de alimentação de um shopping saboreando um belo milkshake. Visivelmente entediada, a garota remexe o líquido pastoso com o canudo de plástico.

     — Sem dinheiro para cinema ou qualquer outra coisa divertida — Ela comenta — Você só me trouxe aqui pra quase tomar um banho de chuva.

     — Achei que fosse divertido a gente sair, só nós dois. Para... Sei lá, ver uns boys...

     — É, verdade. Parece que não faço nada de legal desde aquela treta com o Cara Otário. Parece que ele sempre tá seguindo a gente.

     — Pensei que seria bom você ver rostos novos — Roberto olha em volta e aponta para um rapaz de costas para eles — Tipo aquele ali.

     Ao olhar na direção indicada, Priscilla encontra o moço escolhido, que se vira para eles e revela sua identidade. Era exatamente o Cara Otário. O embuste sorri e acena, levanta e vai em direção a eles. Após se encararem, a dupla decide fugir, mas Roberto volta para resgatar seu milkshake.

***

     Os veículos param num posto para abastecer. A van vai primeiro, seguida do carro dos pais de Renato. Todos estão do lado de fora, menos Cássia, e todos estão secos e com as roupas trocadas.

     — Eu vou na van agora — Renato entra, encontrando Cássia lá dentro com a cara emburrada.

     Ao ver a movimentação, a garota decide sair dali, mas é impedida.

     — Espera, eu quero me desculpar por ter sido tão grosseiro.

     — Eu quem deveria me desculpar, quase estraguei tudo, de novo.

     — Cass, eu já entendi tudo. O que tínhamos acabou.

     — Parece que o jogo virou, não é mesmo? Eu só queria que soubesse o quanto eu gosto de você, nunca soube demonstrar porque você sempre foi meloso demais e isso me assusta.

     — Ainda somos amigos? — Renato desliza o dedo sobre o brinco no lóbulo de sua orelha.

     — Claro que sim, sempre seremos amigos — Mostra o anel disposto nos dedos de sua mão — E eu menti, nunca joguei nada seu fora.

     Cássia oferece um aperto de mãos, mas é surpreendida por um abraço. A surpresa é expressa com um arquear de suas sobrancelhas, mas logo é substituída pela retribuição.

     Enquanto isso, Agenor decide alertar Alex sobre os próximos passos do seu plano.

     — Alex, é o seguinte, o destino não existe! Foi tudo combinado entre eu e meu webnamorado. O Renato não sabe de nada e acha que o destino vai intervir para ele se encontrar com a Priscilla. E para isso dar certo você tem que levar a gente nesse endereço.

     Agenor mostra a localização no celular e assente com dois joinhas antes de ir para a van. Alex revira os olhos quando é deixado sozinho.

     — Se eu soubesse que era assim eu nem vinha.

***

     De volta ao shopping, Priscilla e Roberto param de correr ofegantes devido ao sedentarismo precoce de uma juventude que não se esforça nem para beber água.

     — Amiga, acho que despistamos ele.

     — Finalmente achei vocês — O Cara Otário se aproxima sem ser visto — Até parece que estão me evitando.

     — Porque estamos mesmo te evitando! — Priscilla dispara sem rodeios.

     — Ué, pensei que fossemos amigos — A presença indesejada comenta com certa ignorância.

     — Éramos mais que amigos até que...

     — Você me trocou por aquele maconheiro fedido! — Seu tom de voz se torna autoritário.

     — O que!? Eu não troquei ninguém! — Priscilla se irrita — Você que foi um porco machista e acreditou que poderia me forçar a ficar contigo depois de estragar nosso relacionamento! Você me traiu com o goleiro do time de futebol da escola e tem uma masculinidade tão frágil que nem consegue assumir isso, nem seu erro nem sua orientação sexual. Você é um lixo reprimido, mimado e extremamente cafona!

     Roberto assiste a briga tomando seu milkshake, atento.

