Capítulo 9 - P.O.V Scafur
O sol havia acabado de acordar quando Carrie e Scafur chegaram à costa leste da cidade da Ilha dos Sussurros, para onde o porto, antes situado no vilarejo de Valentim, foi transferido. Era cinco da manhã, mas aquela área já estava bastante movimentada. Alguns, até, já estavam voltando do alto-mar com grandes peixes como robalo na carcaça de seus barcos e outros, com uma rede, tentavam a sorte lançando-a sobre o mar. E tiveram sorte. Um monte de peixes e camarões foram pegos naquela, o que parecia ser, primeira tentativa. Os pescadores fizeram uma festa danada, como se este tipo de coisa fosse algo raro de se acontecer e, até mesmo, gritavam aleluiados: O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã! Carrie não conseguiu identificar quem falara isso, mas era nítida a alegria nos rostos, que antes pareciam um tanto abatidos, daqueles pescadores. Deus não nos desampara nunca! – gritou outro pescador.
Scafur atracou o bote junto a um grande barco de nome S. S. Jones. Um barco que tinha como principal utilidade à pesca, mas que ultimamente tem sido usado principalmente para finalidades turísticas. Um homem negro de idade um tanto avançada, apesar da sua aparência robusta, saia da proa do barco, conversando com um garoto menor de idade que, quase imediatamente, depois da fala daquele homem de rosto severo, saiu desembestado. Tirando sua atenção do pequeno moço, seus olhos se inclinaram em direção ao mar, repousando sobre as cabeças de Scafur e Carrie.
— aberração! – saudou em cima do barco – até que fim resolveu sair daquele seu exílio – gargalhou, mas logo engasgou começando a tossir. – maldito pulmão! Já não é tão forte como na minha mocidade, mas que se ferre – disse aquele velho, puxando mais um trago de cigarro – todo mundo morre um dia.
— É verdade – disse Scafur meio tímido – mas também não é sábio adiantar a morte.
A risada daquele homem soava como um trovão.
— Senti saudades de seus sermões, garoto! – falou, encarando Carrie – Mas me diga. O que veio fazer aqui, Scafur?! Tenho quase certeza que não foi pra me ver. Por acaso vai se casar com esse docinho ai, é?! Estou até pensando em tentar a sorte naquele vilarejo amaldiçoado. Quem sabe não arrumo uma mulher bonita como ela por lá também. – gozou.
Carrie conseguiu ver os seios deformados da face de Scafur ruborizar.
— F-Fico lisonjeado por pensar que ela poderia ser minha esposa, seu Gary.
— E não é? – ironizou, pulando de seu barco ao passeio rente ao mar.
Scafur jogou a corda do bote para ele que, imediatamente, começou a puxar.
— Não, na verdade não. Vim trazer ela pro senhor Hallelujah.
A face severa daquele homem, de repente, pareceu se contrair ainda mais. O barco bateu na parede alta do passeio e, rapidamente, Gary ofereceu sua mão para que pudessem sair com mais facilidade do bote.
— Como imaginei. – começou o velho – você não ficou sabendo, não é?
Carrie observava as pessoas fora de suas casas, sussurrarem uma com as outras, num horário que o mais comum seria estarem dormindo.
— Sabendo do que, seu Gary?
— A igreja... Piedade – concatenava em sua mente a melhor maneira de dizer aquilo – sofreu um ataque, do que parecia ser, um exercito do Satanás. Todos estão bastante temerosos por aqui. – Gary observava os olhos assimétricos de Scafur se tornarem apreensivos. –Alguns fiéis, que estavam em um culto na hora do incidente, dizem ter vistos monstros gigantes! E o diabo encarnado!
— E a Ordem Santa?! – indagou Scafur descrente, levantando sua cabeça o máximo possível para enxergar a face de Gary, mas sua corcunda dificultava. – Os Cavaleiros Templários, onde estavam?!
— A única coisa que sabemos é que a grande maioria saiu numa excursão um dia antes do ataque.
Mesmo com seu rosto monstruoso, Scafur demonstrou, por dentro, ser meigo. Lágrimas escorriam pelo labirinto de sua face adornada de caroços revestidos de crostas duras, umedecendo os seus lábios secos.
— Hallelujah? – indagou Scafur sem esperança.
Gary balançou a cabeça em sinal de negativa.
— pelo que dizem, não sobreviverá.
O sol insidiava forte sua luz naquele dia, mas aos olhos de Scafur o dia se tornou negro. E essa escuridão tomou conta de seu espírito. Scaf, mesmo de olhos abertos, não enxergava o mundo material em que vivia, mas foi transportado, como que por um buraco negro, para muitos anos atrás.
— Toca pra mim! Toca pra mim! – exclamava um garoto, enquanto jogava uma pelota com seus amigos – Ah! Era pra mim rapaz! Tava fácil! – reclamou, quando o seu colega de time ao invés de tocar, tentou o chute. Observou aquela bola passar bem longe do gol. A bola parou nos pés de um garoto que assistia ao jogo – Toca ai, cara! – gritou de longe. O rapaz, com a bola aos pés, se agachou e pegou com as mãos para arremessar para eles, mas quando ia lançar, sentiu uma ardência em seu rosto, caindo no chão.
