Capítulo 7
O Detetive Ryan Harris olhava para o corpo da mulher.
Ela estava deitada de barriga para cima. A cabeça pendia levemente para o lado. Os cabelos, de uma coloração loiro escuro, agora se espalhavam pelo rosto dela, alguns fios tingidos de vermelho. Ryan Harris percebeu os olhos entreabertos. Era assim que ele sabia que alguém tinha morrido. Os olhos ficavam opacos, a perfeita definição de que a vida havia abandonado o corpo. Os olhos de um morto eram inconfundíveis.
Em sua cabeça, a marca de uma violenta pancada. O sangue escorrera pela face, lhe dando um aspecto ainda mais macabro.
Ryan Harris sentia cheiro de ferro no ar.
Estremeceu. Podia jurar que uma parte do cérebro dela estava exposta.
Ao lado da mulher morta, uma estatueta feita em mármore, de um casal de bailarinos, se encontrava manchada, o pé da dançarina com uma parte faltando, e não era preciso ser um Sherlock Holmes para ver que aquela tinha sido a arma do crime.
— Ah, que bom que você já está aqui! — disse Juliet Moynahan, assim que chegou. Juliet media mais que 1,60. Tinha cabelos pretos, olhos azuis e um cérebro impressionante.— O que você tem pra mim?
— Dalila Littlejohn, 32 anos, o marido a encontrou assim que chegou, por volta das 8.
— Bom, deixe-me ver o que essa mocinha tem a me contar — disse Juliet, e se agachou ao lado do corpo. Podia ver arranhões nos braços e marcas de defesa nas mãos, sinal de que a mulher havia lutado pela própria vida. Próximo a testa, um trauma indicava que a causa da morte havia sido um impacto profundo. Mediu a temperatura do fígado. Dalila Littlejohn havia morrido há não mais que três horas.
— Pobre mulher, morrer desse jeito... — disse Ryan, e seus pensamentos foram interrompidos quando a detetive Reagan e a CSI Gonzales apareceram.
— Os vizinhos já estão começando a se aglomerar lá fora. Eu juro que um dia quero entender esse fetiche maluco que o povo tem por cenas de crime! Não podem ver um assassinato que já começam a rondar, aposto que é para colocar nas redes sociais! — falou Eva, enérgica.
— A nossa mocinha tem resquícios de pele debaixo das unhas. — disse Juliet, enquanto afastava os cabelos do rosto da mulher. Os olhos estavam entreabertos. Juliet Moynahan estremeceu. Sempre conhecia as pessoas em seu pior dia. Precisava contar a história de alguém que já não podia fazer isso por si mesmo.
— Alguém viu ou ouviu alguma coisa? — perguntou Monica. Dalila parecia mais um boneco do que um ser humano. A detetive Reagan a encarou. A imagem da morte era sempre impactante. No que ela estava pensando antes de levar os golpes que selariam seu destino? Quais eram seus planos? O que ela havia tomado de café da manhã? Sentiu calafrios, mas o bom detetive deixava as emoções de lado para se guiar pela razão. Caso contrário, seu trabalho poderia ficar comprometido.
— Não. Só escutaram os gritos do marido assim que a encontrou. Nossa, eu fico só imaginando o choque que ele levou. Está lá fora com cara de perdido — respondeu Eva. — Mas, se querem saber a minha opinião, alguém viu sim o que aconteceu com essa coitada e só está com medo de falar.
Ryan e Monica concordaram com a cabeça. As vezes, as pessoas funcionavam de maneira engraçada, tentando convencer a si mesmas de que não deveriam se meter onde não eram chamadas.
— Harris, me ajuda a virá-la, por favor — falou Juliet. — O rigor mortis está começando a se instalar.
O vestido florido estava banhado em sangue, assim como o tapete. Uma trilha se seguia ate os degraus que levavam para o segundo andar. Pegadas se misturavam no chão.