     — Olha garota! — Cara Otário segura Priscilla pelo braço — Você nunca parou para pensar no que eu passei ultimamente! O tempo que sofri vendo você sozinha por aí! Tudo que fiz foi para te proteger e é assim que você me agradece!? Sem nenhum pingo de empatia e consideração! — Ele aperta o braço da garota com brutalidade, um agarrão que em breve deixaria marcas — Melhor você voltar comigo agora e acabar com essa palhaçada ou eu...

     — Ou o que? Vai me bater na frente de todo mundo? — Priscilla o desafia — Os seguranças vão adorar ver isso, e olha bem pra onde tá o meu joelho.

     Um movimento de câmera foca o enquadramento em plongée, revelando o joelho de Priscilla encaixado entre as pernas de seu agressor.

     — Se tentar qualquer coisa você nunca mais vai poder usar essa minhoca molenga e frágil que você chama de pênis, mas que nem uma ereção decente você consegue ter! — Priscilla se solta com um movimento brusco.

     — Tem razão, não posso bater em você. Mas posso bater nele.

     Cara Otário segura Roberto pela gola do moletom que usava e desfere um soco potente em seu rosto, derrubando o milkshake, e a própria vítima, sobre o piso liso do shopping.

     — Beto! — Priscilla se apressa para acudir o amigo.

     Roberto levanta com dificuldades, com uma das mãos sobre o olho atingido.

     — Você não deveria ter derrubado meu milkshake — Roberto surpreende o valentão ao retribuir o soco, mostrando-se muito mais forte do que aparentava ser — Vamos embora!

     Roberto e Priscilla viram as costas e caminham para a saída do local.

     — Durante esses meses eu sempre estive por perto! — O Cara Otário grita, ainda caído — Onde ele estava? Esse vagabundo nem lembra que você existe!

     — Cala a boca, vai tomar no cu!

     Indo rumo a saída, eles chegam no estacionamento, onde Priscilla senta-se num banco e apoia seus braços sobre os joelhos, um pouco curvada. Naquele momento ela estava com raiva, e lentamente sentia uma certa tristeza tomar conta de seu corpo. Efeitos de um encontro indesejado com o maior de todos os demônios, um relacionamento abusivo.

     — Você tá bem? O seu olho... — Ela comenta quando Roberta senta ao seu lado.

     — Tô sim, não foi nada.

     — Eu andei pensando — Priscilla está bem cabisbaixa — E se ele tiver razão? Já faz quase dois meses... Vai saber onde o Renato deve estar uma hora dessas! Certeza que ele já deve ter outra!

     — Amiga, não fica assim. Tenho certeza que, de onde ele estiver, ele estará pensando em você.

     — Já passou tanto tempo e somos tão diferentes... — Ao fundo, a van entra no estacionamento, e Renato logo reconhece Priscilla ao longe — Eu só queria que ele estivesse aqui agora...

     — Priscilla! — O grito chama a atenção da garota, Renato vinha correndo em sua direção. Enfim, ela começa a se sentir feliz.

     O tema do casal começa a tocar.

"Me diz o que é o sossego

Que eu te mostro alguém

Afim de te acompanhar

E se o tempo for te levar

Eu sigo essa hora e pego carona

Para te acompanhar"

— Los Hermanos

     Priscilla levanta e corre também, o jovem par romântico de uma única noite reunido novamente. Ele conseguiu, a viagem cumpriu seu objetivo. Eles param um diante do outro.

     — Oi! — Ninguém sabia o que dizer.

     — Oi! — Eles se abraçam e começam a rir — Eu senti tanto a sua falta, como você conseguiu me achar? Não acredito que você veio até aqui!

     — Foi o destino!

     — Sim, o destino.

     Então, finalmente, eles se beijam, satisfazendo o desejo há muito alimentado. No auge do instrumental, o mundo começa a girar, girar, girar e girar. Nada mais importava, só eles dois, e aquela loucura tão precoce, mas que já podia ser chamado de amor.

     — É, ele conseguiu — Alex comenta de dentro da van para seus companheiros.

     — Viva! — Cássia estava desanimada — Posso ir embora agora?

     — Não.

     Todo mundo desce dos veículos e se aproxima dos amantes. Agenor aproveita para encontrar Roberto, o qual também sentia saudade.

