3 • | ever since I was a child
A viagem até Londres é turbulenta. Durante o caminho somos pegos por um temporal e o maquinista resolve parar e nos fazer esperar numa das estações em algum vilarejo não muito distante de Holmes Chapel. Eu nem sequer pisco enquanto estamos todos sentados debaixo da pequena cobertura com a fúria dos deuses sob nossas cabeças, então, assim que estamos de volta ao trem eu praticamente desmaio. Oscilo entre acordar e dormir com os fracos raios de sol que batem em meu rosto, me incomodando. Começo a deslizar pelo banco até estar todo encolhido, usando minha mala como travesseiro e um casaco grosso como cobertor.
— Menino, ei, menino. — Sinto alguém chacoalhar meu ombro e resmungo contrariado, virando para o outro lado — Menino, acorde. — A pessoa insiste, me balançando com mais força.
— Que é? — Rosno ainda com a cabeça debaixo do casaco e os olhos fechados.
— Se o seu destino for Londres, sugiro que saia agora. O trem já vai fazer o caminho de volta.
Levanto num átimo, encontrando uma senhora rechonchuda de cabelos esbranquiçados fazendo crochê.
— Deus, eu dormi demais. — Concluo ao perceber que de fato estou na estação de Londres. Recolho minhas coisas, que não são muitas e lhe estendo a mão — Obrigado, senhora, salvou a minha vida.
Ela sorri pequeno, aceitando minha mão e apertando.
— Não por isso, meu jovem e se me permite sugiro que dê um jeito nesse cabelo. — Indica o que eu imagino ser o ninho de vespas acima da minha cabeça.
— Eu irei.
Assim eu parto do trem, passando pelo amontoado de pessoas na gigantesca estação. Eles andam de um lado para o outro e imagino que apenas aqui há mais pessoas do que em toda a Holmes Chapel. Consigo um táxi logo na saída e entrego o endereço que Charlotte havia me passado, nós conversamos uma única vez durante um telefonema. Coisa rápida, mas ela me pareceu uma boa pessoa. Encosto a cabeça no banco e quando dou por mim o motorista está tentando me acordar, na última semana eu tenho estado terrivelmente sonolento. Poderia ser efeito da gravidez, talvez.
Pego minha mala no bagageiro e acredito que ambos perdemos a fala ao avistar a grande casa vitoriana, com no mínimo três andares e um jardim imenso com árvores altas e frutíferas por detrás de imponentes portões negros de ferro. Um rapaz simpático de olhos cor de avelã libera a minha entrada e me acompanha pelo extenso caminho, seu nome é Liam Payne e quase lhe dou um beijo quando ele se oferece para levar minhas malas já que eu não aguento nem o meu peso, imagine um extra.
— Então, Harold...
— Não, é apenas Harry, senhor. — Peço lhe dando um sorriso, animado até demais, mas não é como se eu pudesse evitar a minha empolgação quando estou próximo de um homem atraente.
Ele também sorri, apertando os olhinhos e é tão ridiculamente fofo que fico tentado a arrastá-lo para trás de uma das moitas.
— Certo, Harry e por favor não me chame de senhor, me faz sentir um velho. — Pediu com gentileza, o vento soprando seu topete castanho para o lado e o fazendo cair por sua testa. O terno preto, bem cortado e ajustado ao seu corpo não me deixa ver nada do que eu quero, mas imagino o quão forte e firme ele deve ser por baixo de todo aquele pano — Engraçado que você parece um garotinho, tem mesmo vinte anos?
Não, eu menti e falsifiquei alguns documentos para poder viajar sem meus pais e ter um emprego que tinha como exigência ser maior de idade. Mas não precisava dizer isso a ele.
— Não envelhecer é uma coisa boa. — Digo, dando de ombros — Então, Liam, trabalha aqui há muito tempo?
— Oh, sim. Fui contratado há treze anos quando o Sr. Tomlinson perdeu a visão. Ele não poderia mais fazer muitas coisas que gostava, como dirigir, cavalgar, etc... Além disso, naquela época ele também não andava, nem falava. Foi um milagre ele ter recuperado os movimentos e a fala, esperamos ansiosamente que ele voltasse a ver também. O que não aconteceu até hoje. Bem, o Sr. Tomlinson se vira muito bem sozinho, mas ele ainda é cego e o nosso dever é ajudar naquilo que for preciso.