Debaixo do cadáver, alguns fios de cabelo vermelho, que pareciam pertencer a uma peruca, se misturavam com os da senhora Littlejohn. Juliet os recolheu e colocou em um saco de evidências.
— Um assassino careca ou uma ruiva? — questionou Harris, pensativo. Nunca sabia o que esperar quando se tratava de um criminoso.
— Está mais para alguém que não queria ser identificado — respondeu Monica. — Espero que a pele nas unhas nos dê um DNA compatível.
— Acha que pode ter sido um ataque aleatório? Um assalto que deu errado? Esse bairro não tem índices elevados de violência.
— O marido disse que nada estava faltando — falou a CSI Gonzales. — A casa não tinha sistema de alarmes nem câmera de vigilância. As casas da vizinhança também não.
— Não é para menos que os vizinhos estejam tão chocados — completou Harris.
— Espera...tem uma coisa aqui... — exclamou Juliet, retirando um objeto que se enroscou no cabelo da mulher. — O que pode ser? — falou, colocando-o no envelope de evidências e entregando o artefato desconhecido para Harris. Parecia a letra "M", com bordas arredondadas.
— Me lembra um pingente quebrado, um brinco, alguma coisa assim. Seria uma lembrancinha do nosso assassino?
— Isso se for um homem...— disse Monica. — Eu vou falar com o viúvo, ver o que ele tem a dizer sobre a falecida.
— Nós já estamos terminando aqui. — falou Eva.
Monica saiu da casa. Na calçada, uma multidão se aglomerava, suas expressões de horror se tornando ainda mais sombrias com a iluminação precária da rua. Ela conseguia ouvir no meio do burburinho coisas como "tão jovem, pobrezinha", "o bairro está se tornando cada vez mais perigoso", "como a gente não escutou nada? Mas também, quem vai imaginar uma coisa assim?" e frases como essas.
Monica Reagan analisou o bairro. Era um desses subúrbios, cheio de casas iguais. Naquele momento, ela via algumas crianças desavisadas correndo pela rua, alheias a morte tão próxima. E imaginou que a ignorância podia mesmo ser uma bênção.
Encostado em uma árvore, o homem observava as pessoas na calçada. Nesse momento, a equipe passou com o corpo, e Monica pôde ver a cabeça dele os acompanhando. Pensou que ele fosse começar a chorar, mas não esboçou nenhuma reação. Apenas ficou ali, aspirando a fumaça do cigarro.
— Boa noite — disse Monica, se aproximando, e ele pareceu sair de um transe.
Meneou a cabeça.
— Boa noite — falou, jogou o cigarro no chão e pisoteou.
— Eu sinto muito por sua perda — replicou ela, se sentindo um pouco deslocada. O homem passava os dedos pela aliança e ela não soube dizer se ele fazia isso conscientemente ou não. — Pode me contar outra vez o que aconteceu?
Ele se aproximou um pouco mais. Parecia nervoso. Agora que estava mais perto, Monica conseguia ver algumas manchas de sangue na camiseta branca.
— Eu...ela estava assim quando eu cheguei. Fiquei em choque. Vi que estava morta e liguei para a polícia. Foi isso — falou, mas não olhava para ela.
Monica assentiu com a cabeça. Olhou para o homem por alguns segundos, pensando se ele seria capaz de assassinar a esposa a sangue frio. Não era o enredo de histórias policiais, era a realidade. Quando uma mulher morria, o suspeito, quase sempre, era o seu parceiro.
— Você tocou nela? — perguntou, apontando para a camiseta.
O homem abaixou a cabeça. Se sentia envergonhado.
— Eu espero que você nunca passe pelo que eu passei... aquela cena horrorosa, a cabeça dela daquele jeito! Eu a abracei, tentei fazer alguma coisa, mas já era tarde demais...
— Eu entendo — respondeu Monica, e então o encarou. — Não se culpe, no seu lugar eu teria feito a mesma coisa.