     — Oi amor... — Algo chama sua atenção — Gente, o que aconteceu com o seu rosto?

     — Eu levei um soco na cara, normal, sempre acontece.

     — Irado...

     Renato e Priscilla terminam o beijo ao perceberem a presença dos outros.

     — Tenho que te apresentar pra todo mundo — Renato encara os outros — Esses são meus pais, Agenor, Alex e Cássia — Todo mundo acena.

     — E esse é o Roberto, ele foi comigo pra aquela festa.

     — Olha que coincidência, o seu amigo é webnamorado do meu amigo.

     Priscilla conversa com todos, animada, enquanto continua abraçada com Renato. Agora sim todos estavam felizes, menos um certo alguém. O Cara Otário observa tudo com ódio, as portas automáticas se fecham à sua frente de modo dramático.

***

     Todo mundo entra na casa de Priscilla, um casarão classudo. A anfitriã os recepciona como uma guia turística, enquanto os meninos enchem seus olhos encantados com as coisas chiques.

     — Gente, é aqui onde eu moro. Fiquem à vontade, meus pais vão chegar logo.

     — Olha que macabro, certeza que nessa casa aparece assombração a noite!

     — Ei man, fala baixo!

     Renato tropeça no tapete e cai, ainda no chão começa a rir tanto que sua barriga dói e uma crise de soluços começa.

     — Mas é um desastre de pessoa mesmo — Cássia quase pisa nele enquanto anda — Já chega na casa dos outros deixando a sua marca.

     Mais tarde, os pais da garota chegam e todos os convidados se reúnem num divertido jantar. Ao final da refeição, Priscilla anuncia.

     — Pai, mãe, todo mundo, o jantar estava ótimo, mas agora está na hora da gente se retirar. Vem, Renato!

     O Cara Otário invade a casa de modo abrupto trazendo uma arma em mãos. Ele está tenso, seu corpo inteiro treme. Quase todos os presentes se levantam, mas o sentimento de pavor é mútuo, fazendo eles se encararem em busca de alguma explicação.

     — Todo mundo quieto senão leva chumbo! — O estúpido metido a perigoso mantém a postura firme mesmo com a voz falhando, mas continua sendo mais ridículo do que ameaçador.

     Ao fim do minuto de silêncio decorrente do susto, as pessoas fazem o contrário do ordenado, gritam e dançam de modo aleatório.

     Fade out. Tela escura.

     Sons de tiro.

***

     A fita cassete do destino rebobina as possibilidades.

***

     Novamente...

     O Cara Otário invade a casa de modo abrupto trazendo uma arma em mãos. Ele está tenso, seu corpo inteiro treme. Quase todos os presentes se levantam, mas o sentimento de pavor é mútuo, fazendo eles se encararem em busca de alguma explicação.

     — Todo mundo quieto senão leva chumbo! — O estúpido metido a perigoso mantém a postura firme mesmo com a voz falhando, mas continua sendo mais ridículo do que ameaçador.

     — Não tão rápido! — Ainda sentado, Alex tira um revólver calibre 38 das calças e aponta para o penetra indesejado.

     — Caralho mano! Você tem uma arma!? — Agenor fica bem surpreso.

     — Sim ué, vocês não? — Alex encosta seu corpo na cadeira e apoia os pés na mesa de jantar, ainda com a arma apontada e a postura relaxada. Em seguida, ele arruma os fios da peruca que caiam sobre seu rosto.

     Todo mundo começa a falar ao mesmo tempo criando um quebra-cabeça muito confuso que quem começou ele vai ter que terminar. Isso só deixa o Cara Otário ainda mais nervoso.

     — Porra! Cala a boca todo mundo! — Berra.

     — Ah, me poupe! — Cássia debocha.

     — Eu conheço você... — O intruso a encara — A menina que me deu um soco na cara na roda punk da festa.

     Renato e Priscilla também a encaram, curiosos.

     — O que foi? Ele mereceu.

     Novamente, o Cara Otário ameaça atirar, agora arrancando alguns gritos. Priscilla caminha cautelosa até perto dele.