— Isso quer dizer que você é um faz tudo?
Liam gargalha alto e assente.
— Acho que sim. — Paramos diante da grande porta de entrada feita de carvalho com desenhos de rosas entalhadas, deslizo o dedo por elas — A Clare quem as fez. Ela é muito habilidosa. A conhecerá mais tarde, a Srta. Tomlinson pediu que você a esperasse aqui.
— Certo.
Liam entra na casa, carregando minha bagagem e eu permaneço na entrada, esperando por Charlotte. Entretanto minha impaciência é mais forte do que eu e não demora para que esteja desbravando seu jardim, andando por toda a área verde até que o som de tiros chama a minha atenção. Na parte de trás da casa eu encontro um homem, ele está de costas para mim. Não é muito alto, mas sua postura é invejável, ombros e coluna eretas, pernas separadas e os braços levantados na altura do tórax. Ele veste um fino terno cinza que valoriza todas as curvas de seu corpo, que são em demasiado para um homem, ele tem coxas fortes, bíceps ressaltados pela postura dos braços e uma bunda escandalosamente grande e empinada. Mordo os lábios me aproximando, ele dispara contra um alvo de madeira com círculos vermelhos desenhados nele. Posso dizer que sua mira é impressionante pela quantidade de furos no círculo central. Caminho, até estar quase ao lado do alvo, observando a forma como seus cabelos caramelos voam em longos fios sobre seu rosto, coberto por uma barba castanha, ele tem lábios finos firmemente pressionados e olhos tão azuis quanto o céu de verão.
Estou embasbacado com sua beleza quando ele torna a empunhar a pistola, mas não mira no alvo e sim em mim.
— Ei, o que pensa que está fazendo? — Indago, o olhando descrente por ele ter ousado apontar aquilo pra mim.
— Oh, então, você está mesmo aí. — É a primeira vez que escuto sua voz aguda e melodiosa.
— Sim, estou. Não me viu aqui?
— Péssima escolha de palavras, Harry.
E é quando a ficha cai que percebo que esse não é um homem qualquer, mas o tal Louis Tomlinson. O homem cego de quem irei cuidar, mas como podem permitir que um homem cego empunhe uma pistola, poderia acontecer uma tragédia.
— Que silêncio! O gato comeu sua língua? Isso é mal, não vejo como fazer dar certo entre um cego e um mudo. — Ele zomba, rindo de sua própria piada de mal gosto.
Respiro fundo, tentando me recompor.
— Não deveria estar com uma arma.
— Eu tenho porte. — Rebateu com a sombra de um sorriso presunçoso em seus lábios.
— Mesmo assim. Você não pode por ser...
— Não posso o quê? — Sua voz engrossa, abandonando o tom divertido e sei que estou falando demais.
— Nada não.
— Fale.
— Não.
— Eu mandei você completar a porra da frase, Harry Styles. — Louis volta a apontar sua pistola em minha direção. As narinas dilatadas e veias grossas tomando suas mãos, o maxilar trincado me dizem que ele tem um temperamento forte e se irrita com muita, muita facilidade.
— Não. — Falo num fio de voz.
— Diga, caralho. — Ele grita, ainda mirando. Se eu não o tivesse visto atirar antes não teria receio algum.
— Louis, por favor...
— Louis? Quem diabos você pensa que é pra me chamar de Louis? — Ele ruge, apontando a pistola para baixo e atirando perto demais dos meus pés. Dou um pulo assustado e ele dá uma risada sinistra — Oh, que medroso. Algo me diz que você é alto, estou certo, Harry? — Não respondo ainda em choque e ele perde a paciência — Responde!
— Sim, sim, dizem que sou alto pra minha idade. — Na hora dou um tapa na minha testa, eu minto minha idade e solto uma dessas. Eu sou tão burro.
Louis sorri de lado, os cabelos lisos se esparramando para todo lado com o vento cada vez mais forte.
— Diria que se parece com... Um bebê girafa?
— O quê? Não!
— Eu quero te imaginar como um bebê girafa, está dizendo que não posso fazer isso?
— Não, eu quero dizer que...