Ele balançou a cabeça.
— Nome completo para registro, por favor.
— Lawrence Littlejohn — disse, cauteloso como quem revela um segredo. — O nome da minha esposa é... era Dalila. Robinson era o nome de solteira.
— Obrigado, senhor Littlejohn. Por enquanto é só. Se o senhor puder ficar aqui enquanto terminamos o trabalho. Não queremos correr o risco de que alguma coisa contamine a cena— falou Monica. Ele se afastou, voltou para a árvore e acendeu outro cigarro. Parecia viver uma vida que não era dele.
A detetive voltou ao local do crime. Agora que o corpo havia sido levado, conseguia ver quase que uma silhueta de sangue no tapete creme. Harris estava parado próximo a escada que levava para o segundo andar, anotando alguma coisa.
— O que você acha? — ele perguntou, sem levantar a cabeça. — Culpado ou inocente?
Monica analisou a cena ao redor. Era, de certa maneira, engraçado. Se não fossem as manchas de sangue que se espalhavam por todos os cantos, ela jamais poderia dizer que um crime havia sido cometido ali. Com exceção de algumas coisas caídas no chão, o resto estava intocado. Um gato laranja estava sentado em um dos degraus da escada. Parecia ignorar a presença de estranhos em seu habitat.
— Eu acho que alguém odiava Dalila Littlejohn — falou, por fim. — Juliet deu uma estimativa de quantas pancadas ela levou?
— Pelo menos duas. Uma não foi forte o bastante, ela só deve ter ficado tonta. Pela trilha, tentou subir até a escada, mas o assassino pode ter ido ao encontro dela. Acho que foi nessa hora que derrubou os livros. Parecia querer se assegurar em alguma coisa — completou Harris, apontando para alguns livros espalhados próximos ao tapete. Um exemplar de Agatha Christie, O Assassinato de Roger Ackroyd, jazia de capa para baixo. — Foi quando o assassino deu o golpe fatal. Ele rompeu o crânio dessa pobre mulher, Reagan...não deu a ela nenhuma chance de se defender.— replicou Harris. Ainda se sentia um novato toda vez que se deparava com situações assim. Pensava na mulher, estirada no tapete.
Monica voltou sua atenção para a sala da casa dos Littlejohn. Um sofá marrom com almofadas floridas disputava espaço com duas poltronas da mesma cor. Uma televisão de tela plana, plantas variadas e brinquedos de gato espalhados por todos os cantos. Na estante, livros concorriam com porta-retratos dos mais diversos modelos. Em uma das fotos, uma família estava na praia. Em outra, os Littlejohn estavam sorridentes, em frente a uma casa nas montanhas.
Um dos porta-retratos, de moldura verde, mostrava a falecida senhora Littlejohn. O cenário de fundo também era a praia. Ela usava um vestido rosa. Fitava a câmera. Sorria.
Monica a encarou. Por algum motivo, a senhora Littlejohn não era desconhecida.
Olhou de novo. Aqueles olhos. Já os tinha visto em algum lugar.
De repente, sentiu uma miscelânea de sentimentos.
É claro!
Dalila Littlejohn, há quatro anos, Dalila Robinson, era uma velha conhecida sua.
Era a corredora que encontrara John Traynor.
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—Espera, então você acha que a mulher morta tem conexão com o caso Traynor? — perguntou Harris, sentando-se na cadeira que ficava de frente para a mesa da Detetive Reagan. Ele havia sido transferido para o departamento depois que o Detetive Milles teve sua aposentadoria decretada devido a uma cirurgia de ponte de safena. Diferente de seu predecessor, Ryan Harris era movido, acima de tudo, pela curiosidade.
— Eu não só acho, eu tenho certeza. A senhora Dawson, a viúva, esteve aqui há alguns dias. Alguém tinha ligado pra casa dela dizendo que sabia porquê o marido tinha sido morto, e agora isso acontece. Não pode ser coincidência — falou Monica, tentando absorver as informações. —Se essa mulher tivesse sido atingida por um raio, eu até poderia pensar em coincidência. Mas não. Ela foi brutalmente assassinada.