     — Cara, relaxa, se acalma e vai dar tudo certo.

     — Eu como corajoso protagonista desse filme vou resolver isso — Renato se vangloria ao se pôr na frente da sua amada, mas logo é empurrado para trás.

     — Eu posso muito bem me defender sozinha.

     Priscilla se torna o alvo principal da arma do Cara Otário enquanto se aproxima novamente, agora sim de modo verdadeiramente amedrontador. Ela agarra seu braço e o força para baixo enquanto desfere uma joelhada certeira nos testículos. Assim, o intrometido solta a arma e é empurrado a socos até a porta de entrada, o golpe derradeiro o derruba sentado na rua. Por fim, Priscilla joga a arma na cara do Otário, ainda sem perceber que não passava de um simulacro.

     — Não volte mais aqui! — Ela tranca a porta.

     De volta a sala de jantar, a coragem da menina é aplaudida. Renato finge um desmaio e se joga para trás, Agenor e Cássia têm que correr para segurá-lo.

     — Minha heroína...

     — Caralho, vocês viram a marra dessa mina? — Alex guarda a arma e encara os pais de Renato — Parece o Popó.

     — Falou o Maguila! — Cássia rebate.

     — Agora sim, vamos Renato — Priscilla pega na mão dele e caminha para o quarto.

     — Ei mocinha! Não faça nada que eu não faria! — O pai de Priscilla a alerta em meio a uma risada contagiante acompanhada de sua esposa.

     E no meio de toda essa bagunça, Raul e Paula sentem um pouco de vergonha alheia.

***

     Mais tarde, exausto pela longa viagem e por ter que aguentar as loucuras de seus companheiros sozinho, Alex se joga na cama do quarto de hóspedes e logo adormece num cochilo tão satisfatório que roncos foram invocados da profundeza de seu sistema respiratório deteriorado por anos cultivando o tenebroso hábito de fumar, no mínimo, seis cigarros por dia, um após cada refeição, por sua vez nem um pouco saudáveis.

     Ele dormia tão tranquilamente que não percebeu a entrada de Cássia em seu esconderijo e o rastejar da garota até próximo de si. Quando Alex é arrancado de seu tão merecido sono, a primeira coisa que vê são os olhos acusatórios de Cássia o encarando como um morcego demoníaco disposto a centímetros de seu rosto. Obviamente, um susto ocorreu.

     — Já sei de tudo, Alex! — Ela exclamou como quem revela um crime.

     A descobridora de segredos arrasta o acusado rumo ao local onde a van estava estacionada. Ela abre as portas traseiras revelando dezenas de caixas cheias com DVDs escondidos. Alex revira os olhos, sem saco para os julgamentos que viriam depois.

     — Então é assim que você se sustenta? — Eles se encaram — Vendendo DVDs piratas?

     — Eu posso explicar, Cass — Alex respira fundo, desejando profundamente ter um cigarro consigo para clarear suas ideias — Eu vendo esses DVDs com uns amigos. Um deles fez merda e a polícia apreendeu parte da mercadoria. Essa viagem veio em boa hora para sumir com o que sobrou e esperar a poeira baixar, por isso eu topei vir nessa merda. Foi o único jeito — Tudo mentira.

     — Então estamos fugindo da polícia? — Cássia o questiona — E a arma? Você só vende DVD ou tem droga aí no meio? Seu nome é mesmo Alex? Você realmente tem carta de motorista ou é falsificada igual todo o resto da sua vida.

     — Sim, eu tenho carta de trânsito, eu fiz todos os testes e todos os exames.

     — E passou honestamente ou pagou pra te passarem? — Ela debocha.

     — Isso não importa — Alex revira os olhos — E sobre drogas... Não... Quer dizer... Tem! Mas isso não importa também. A arma é minha mesmo e qualquer um tem arma hoje nesse país — Seu semblante se torna sério, agora chegou a sua hora de acusar — Pelo menos eu não parti os sentimentos de ninguém!