— Eu estava começando a gostar de você, Harry. Imaginando um bebê girafa, todo meigo e desajeitado. Mas você atrapalhou meus sonhos e eu voltei a querer atirar em você. — Bufou, erguendo aquela porcaria de arma. Me arrisquei a sair do lugar e eu não sei como, aquela porra cega, continuava a me seguir como se pudesse me ver — Eu posso ouvir os seus pezinhos esmagando o meu gramado. Não gosto disso, pago uma fortuna ao jardineiro e você está arruinando tudo.
— D-desculpe. — Peço, cada vez mais impaciente com sua arma apontada para mim — Quer baixar essa merda?
— Uh, a girafinha tem sangue quente. Gostei, mas eu só abaixarei quando disser o que quero ouvir.
— Eu não completarei a frase.
— Então eu vou atirar em você.
— Você é louco!
— E você é covarde! Agora complete a frase e faça de mim um homem feliz.
— Eu já disse que não. — Grito impaciente e Louis grunhe, contrariado, e sem mais nem menos puxa o gatilho. Instintivamente abraço minha barriga, numa tentativa tola de proteger o bebê que ainda nem se formou dentro de mim. O barulho do tiro me deixa tão atordoado que eu grito, quase tão alto, quanto a gargalhada maligna de Tomlinson. Então me dou conta de que não morri. Abro os olhos vendo a árvore atrás da minha cabeça com um profundo furo de bala.
— Girafinha, eu te matei?
Olho da árvore pra ele e nunca me senti tão enraivecido em toda a minha vida.
— Seu... Seu desgraçado! Seu cego maldito, você quase me matou! — Berro, cagando para os sentimentos dele. Eu quero que se foda.
— Nossa, quantas palavras rudes.
— Vai se foder, imbecil. — Estou completamente fora de controle, fincando meus pés naquela porcaria de gramado caro para não ir até ele e encher a sua cara de socos — Você queria que eu completasse a frase, pois aqui está, seu cego miserável. Cego, cego, cego, cego...
Ele me escuta imóvel, quase como se não tivesse me ouvido. Por outro lado, as outras pessoas da casa, escutam tão bem que aparecem na porta dos fundos. Primeiro duas moças, seguidas de Liam e outra moça com cabelos louros e uma expressão horrorizada, como se aquelas palavras fossem dirigidas a ela ao invés do escroto a minha frente.
— O que significa isso? — A garota que eu presumo ser Charlotte pergunta, se aproximando.
— E-ele atirou em mim. — Não posso me ver, mas sei que disse isso com a voz chorosa, olhos marejados e um biquinho manhoso. Talvez minha imaginação e a de Louis estão em sincronia por que seu lábio se repuxa em escárnio.
— De novo não. — Charlotte lamenta. Arrancando a arma da mão do irmão e entregando a Liam.
De novo? Ele faz isso com frequência?
— Só estava brincando com a minha nova babá. Eu até que fui com a cara da girafinha.
— É Harry. Harry Styles, nada de apelidinhos pejorativos, Louis.
— Harry Styles é muito sem graça. — Ele choraminga, mais parecido com uma criancinha do que com alguém que estava prestes a me matar um minuto atrás.
— Louis. Por favor, irmão, seja educado e vá cumprimentá-lo. — A moça pede e eu me preparo para caminhar até ele, contudo ela ergue uma mão dizendo que eu devo permanecer no mesmo lugar.
Parece crueldade querer que ele caminhe até mim, apesar de saber exatamente onde eu estava quando queria me matar. Louis anui e se vira em minha direção, ele toma alguns segundos para se orientar e começa a caminhar, com passos um pouco vacilantes pela grama fofa, as mãos abertas a procura de barreiras. O observo caminhar até mim e é tão estranho que aqueles dois vividos olhos azuis não vejam nada, que o sol acima de nós não é capaz de romper a escuridão na qual ele está preso, mas mesmo sem me ver ele se aproxima.
O lugar onde ele atirou abriu um pequeno buraco no chão que fez a terra ceder e deixar o terreno desregular. Liam e Charlotte não sabem disso e Louis não pode ver. Assim como imaginava quando um de seus passos pequenos tocou aquela área ele afundou e por não estar esperando se assustou e perdeu o equilíbrio, antes que Louis pudesse cair eu estava ali por ele, agarrando seus cotovelos e ele aos meus para se manter em pé.