— Mas qual seria o envolvimento dela? — perguntou ele, e então fitou os olhos na Detetive Reagan. Ele era Luke Skywalker e ela era o Mestre Yoda.
— Eu ainda não sei. Mas foi relevante o suficiente para selar seu destino. A senhora Robinson falava pelos cotovelos. Quem garante que não andou abrindo o bico?
— Mas pra isso alguém precisava conhecê-la. Ou pelo menos saber que ela foi a corredora que o encontrou.
— Essa é a parte mais fácil. O caso está na internet para quem quiser saber. Acho até que foi parar em algum canal do YouTube sobre casos não resolvidos. O mundo é cheio de gente esquisita, Harris — falou ela, enquanto as dúvidas começavam a crescer em sua mente. — Gente esquisita tem orgulho até das coisas mais bizarras. Dalila Robinson era um pouco esquisita. Quem garante que não falava aos quatro cantos sobre ter encontrado o milionário morto? Além do mais, a memória humana é traiçoeira. Pergunte a dez testemunhas sobre uma cena e cada uma delas vai focar em um ponto diferente. Dalila pode ter presenciado algo que não era importante para ela naquele dia. Mas pode ter sido. Pode até ter visto o assassino e nem se deu conta disso. Nossa mente é sugestiva, Harris.
Ryan Harris olhou para ela, admirado. Gostava de ver uma pessoa que executava bem o próprio trabalho, e Monica Reagan era uma delas. Não tinha nenhuma dúvida de que um dia ela viria a ser capitã do distrito.
— E o que você vai fazer?
— Abrir outra vez o caso Traynor. Eu só não consigo entender... por que agora? Por que depois de 4 anos alguém se importaria? — falou, sentindo uma pontinha de decepção. Aquele havia sido o caso mais notório de sua carreira, e, como profissional, havia cobrado a si mesma por uma resolução. Talvez tivesse chegado a hora de esclarecer tudo.
— Como você disse, tem muita gente maluca por aí. Talvez o assassino se alimente dos holofotes. Talvez queira de novo a sensação de estar na mídia, chamando a atenção de todos.
Monica estremeceu ao ouvir a palavra mídia. Eles haviam estragado tudo da primeira vez. Não podia deixá-los fazer isso de novo.
— Eu vou falar com o capitão Morrison. Por enquanto, essa conexão deve ficar apenas entre nós. Aqueles tubarões nos devoraram da primeira vez, não estou pronta para lidar com isso de novo. — disse Reagan, antes de se encostar na cadeira. Se sentia cansada, mas não havia tempo para pausas. —Vou visitar o marido o quanto antes, ver se ele não sabia nada sobre o que a esposa andava fazendo.
— Bom, imagino que a estatueta foi confirmada como sendo a arma do crime.
— Sim. — ela falou, e então deu um suspiro. — Nosso assassino está de volta. Mas dessa vez, ele deixou uma pista, Harris.
Ele a observava. Se a mente dela fosse transparente, ele conseguiria ver os pensamentos se acelerando, como engrenagens em uma máquina.
— A morte de John Traynor foi planejada, não restam dúvidas. Ele corria todos os dias, estudá-lo não foi difícil. Você não tem noção do que as pessoas fazem quando estão motivadas, meu caro — ela fez uma pausa, anotou algumas coisas na agenda e prosseguiu. — Mas quanto a Dalila Littlejohn, fica claro que o desespero foi a chave. Não foi planejado. Tenho certeza que, de algum modo as coisas saíram do controle. Ele se arriscou demais em ser visto. E além do mais, escolheu matá-la com um objeto da casa. Pra mim, é o retrato clássico do desespero. O cerco próximo a ele está se fechando, Harris.