     Decepcionada, Cássia se prepara para ir embora, mas Alex a impede antes que alguém se arrependa de estar ali.

     — Espera.

     Ninguém diz nada, quando Cássia volta sua atenção para ele logo o puxa para um beijo ardente. Mais uma vez o DJ do destino entra em ação com o tema apropriado para aquela cena de ato sexual envolvida por um desejo avassalador que mais ninguém poderia saciar.

"Complicada e perfeitinha

Você me apareceu

Era tudo o que eu queria

Estrela da sorte

Quando a noite ela surgia

Meu bem você cresceu

Meu namoro é na folhinha...

Mulher de fases"

Raimundos

     Eles transaram ali mesmo, arrastando seus corpos um sobre o outro pelo gramado, indiferentes ao perigo de ocorrer um flagra, mas ninguém chegou para estragar a festa. Ao fim, os parceiros sexuais deitam na grama lado a lado, observando as estrelas.

     — Nunca mais vamos falar sobre isso! — Irritado, Alex levanta e junta suas roupas, indo embora.

     — Depois eu que sou de lua — Cássia comenta quebrando a quarta parede.

***

     Logo em seguida, nos interiores da casa supostamente assombrada, Priscilla vai até a cozinha beber água. Agora ela estava descontraída, usava uma camisa surrada do Nirvana e um shortinho de pijama, e por algum motivo estava descalça. A garota entra no cômodo, liga a luz e se dirige até a geladeira, abrindo a porta. Ao fechar o eletrodoméstico refrigerador, uma presença macabra se materializa ao seu lado.

     — Puta que pariu! — Priscilla se assusta ao perceber que Cássia havia chegado ali sorrateiramente. Essa noite havia sido reservada para assombrar os outros, mas Cássia estava ali com outras motivações — Que susto da porra, pensei que fosse o Cara Otário!

     — Ele entraria aqui de novo depois daquela surra? — Cássia ri.

     — É a cara dele entrar escondido na casa alheia, aquele falso hétero top asqueroso!

     — Então o gostosão da balada é na verdade do babado?

     — Você nem imagina.

     As garotas riem juntas, era impressionante a capacidade que Priscilla tinha de fazer as pessoas simpatizarem rápido com sua espontaneidade.

     — Preciso falar com você, apesar de não te conhecer.

     — Fica à vontade — Priscilla deposita a água num copo de vidro e oferece para Cássia, que recusa.

     — É sobre o Renato. Ele pode ser um pouco escroto às vezes, mas ainda é um amor de pessoa. Ele seria incapaz de te decepcionar, apesar de tudo — Cássia parecia nostálgica em suas palavras — Cuida bem dele.

     — Pode deixar — Priscilla sorri.

     — E foi até melhor ele ter te escolhido — Cássia se aproxima de Priscilla, elas ficam muito próximas, juntas até demais — Quem sabe se ele tivesse demorado um pouquinho só, eu quem estaria vindo te ver hoje — Agora as palavras saem de modo sedutor, incendiando a dupla com a chama sombria do desejo.

     — Jura... — Priscilla renega o desconforto, atraída pela possibilidade.

     — De qualquer forma, eu não vou atrapalhar vocês dois — Cássia se afasta, indo em direção a porta da cozinha, mas ainda se virando para os últimos avisos — Ele gosta que repare no cabelo dele, mas sempre vai tá horrível!

     — Tá bom — Priscilla ri — Ei, você deu mesmo um soco no Cara Otário?

     — Ele mereceu — Última risada, hora de se retirar.

***

     Na escuridão dos corredores, Priscilla caminha cautelosa em direção ao seu quarto, onde Renato a esperava.

"Meia noite no meu quarto

Ela vai surgir

Ouço passos na escada

Vejo a porta abrir"

Ritchie

     Renato está deitado na cama, onde Priscilla engatinha até chegar em cima dele. O garoto reencontra o conforto dos beijos lentos de sua amada.

     — Sua recompensa por ter chegado até aqui — As mãos de Priscilla deslizam pelos braços de Renato até ela perceber a seriedade em seu olhar — O que foi?