— Louis, você está bem? — Charlotte grita com a mão no peito e o rosto pálido. Vejo que não sou o único com uma família superprotetora.
— Sim, Lottie, menos drama por favor. Eu sou apenas cego, não feito de papel. — Louis retruca, olhando por cima do ombro como se realmente enxergasse. Ele nem sempre foi cego, provavelmente faz isso por costume e volta o rosto em minha direção, ele não sabe bem para onde olhar, por mais belo que o azul seja ele é opaco e desfocado. Sou invisível para ele — A girafinha ao menos é ágil.
— Vai continuar zombando de mim?
— Zombando? Não, estou sendo carinhoso. — De perto posso ver o quão brilhante seu sorriso é, com algum tipo de humor que eu não sou capaz de compreender. Parece achar graça em algo o tempo todo — As pessoas não são carinhosas com você, Harry?
— Essa pergunta faz parte da entrevista?
— Não, não, criança, você não precisa de entrevista, já mostrou seu valor. Estou orgulhoso de você. — Sua mão abandonou meu cotovelo para bater em meu ombro. O toque que deveria ser breve se arrastou por meu pescoço e a ponta de seus dedos roçaram por meu maxilar. Me afastei por instinto e ele riu — Acalme-se, não estou te molestando, é assim que eu vejo as pessoas. Como você é, Harry?
— Normal.
— Sim, eu imagino que sim. Mas me dê algum detalhe para que eu possa ter noção de como é a sua cara.
Olho por cima de seu ombro e sua irmã está sorrindo com o polegar apontando para cima.
— Eu tenho a pele clara. — Louis bufou não achando a informação útil — An, vejamos, meus olhos são verdes e grandes. — Ele sorri sem mostrar os dentes e passa a mão pelos cabelos, reparo em uma numeração em seus dedos e alguns desenhos se sobressaindo por debaixo do punho da camisa — Cabelos castanhos e cacheados, até demais.
— Oh, cachinhos. — Diz, encantado, subindo a mão até estar enrolando os dedos nos cachos próximos a minha orelha — Doces cachos de chocolate.
Por algum motivo ouvir aquilo me fez corar.
— E... Eu tenho covinhas! — Soou mais animado do que pretendia e ele desce os dedos até minha bochecha, onde eu consequentemente formo uma covinha ao rir.
— Você me parece belo, Harry. — A voz rouca e baixa ecoa no pequeno espaço entre nós — Sei que pode parecer estranho, mas será que você pode me dizer como é a sua boca?
— M-minha boca? — Sussurro alarmado. Louis me parece tão atrevido para um primeiro encontro, nada dado as etiquetas de praxe em Holmes Chapel.
— Eu não pretendo fantasiar com você chupando o meu pau durante as noites solitárias. — Arregalo os olhos e meu queixo cai — Imagino grandes olhos verdes espantados agora. Estou certo? Sei que soa fora do convencional, garoto, mas quando eu podia ver tendia a prestar atenção na boca das pessoas, era uma mania estranha, que até hoje eu tento preservar, já fiz o mesmo pedido estranho a todos aqui. Bem, exceto a minha irmã. Eu me recordo da dela, mas você, Harry, meus olhos nunca verão e eu gostaria de poder pintar seu retrato o mais fiel possível.
O escuto atentamente, sentindo que a mão em minha cabeça criou uma espécie de carinho em meu couro cabeludo. Louis, também tendo consciência disso, a afasta. Os olhos vagando para longe do meu rosto e meus dedos formigam com vontade de segurar aquele rosto tão belo entre minhas mãos e alinhá-lo ao meu. Fazer com que ele me olhe diretamente, mesmo que não possa me ver, porque eu quero vê-lo.
— Dizem que tenho lábios de menina.— Murmuro, abaixando os olhos para o lenço no bolso do paletó de Louis que combina com meu suéter azul.
— Lábios de menina? — Arqueia a sobrancelha.
— É. — Sussurro tão baixinho que ele precisa aproximar o rosto, sem muita noção de espaço rela por um instante a bochecha na minha boca — Vermelhos, cheios e molhados.
Ele fecha os olhos e imagino que tenha levado isso como uma espécie de provocação, o que não era a minha intenção. Normalmente é o que meus lábios são, eu nunca precisei me descrever pra ninguém, é estranho e desconfortável. Louis pode acabar suspeitando que sou algum homossexual jogando charme pra cima dele. A última parte seria uma grande mentira.