Ele concordou.
—Como você está se sentindo? Digo, todo mundo sabe o que esse caso representou para você e para o Milles. Vocês podem não ter achado o culpado, mas não deixam de ser heróis. — falou, tentando confortá-la.
Aquela, no entanto, era uma pergunta capciosa. Monica não sabia exatamente o que sentir. Arquivar o caso fora para ela a maior derrota de sua carreira, e havia levado um tempo considerável para se reerguer outra vez. Tinha medo de que voltar ao caso ressuscitasse velhos sentimentos de inutilidade.
— Confusa, pra falar a verdade. Pelo menos agora posso ligar para a senhora Dawson e dizer que não chegamos ao fim. Pelo menos dessa vez posso alimentar dentro de mim a esperança de achar um culpado. A morte de Dalila só confirma que o assassino se descuidou em algum momento. Se não fosse esse o caso, por que aparar arestas? Eu vou pegar esse safado, Harris. —disse, com determinação. Os olhos dele brilhavam ao encará-la. Monica Reagan era tudo o que ele desejava ser algum dia.
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Monica Reagan bateu à porta e esperou.
A Rua dos Álamos estava tranquila. As casas eram todas iguais, pintadas de cinza, com janelas brancas e jardins floridos, que pareciam ainda mais vívidos aquela altura da primavera.
O número 86 não era diferente.
— Olá — disse o homem que abriu a porta. Ele semicerrava os olhos, tentando reconhecer a pessoa a sua frente.
— Detetive Reagan, da Polícia Metropolitana do Décimo Segundo Distrito. Eu estive aqui no dia em que sua esposa morreu, senhor Littlejohn — disse ela. — Sinto muito pela demora em liberar a casa, mas precisávamos de todas as evidências que pudéssemos encontrar.
— Ah sim— falou, como quem é puxado de volta a realidade. — Entre, por favor.
Ela agradeceu e o seguiu.
Mesmo que tenha estado ali há menos de duas semanas, a sala estava diferente. Os porta-retratos haviam sumido, assim como a maioria dos livros. E claro, o tapete ensanguentado deve ter encontrado o caminho da lixeira.
Algumas caixas de mudança se espalhavam pelo ambiente. Em cima de uma delas, o gato gordo e alaranjado, parecido com o Garfield, lambia calmamente a barriga rechonchuda, aleatório ao que acontecia ao seu redor.
Monica se sentou no sofá marrom. O senhor Lawrence se acomodou em uma poltrona. Ficaram em silêncio por alguns segundos, o clima tenso se materializando diante deles.
— Eu vou me mudar — ele disse, por fim, parecendo letárgico. —A casa é grande demais só para uma pessoa.
—Entendo —falou Monica, e olhou para o pobre homem. Ele não era nada mais que uma carcaça, e parecia ter emagrecido desde o dia que o vira pela primeira vez.
— Vou para o interior —falou, e deu um sorriso, enquanto brincava com a costura da calça jeans. Parecia ainda mais deslocado. —Eram os nossos planos, sabe? Uma casinha de frente para o lago. Dalila sempre dizia que eu trabalhava demais. Acha que eu escutei ela? Não, só trabalhei mais ainda. A deixei cuidando da livraria enquanto entregava mercadorias por aí. Se eu tivesse a escutado, provavelmente estaria com ela quando tudo aconteceu. Minha pobre Dalila... —disse, e as lágrimas começaram a surgir, insistentes. Ele tentava controlá-las, mas foi em vão. Levantou, andou até a cozinha, e voltou, três minutos depois, com um copo d'água, que bebeu em um só gole.
—Senhor Littlejohn, eu sei que agora está sendo um momento difícil, mas preciso saber algumas coisas. Dalila tinha algum inimigo? Alguém que gostaria de fazer mal a ela?