— Não toque no que não te pertence, aberração! Ninguém aqui te quer vivo! – dizia um homem com um porrete em sua mão. – Obra do cão! Sai daqui, agora!
O jovem Scaf, enquanto era tratado como lixo, observava a mãe do garoto, do outro lado, indagar se ele estava bem e se o "monstro" havia feito algo com ele. Ele que pediu –pensava Scaf – Eu só ia arremessar a bola para eles. Mas não expressou esse pensamento em voz alta. Sabia que naquela cidade, chamada de Ponte Azul, ele não tinha direito a nada, afinal, não tinha mãe nem pai, apesar de suspeitar daquela que teria o colocado no mundo. Scaf sabia que só o fato de existir já era um grande erro.
O dia foi passando e a tarde chegou. E como de costume, se esgueirando pelo escuro, para que ninguém o visse, Scafur foi a uma casa onde três crianças brincavam.
— Garotos! Preparei um lanche, venham comer! – ouviu Scaf, a mãe dizer para seus filhos, assim como ouviu seu estomago reclamar. Richard, Milena e Tom, meu irmão caçula. Lilian, minha mamãe – citava o nome de cada um de seus familiares com um aperto no coração, observando eles começarem a comer, felizes, o que sua mãe havia preparado. Por que me abandonaram? – indagava a si mesmo, sabendo que não obteria resposta, pois hoje, nesta manhã, havia tomado uma decisão. Uma decisão que deveriam ter feito por ele quando viram que o que havia nascido não era gente.
Lilian percebendo que ele os observava de longe, quase que na mesma da hora, correu até a janela e fechou com raiva. Isso só ratificou no coração de Scaf o que deveria ser feito. Com uma faca que ele havia roubado há semanas, ele se dirigiu para a entrada da cidade de clima seco. Observou pela última vez, sem saudosismo, aquele solo rachado, aquelas casas aglomeradas e saiu. Se fosse pra fazer algo teria que ser longe dali, para que não ficassem felizes, os moradores de Porta Azul, ao perceber que "a obra do Cão" havia ido embora. Scaf tinha certeza que, caso soubessem, diriam: Até que fim voltou pro lugar de onde nunca deveria ter saído, o inferno! – e ririam da sua morte.
Mas ao chegar longe o bastante de Ponte Azul pra fazer o que deveria ser feito, observou que alguém se aproximava ao longe. Algum viajante. – deduziu Scaf – Não é tão comum ter turistas por aqui – indagava consigo mesmo, adiando o que viera fazer porque era curioso. O homem era alto e louro, vestia uma beca branca e consigo carrega um alforje de couro e outro recipiente de couro que parecia ter água, pois o homem bebia constantemente.
— Meu bom garoto – chamou o homem – poderia dizer onde estou?
— Ponte Azul, senhor – respondeu Scaf, escondendo sua cabeça entre os ombros.
— Por que te escondes, meu rapaz? – disse, levando sua mão à cabeça de Scafur – Qual o seu nome?
— Scafur – respondeu, experimento algo que nunca sentiu na vida, carinho.
— Scafur? ... Scafur do quê? – insistia o homem. Scaf começava a ficar incomodado, nunca ouvira tanta pergunta em sua vida.
— Não tenho sobrenome, senhor.
— Todos têm sobrenome – retorquiu.
— Mas eu não tenho. – disse seco, não gostando de ser contestado.
— Todos têm, Scafur. Vá por mim, todos têm. – puxando o garoto para si, observou sua face, mas não se espantou, antes disso sorriu – Vamos! Apresente-me a cidade!
— O senhor perguntou o meu nome e não me disse o seu – disse Scaf, experimento o diálogo, também, pela primeira vez na vida.
— Claro, você não me perguntou – sorriu, mostrando aqueles dentes brancos e, em seus olhos, as rugas da felicidade. – Mas agora eu direi – disse em alto e bom som – Eu me chamo Paulo de Tarso Hallelujah. É um grande prazer te conhecer, Scafur Hallelujah!
Os olhos de Scafur começaram a brilhar, pois suas lágrimas há muito guardadas começaram a escorrer sobre sua face.
— Nunca tive um sobrenome... – escapou por seus lábios.
— Agora tem – disse, tomando o pequeno Scafur entre seus braços.
— Nunca tive sobrenome porque nunca tive família! – guinchava agarrado entre os braços fortes de Hallelujah. Parecia que a dor condensada em seu coração durante anos se esvaia naquele momento tão exótico em sua vida. Afinal, o amor, para ele, era exótico.
— Agora tem – voltou a falar Paulo, retribuindo aquele abraço tão caloroso – e sua família é muito grande.
Quando Scafur deu por si, quase que saindo de um transe, já estava num local diferente do que antes estava. Havia andado uma boa distância no total piloto automático. Observava aquele grande arco apoiado em dois pilares com anjos entalhados nele.
— A Estrada dos Santos – remoeu Scaf – Muitos homens de fé já passaram por aqui.
— Até que fim falou alguma coisa – bradou Gary – passou a estrada toda quieto. Tava até preocupado já.
— Estou bem. - disse Scaf.
Carrie fitava o rosto de Scafur e percebeu que, de alguma maneira, ele estava feliz.
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