— Louis? — Chamo quando seu silêncio começa a me incomodar.
Louis abre os olhos, levanta uma das mãos e beija um dos anéis em seu dedo. Se assemelha a uma aliança. Ele é casado?
— Liam, Liam, desejo repousar um pouco. Tive uma péssima noite de sono. — É o que ele diz me ignorando. Liam se aproxima e oferece o braço para Louis que o agarra, nesta caminhada sua perna esquerda é um pouco mais lenta e ele a tem de arrastar algumas vezes.
Os dois entram na casa e Charlotte observa tudo, zelando incessantemente pelo bem estar do irmão. Quando eles desaparecem ela se volta para mim, caminho até ela com as mãos cruzadas em frente ao corpo. Constrangido com toda a sequência de acontecimentos.
— Srta. Tomlinson, eu sinto muito por ter dito aquelas coisas ao seu irmão.
Os olhos de Charlotte são da mesma cor de seu irmão, mas completamente diferentes. Os dela tem um brilho incandescente que se apagou dos dele.
— Não, Harry, não se desculpe. Eu me atrapalhei em minhas tarefas e demorei em recebê-lo. Sei que ele fez por merecer, ele tem algum tipo de fixação com a palavra cego, o irrita e o deixa eufórico. Um mistério para os médicos. Bem, se não estiver muito cansado da viagem gostaria de poder conversar um pouco.
— Claro. — Digo, deixando que ela me guie para dentro da casa. Descubro que a porta dos fundos na verdade se trata de uma das saídas da cozinha. Ele deve ser maior do que a minha casa, com certeza, com suas paredes e chão impecáveis e tão brancos quanto neve, armários, panelas, talheres e mantimentos bem organizados e um cheiro delicioso de bolo impregna o ar.
As moças que antes nos observavam agora estavam obedientemente uma ao lado da outra com as mãos atrás das costas e um sorrisinho simpático no rosto. Charlotte parou diante delas, me levando a fazer o mesmo.
— Está é Clare Uchima. — Definitivamente Clare era o tipo de pessoa maternal, doce e calorosa, foi fácil identificar quando ela ignorou minha mão e me deu um abraço tão apertado que senti alguns ossos estralarem. A mulher era grande e forte, diga-se de passagem.
— Olá, Harry. Seja muito bem vindo, é um imenso prazer ter você aqui conosco. — Clare dizia sem tirar o sorriso do rosto nem por um segundo, seus cabelos estavam puxados para trás e presos, suas roupas eram brancas e como a cozinha, impecável.
— Igualmente. Obrigado, Clare. — Digo, falhando em tentar retribuir toda a sua animação.
— Clare é a nossa chefe de cozinha.
— Oh, onde estão seus ajudantes? — Pergunto olhando ao redor, à procura de mais funcionários.
— Eu não possuo. Não é como se precisasse.
— Louis não recebe muitas visitas. — Charlotte cochicha no meu ouvido. Ela se volta para a outra moça que não transparecia nem um terço do ânimo de Clare, na verdade ela parecia mais interessada em admirar as panelas empilhadas atrás de mim do que me olhar — Está é Sarah Jones-Payne.
Payne???
— Sarah e Liam são casados. — Charlotte explicou e aquilo me fez gostar um pouco menos de Sarah, não que eu tivesse me agradado de sua expressão entediada e dos cabelos castanhos e volumosos soltos e não alinhados como os de Clare, ou seu corpinho pequeno e sem grandes atrativos que mesmo assim foi capaz de seduzir Payne a ponto de levá-lo para o altar — Ela é nossa empregada, se nossa casa é assim tão linda e bem organizada é mérito dela.
Sarah sorriu, com seus olhos mortos se voltando para mim ao dar as boas-vindas mais sem graça de toda a história, me dar um aperto de mão e só.
— Clare, vamos nos instalar na sala de estar, poderia nos providenciar um chá? — Srta. Tomlinson pediu — Alguns biscoitos também? — Senti meu estômago embrulhar só com a possibilidade de comer algo e neguei — Certo. Apenas o chá.
