❝ ISOLAR ❞
[Olá, o texto contido nesta pétala da obra faz parte de um projeto chamado "Texto, voz e movimento", inspirado no momento inesperado e difícil que a quarentena/pandemia está representando para todos nós, portanto, você pode ler acompanhando o vídeo abaixo (que é a junção desses três componentes artísticos supracitados) ou como preferir. Agradeço o apoio e o carinho, boa experiência! 🌻 Saiba mais a respeito do projeto no meu Instagram: meninadojardim 🌻]
https://youtu.be/PsriTBFlyAc
Está escuro, mesmo se eu abrir os olhos, nada consigo enxergar.
É estranho pensar que, antes da pandemia atingir o mundo e a época em que eu vivo, ela já estava alastrando-se dentro de mim, dentro do coração do mundo pelo qual eu costumava prezar. Os meus objetivos eram tão amplos e tão cheios de possibilidades no horizonte que, mesmo com a procrastinação e o desânimo, eu conseguia vê-los em desenvolvimento, em sutis passos, um de cada vez, todos sob a minha concepção. Agora, é como se tudo estivesse parado em uma pausa imprevista e impiedosa, literal e dolorosamente. Ou como se eu estivesse em uma queda constante, sem sentido algum. Há chances reais de o meu cronograma estar quebrado, forçado.
O tempo é abundante, mas o psicológico é escasso.
Diante da grandeza do descaso com o próximo, é perceptível o descuido comigo mesma. Só por notar que ser um exemplo de altruísmo nunca foi tão fácil e tão desperdiçado, o meu interior sente as raízes do individualismo crescerem e esmagarem o meu idealismo, a minha esperança de que havia uma chance de salvarmos uns aos outros. Basta, ou bastava, apenas ficarmos em casa, cada um em seu respectivo lar e, mesmo assim, o êxito com essa causa não veio, nem tem hora prevista para vir. Tudo é uma grande festa de ilusão até que se prove o contrário, ou até que alguém querido morra ao seu lado. Não é real, até atingir a sua família. Por certo, não podemos dar as mãos, temos de evitar o contato social, "temos de nos isolar, mas podemos nos apoiar de inimagináveis formas", é o que dizem. Podemos nos reinventar.
Há mais em nós do que já fomos capazes de desvendar, até hoje.
Eu nunca fui a pessoa mais confiante ou a mais determinada de todas. Na verdade, possuo tantas falhas que nem ao menos consigo entender como elas ainda não me impossibilitaram de acordar a cada novo dia. Porém, a estranheza das impossibilidades me assusta, faz-me ser mais covarde do que eu imaginava ser possível, assim como "presa fácil". Eu sou o rato de laboratório que não tem instinto de sobrevivência, a borboleta que teme sair do casulo e o morcego que nega sua natureza polinizadora, tudo porque não consegue sair da caverna, sair do escuro.
Animais que amam a luz do dia, mas são noturnos.
"Somos seres adaptáveis", dizem também. Em um momento, estávamos correndo de um lado para o outro e, em outro, de repente, isolados, vendo a interrupção de nossas atividades humanas. Separados, juntos. Fica longe, fica perto. Difícil correr, difícil ficar parado. Queremos sair e queremos ficar deitados, trancados. Penso até que brigar com o meu psicológico é a verdade inevitável, porque voltar a botar a cara na rua vai me custar a coragem que perdi nessa batalha tão crua. Ou devo denominar como guerra? Estou sendo forçada a me autoconhecer, a desfrutar da minha própria companhia como nunca havia feito e, de modo incomum, desbravar partes minhas que eu nem ao menos queria enfrentar. Eu não estava (e não estou) pronta.
Encarar a si mesmo é um desafio e, ao mesmo tempo, uma dádiva.
Não estou chorando porque, assim como minhas palavras, as lágrimas também não saem, elas parecem tão perdidas quanto eu, quanto minhas ideias. Se elas vierem à tona, estarei admitindo para mim mesma de que tudo isso é real, de que está acontecendo. Minha nuca está sendo esmagada pela pressão de que devo ser produtiva em uma época em que, nem se eu quisesse, conseguiria ser positiva. Cada letra que consigo transportar para um texto é como uma palavra que devo gravar em meu cérebro antes de perder os movimentos das mãos, quase como se eu não pudesse proferi-las no futuro. Ah, o futuro, como soa fantasiosa em minha língua, tal falácia. Na verdade, é uma ilusão esperar pelo próximo ano ou pela próxima folga para realizar aquilo que eu desejo. É irrelevante pensar em algo tão incerto quanto o amanhã e, mesmo assim, continuo pensando, pensando e pensando.
Todos os astros brilham, mesmo com luz emprestada.
O sol nasce e morre do outro lado da minha janela enferrujada e eu só consigo desejar que ele se ponha dentro de mim, para sempre, unicamente para parar de sentir que eu não estou vivendo, que tudo e todos os segundos estão escorrendo pelos meus dedos como um vislumbre de uma vida que eu jamais terei. Sentir, uma a uma, minhas pétalas enfeitando o chão dos meus sonhos, parece uma piada de mau gosto. Não sou capaz de me recordar, com exatidão, quando a sensação de ser prisioneira das circunstâncias me atingiu, mas sou capaz de citar, uma a uma, as questões que me trouxeram ao chão frio.
A humanidade está morta, a partir do momento em que pessoas tornam-se apenas números em estatísticas.
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Dia xx da quarentena: meu interior sonha com a liberdade, com a época em que eu podia optar por me isolar.
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