     — Não sei se eu quero fazer isso agora...

     — Mas por que?

     — Digamos que não foi muito legal quando eu e a Cass tentamos.

***

     Num antigo flashback do passado pouco distante, o velho casal se beija sentados na cama. Um clima gostoso e convidativo predomina até Renato colocar suas mãos onde não devia, recebendo um soco no rosto como resposta.

     — Que droga, cara! Não abre a minha roupa, eu tô sem sutiã! — Cássia grita após derrubar o indefeso Renato.

***

     — Ah, entendi...

     Renato senta na cama e começa a acariciar os cabelos macios e sedosos de Priscilla.

     — Mas olha, não fica chateada — Ele diz — Durante todo esse tempo, a única coisa que eu queria, além de uma Heineken bem gelada, era te ver. Olhar para você, e eu quero continuar te olhando por um bom tempo ainda.

     O casal atual volta a se beijar.

     — Quer saber — Renato conclui — Que se dane!

     — Então cala a boca e tira a roupa!

     Do lado de fora do quarto, Paula caminha até lá esperando ouvir os gritos do terror noturno de Renato ecoando pelos ambientes daquela casa chique. Porém, nada acontece naquela madrugada.

     Ela continua ali, escondida no escuro, onde tem a impressão de ver a silhueta de seu falecido filho espreitando na escuridão do corredor. O fantasma olha para ela, inicialmente a assustando, mas contemplando sua presença com um sorriso de perdão. Paula se emociona com a visão e corre até lá, mas nada encontra. Tão repentinamente quanto surgiu, a aparição de Max desaparece.

     — E pela primeira vez em muito tempo, Renato teve uma boa noite de sono — A voz de Max percorre a escuridão do quarto, onde Renato e Priscilla finalmente dormem juntos.

***

     No dia seguinte, os prodígios amorosos acordaram tão cedo que as corujas ainda cantavam no telhado enquanto as últimas estrelas desapareciam no abismo secreto da madrugada. Priscilla levou Renato para o seu lugar favorito, uma lagoa modesta nas proximidades de sua residência. Lá, eles sentaram na grama coberta de carvalho e ficaram jogando pedrinhas na água. Sapos tímidos cantarolavam sua orquestra de murmúrios.

     — Cara, não acredito que você fez tudo isso só pra me ver — Priscilla comenta — Você mora longe pra caralho!

     — Eu não acredito que você deu uma surra naquele otário.

     — Ele mereceu!

     Renato é atingido por um raio de esclarecimento, uma memória de dois dias atrás ressurgindo na sua mente debilitada que não conseguia lembrar nem a cor da cueca que estava usando naquele exato momento. Ele levanta com pressa.

     — Falta fazer outra coisa!

     Então, voltando para a casa da garota, todos são reunidos para brincar de Sete Pecados, um clássico jogo marcante da infância de muitos.

     A partida já começou bem. Quando Renato pergunta onde estaria a bola, Priscilla surge com ela aos fundos da tela, e a joga de longe para ele, conseguindo o atingir na nuca por acidente numa bela cena de vídeo cassetadas.

     Os times são divididos por faixa etária, ficando adultos contra crianças, e os anciãos logo surpreendem pelo vigor no qual correm e jogam, deixando todos os pirralhos no chinelo. Para variar, o pouco habilidoso Renato é o primeiro eliminado, que sai fazendo chifrinhos com as mãos enquanto é acusado de ser um pecador.

     O resto do jogo se resume a quedas, perseguições e risadas. Apesar de estarem no mesmo time, Renato acaba acertando Cássia, que irritada decide revidar e ambos saem correndo pelo jardim como um bando de malucos. O resultado é ainda mais óbvio, os adultos deram um baile nos mais novos, aproveitando um raro momento de voltar a ser criança, e mostrando que as crianças de hoje em dia são meros senhores em corpos juvenis, na qual todos acabam exaustos ao final.

     Apesar da humilhação, pelo menos eles se divertiram.

***

     Após a brincadeira, a hora da partida aproximava-se cada vez mais, e os viajantes retornavam aos seus dormitórios para os últimos preparativos.