Entramos na sala de estar que como tudo naquele lugar, era gigantesco. As paredes e o chão de madeira polida e brilhante, as cortinas pesadas e um lustre de cristal no teto, nos sentamos em um espaçoso sofá de couro em frente a lareira, havia uma poltrona ao lado, imaginava ser de Louis. Podia vê-lo sentado nela, segurando um copo de whisky, observando as chamas queimarem com seus olhos cegos e amaldiçoando o mundo. Parecia bem o estilo dele.
— Acredito que meu irmão tenha lhe assustado. — Charlotte começou, cruzando as pernas e puxando a barra de seu vestido azul para cobrir os joelhos.
— Um pouco, devo admitir. — Um pouco? Claro, Styles, foi por isso que você quase se mijou.
— Eu lamento. Infelizmente Louis faz esse tipo de coisa toda vez que surge um candidato para a vaga de cuidador. O salário é bom e o emprego teoricamente fácil, as pessoas vêm aos montes, mas quando chegam se chocam ao ver que ele não é o ceguinho inofensivo que esperavam.
— Ele me pareceu bem ameaçador. — Resmungo e Sarah entra na sala, carregando uma bandeja de prata e servindo-nos em xícaras de porcelana, se retirando logo em seguida.
— Bem, Harry, você é o primeiro que passou pelo teste de Louis sem mandar tudo para o inferno e marchar para longe de nós. Você é jovem e as recomendações de Bárbara foram as melhores. Eu realmente gostaria de tê-lo ao lado do meu irmão, Louis já esteve envolvido em muitas coisas ruins. Seria bom ter um pouco de bondade e decência ao seu lado.
Decência. O que Charlotte Tomlinson diria se soubesse do meu segredinho sujo, iria me escorraçar daqui ou me prender numa árvore e deixar que Louis brincasse de tiro ao alvo com a minha cabeça?
— Mas para isso acho que o melhor a se fazer é ser totalmente transparente com você. Você me perguntou antes sobre a escassez de funcionários, Louis não gosta de muitas pessoas ao seu redor. Quanto menos, melhor para ele. Liam, Clare, Sarah e você é o máximo que ele pode aguentar.
— E quanto a família de vocês?
Charlotte se assusta com minha pergunta e engasga com seu chá.
— Desculpe...
— Não. — Ela pede limpando a garganta — Se você for ficar aqui precisará saber de tudo. Nós costumávamos ser uma família bem grande. — Pega um porta—retrato com a fotografia de uma família imensa. São tantas crianças que é difícil contar — Estes eram Jay e Mark, nossos pais, as menores Daisy e Phoebe e os maiores são eu, Felicite e Louis. Nós éramos uma família feliz, feliz e judia. Durante uma guerra de extermínio aos judeus. Louis e eu como mais velhos nos alistamos, movidos com o desejo de defender nosso país, ele como soldado e eu como enfermeira, naquela época ninguém dizia que Hitler estava caçando os judeus, queriam manter a calma. O que não serviu de muita coisa quando invadiram nossa casa, pegaram nossa família e a arrastaram para Auschwitz. Mamãe e as gêmeas morreram assim que chegaram, mas Felicite e meu pai foram fortes, aguentaram por anos, ele morreu um pouco antes do fim da guerra. Quando a Alemanha foi derrotada nós a resgatamos.
Era difícil pensar num cenário devastado com corpos empilhados, terror e medo por toda a parte. Deveria ter sido traumático para essa garota ter visto sua família e dezenas de milhares sendo mortos ao longo dos anos.
— Onde sua irmã está agora? — Me atrevo a perguntar, girando a xícara de chá entre meus dedos. Charlotte continuava a beber, cabisbaixa.
— No Sanatório Hope London, é um ótimo lugar, ela é muito bem cuidada. O que ela viu não podia ser apagado e ela não foi capaz de lidar sozinha.
— Entendo.
A campainha ecoa e Sarah surge prontamente para atender. Uma jovem mulher, baixa e de cabelos louros entra, vestindo um grosso casaco de peles e carregando uma maleta. A Srta. Tomlinson se levanta de abrupto e segue em direção a mulher, sem saber direito o que fazer eu a sigo.
— Lottie, querida, como tem passado? Está com uma cara ótima. — A mulher sorri exibindo todos os dentes.
— Eu sobrevivo. — Lottie suspirou cansada, parecia realmente trabalhoso lidar com uma irmã transtornada, um irmão cego e uma família extinta. Como ela consegue? — Este é Harry Styles, o novo cuidador do Louis. Harry, está é Bleta Rexha.
— Bleta? Nem meu pai me chama de Bleta, Lottie. Me chame de Bebe ou doutora, como preferir. — Como Clare, ela se joga em meus braços dando um forte abraço e balançando sua maletinha.
— Doutora não, você não tem licença pra isso.
— Isso não me impede de ser a médica do Louis.
— Você o droga.
— Dá na mesma. — Bebe dá de ombros, passando o braço ao redor da minha cintura e me guiando em direção a escadaria que dá para o segundo andar — De onde você é, meu amorzinho?
— Holmes Chapel.
— Oh, adorável cidade. Estive lá algumas vezes com papai, foi ótimo. Mas me diga o que um jovem rapaz do interior faz aqui na cidade grande, ainda mais cuidando de um velhaco reclamão como Louis?
— É um bom emprego e eu queria vir para Londres. — Respondo, examinando o caminho que fazemos. Subindo pela escadaria infinita forrada por um, tão infinito quanto, tapete de camurça vermelho.
— Sua mãe sabe que está aqui?
— Sou maior de idade.
Bebe solta uma risadinha, apertando minha cintura.
— Claro que é. — Aproxima o rosto do meu, sussurrando: — Louis não pode te ver e Lottie está tão desesperada que aceitaria até o conde Drácula, mas está escrito na sua testa que você tem quinze, no máximo dezesseis anos, pentelho.
— E—eu...
— Não sabe mentir? Percebe—se. Olha amor, eu não sei porque está aqui. Só que eu preciso alertar de que está se metendo numa fria, Louis não é como um cachorrinho ferido. Ele não tem os olhos, mas seus outros sentidos são afiados feito a ponta de uma espada, muitas coisas realmente sérias aconteceram em sua vida e isso o deixou amargo e impaciente. Ele tinha uma esposa, tinha filhos, pais e irmãs e a guerra tirou tudo dele, você acha que é capaz de compreender um homem vazio e destruído como Louis Tomlinson? Não pense que por ser um menino bonitinho será poupado. Ele não pode ver sua beleza, só suas fraquezas e garanto que não irá perdoá-lo.
Engulo em seco com suas palavras, não notando que adentramos um pequeno corredor com apenas duas portas, uma de frente para a outra. A que está entreaberta pertence a Louis e é dele que vem os gritos de dor e agonia. Que chegam a ser assustadores.
— Não são apenas os olhos. A guerra também acabou com o seu corpo. Louis sente uma dor que chega a ser sobre-humana na perna, ele não pode ficar em pé por muito tempo, não pode tropeçar ou cair em hipótese alguma. Ele costumava ser boticário, mas a dor nubla sua razão e ele se medica em doses exageradas que costumam colocá-lo em coma. Ele é viciado e por isso deve ficar afastado do armário de remédios, ele tem muitos pesadelos e estresse pós-traumático, ou seja, fica agressivo de repente. Fique atento, não o deixe dormir perto da fogueira, mês passado ele golpeou o fogo e a pele de sua mão direita foi destruída. Bem, reflita sobre isso.
Bebe me soltou, entrando no quarto e deixando a porta levemente aberta me dando a visão de Louis esparramado na cama, as mãos agarrando o dossel e o rosto suado, usava apenas calções, mas se remexia como se seu corpo estivesse queimando. Os cabelos grudaram em seu rosto vermelho e assim que Bebe sentou na cama ele avançou nela, Liam o agarrou por trás, pressionando seu corpo na cama.
— Eu preciso. Eu preciso. Dói demais. — Ele gritava em meio ao choro — Eu não aguento mais isso, não aguento mais, me mata, por favor me mata...
— Não adianta, Lou. Sabe que eu não vou te matar. — Bebe diz se levantando a tempo de evitar o chute que Louis dá em sua maleta, ela tem uma seringa na mão com algum líquido escuro — Fique quieto, querido. Vou injetar agora.
— Não, eu não quero essa merda. É pouco, muito pouco. — Geme se debatendo e meus dedos se enrolaram com força na barra do meu suéter.