     Após a grande jornada hétero, chegou a vez dos gays resolverem suas questões em aberto. Roberto e Agenor estão juntos num quarto, arrumando as malas. Eles tentam conversar, um de frente para o outro, mas o clima está pesado demais.

     — Então vai ser assim? Desde que chegaram você mal tem falado comigo! Você tem vergonha de mim? — O ruivo expõe suas indignações.

     — Não, claro que não — O outro permaneceu na defensiva.

     — Eu não consigo te entender! Na internet você tem umas ideias legais e na vida real parece que anda me evitando!

     — Esse negócio de evitar já deu merda — Agenor murmura consigo mesmo — Roberto, me desculpa. Eu sou assim, não tenho culpa. Eu não tenho coragem de mudar — Fica cabisbaixo — Pode ser difícil de demonstrar, mas eu gosto muito de você.

     — Mas você ainda esconde coisas de mim — Se encaram.

     — Escondo?

     — Esconde sim e quanto mais esconde mais fica claro que esconde — Roberto raciocina sobre o que acabou de falar — Anda logo! Diz!

     — Eu não digo — Faz uma pose engraçada.

     — Fala logo!

     — Ah, tá bom. Já que insiste tanto, eu falo — Agenor é tomado pela seriedade, ele respira fundo e solta a bomba. Uma informação secreta que poderia arruinar ali mesmo o seu relacionamento — Eu sou soropositivo. Eu sei que tem tratamentos e coisas e tudo e que dar pra ter uma vida "normal", mas eu tenho tanto medo de te passar, tenho medo das pessoas, de tudo. Eu vivo com medo. Não espero que entenda...

     — Mas, é que... Amor não é só sexo — Roberto responde de modo espirituoso —Companheirismo, ter alguém pra conversar quando tudo dá errado, e tudo vai dar errado. Olha pros nossos amigos e tudo o que aconteceu, a gente não merece viver algo assim?

     — Podemos lidar com isso?

     Roberto confirma balançando a cabeça.

     — A gente pode pelo menos se beijar?

     — Acho que sim.

     Agenor e Roberto se aproximam para o beijo, mas se afastam quando Alex entra no quarto, os deixando envergonhados.

     — Ei... — Alex percebe o que está acontecendo — Atrapalho?

     — Não, tá tudo bem — Agenor tenta esconder o constrangimento.

     — É só pra avisar que a gente já tá de saída — Alex vai embora.

     — Então, é hora de dar tchau.

     — Beleza, vamos arrumar as malas — Roberto pega uma mochila de cima da cama e coloca nas costas.

     — O que?

     — Isso mesmo, vou ficar um tempinho com vocês.

     — Mas e os seus pais?

     — Eles nem sentiriam a minha falta — Roberto encara Agenor pela última vez antes de sair do quarto — E Age, nunca foi sobre as pessoas. Sempre foi você.

***

     Em frente à casa de Priscilla, os veículos já estão prontos para a partida. Todo mundo já está pronto, menos Renato.

     Os pais estão no carro, Alex no banco da frente de sua van, o resto da gangue atrás. Renato anda tranquilamente até lá.

     — Já se despediu da garota? — Alex pergunta quando Renato senta ao seu lado.

     — Já sim, vamos embora.

     — Esperem! — Priscilla chega correndo com uma mochila nas costas — Você já veio até aqui, agora é a minha vez de ir até lá.

     O casal novamente se beija, os veículos vão embora rumo ao fim de tarde. No caminho, mais uma aparição. Renato pensa ter visto Max na beira da estrada deserta, algo que logo fica para trás igual todo o resto que não valia a pena continuar guardando. Dali pra frente só restaria a paz.

     Ninguém percebe os carros de polícia os seguindo, nem percebem o desastre que viria pela frente. Dos seis passageiros da van, dois deles não resistiram ao grave acidente que os aguardava quando o motorista acelerou mais do que devia.

"Espero que esteja em paz

E a gente segue como dá

(...)

A saudade que sinto no coração

Não cabe nesse mundo"

— Supercombo

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