— É o suficiente, Louis. — Bebe diz pacientemente tentando enrolar uma fita de elástico na coxa de Louis, mas ele continua a se debater. Liam tenta segurar suas pernas soltando a parte superior do corpo de Louis que se levanta quase tomando a seringa da mão da doutora — Ele está mais inquieto do que de costume.
— É minha culpa. Ele insistiu para que eu a chamasse no último estágio. Nós sabemos como ele fica quando a dor vem. — Liam diz voltando a enlaçar os braços ao redor do peito de Louis. Escuto um soluço choroso e viro para Lottie que tem o rosto banhado em lágrimas.
— É melhor eu ir ajudar.
Seguro seus ombros e mais lágrimas caem por seu rosto, enxugo algumas com o dorso da mão.
— Eu vou.
Entro no quarto e Bebe e Liam levantam as sobrancelhas surpresos. Louis, alheio a minha presença continua a chutar e socar o ar, a doutora apenas sinaliza para que eu sente na altura dos quadris de Tomlinson e segure suas coxas, ela consegue amarrar o elástico e prender a circulação por um curto período enquanto tenta aplicar a medicação.
— Me soltem. Não adianta, a dor não vai embora, ela não vai... — As palavras eram embargadas de uma dor quase palpável. Estava sentado de frente pra ele, e nem de longe parecia o homem que conheci mais cedo. Agora ele parecia o cachorrinho desamparado que Bebe cítara, com o rosto úmido de lágrimas e suor, cabelos despenteados e completamente frágil e desesperado.
— Ela já vai embora. — Digo, deixando que ele note que estou aqui. Mas Louis está tão profundamente dopado pela dor que não parece consciente o bastante para me reconhecer, seus olhos pedidos choram sem parar.
— Não, não minta pra mim, por favor.
— Eu não estou mentindo, ela vai embora. Seja paciente.
— Como se atreve a dizer isso? — Sua voz continua gritada e ele balança o corpo de encontro ao meu, o peito vez ou outra se chocando com o meu — Eu fui paciente. Eu fui um bom homem. Um bom soldado e eles tiraram tudo, tudo de mim! — Berrou, tão furiosamente impulsionando seu corpo contra o meu que acabei soltando seus quadris para agarrar o colchão e me impedir de cair no chão. O movimento descoordenado dele fez com que seu joelho fosse de encontro ao peito de Bebe que caiu arfando no chão e Liam correu para acudi-la e então éramos nós dois. Eu, o garoto fracote e grávido e o homem cego, descontrolado e com dores insuportáveis.
Já podia imaginar ele voando para cima de mim e me esganando até a morte ou me chutando e matando meu bebê. Muitos cenários eram possíveis, mas não o que eu involuntariamente criei ao envolver meus braços ao redor de seu corpo e abraçá-lo, sem que eu tivesse consciência o abracei, sua cabeça descansava em meu peito.
— Maldito, maldito. — Gritava contra meu suéter, se debatendo cada vez menos. A seringa no chão estava vazia e Bebe parecia bem, ainda sentada no chão com Liam.
— Shhhh... Respire, Louis, a dor já está passando. — Falei com a voz serena, acariciando seus cabelos.
— Não, não... — Chorou ainda mais forte e eu o abracei com mais fervor, até que seus braços estivessem também ao meu redor.
Nós estávamos nos abraçando.
— Ela está indo embora, consegue sentir?
— Uhum. — Seus dedos se enrolam nos cachos do meu cabelo, a cabeça completamente apoiada no meu peito e os espasmos de seu corpo diminuindo. Com cuidado, eu me afasto e Louis está desmaiado nos meus braços. O rosto calmo e a respiração suave, o deito sob os travesseiros, me sentindo exausto.
— Meu deus, você o acalmou e ele te abraçou!
Olhei para Bebe que se levantara e me olhava como se eu fosse um ser de outro mundo.
— Isso não é possível! — Liam exclama.
— Eu sabia que você era perfeito para o emprego. Sabia. — Lottie grita, correndo até mim e me dando o último abraço do dia, assim espero.
Não demora até que eu me torne merecedor de conhecer o meu quarto depois da minha turbulenta chegada à mansão dos Tomlinson, arranco todas as minhas roupas e deslizo para debaixo dos lençóis suaves e aconchegantes. Fecho os olhos e em questão de segundos estou afundando no mágico mundo dos sonhos.
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