—É claro que não! Você tinha que ter conhecido a minha Dalila...era tão adorável! Sempre sorrindo. Cuidava da livraria com total dedicação. Ela antes havia trabalhado para o doutor Jones, um sujeitinho repulsivo. Quando nos casamos, disse que cuidaria da livraria para que eu pudesse trabalhar com as entregas. Eu amo livros, mas sou péssimo com atendimento ao público, então ela tomou a frente dos negócios. Aqui no bairro todo mundo gostava dela. Algumas vizinhas até mandaram flores depois do funeral —ele falou, e então apontou para os buquês murchos que jaziam em cima da mesa de canto. —Não, ninguém na face dessa terra poderia desejar o mal da minha Dalila.
Monica pegou seu habitual bloquinho. "Nenhum inimigo".
— Eu não sei se é do seu conhecimento, senhor Lawrence, mas há 4 anos, Dalila foi a primeira pessoa a encontrar um homem morto.
Ele se remexeu na poltrona. Estava se sentindo visivelmente desconfortável em ter aquela conversa.
—Sim, eu sei. Ela as vezes falava sobre isso. Contava sobre como tinha sido horrível encontrar o pobre homem caído na beira da estrada como um boneco.
—Era só isso que ela contava sobre esse episódio? Nunca mencionou nada fora do comum? Pense bem, senhor Littlejohn, por favor. Pode ser qualquer coisa, mesmo que pequena.
Ele colocou a mão sobre o queixo, o cenho franzido. Parecia a própria escultura "O Pensador", de Auguste Rodin.
— Uma vez ela comentou alguma coisa. Disse que não achava relevante, por isso não contou a polícia na época. Ela dizia que já o tinha visto muitas vezes, ele nunca falava com ninguém, sempre de cabeça baixa. Mas naquele dia, ele tinha falado com alguém... era uma mulher... — continuava o relato, fazendo pequenas pausas, para garantir que não se esqueceria de nada. — ...sim, Dalila disse que naquela manhã o viu conversando com uma mulher. Depois ela se distraiu e o perdeu de vista. Só foi encontrá-lo novamente quando quase tropeçou no corpo.
"Uma mulher."
— Ela nunca comentou sobre ter escutado o barulho de um tiro?
— Sempre achou que fosse o escapamento de um carro, ou coisa do tipo. Sabe, ela sempre ficava impressionada. Eu sei, não é o tipo de coisa da qual a pessoa sinta orgulho, mas ela sentia, eu acho. Sentia orgulho de ter encontrado aquele homem tão rico morto. Se sentia fazendo parte de algum plano maligno, sabe? Dalila era assim. Tinha uma imaginação fértil, uma memória de elefante. Ela nunca se esquecia de um rosto. Sempre me falava orgulhosa de como reconhecia pessoas que ela havia visto há anos só de relance.— ele disse, e então suspirou. — Era um dom, eu acho.
Monica balançou a cabeça, absorvendo a informação.
— Você acha que ela reconheceria a mulher se a encontrasse anos depois?
Ele meneou a cabeça.
— Eu não tenho dúvidas — completou, assertivo.
— Interessante... — disse a Detetive Reagan. O senhor Littlejohn ficou a encarando, parecendo esperar alguma explicação, mas ela ficou em silêncio.
Ele se inclinou para a frente, os olhos verdes iluminados pela luz do sol que adentrava as frestas da cortina.
— Você acha que a minha Dalila pode ter morrido por que viu algo que não deveria?
— Investigaremos todas as possibilidades, mas nada pode ser descartado ainda. A propósito, senhor Lawrence, Dalila possuía uma agenda, um diário, qualquer coisa assim?
— Sim, ela tinha uma agenda. Só um momento. —ele falou, e se retirou da sala.
Nesse momento, o gato laranja pulou das caixas e foi ao encontro de Monica, a cabeça se esfregando nos seus braços.
— Oi gatinho —falou ela, fazendo um afago na cabeça dele, que imediatamente começou a ronronar como um motorzinho.
— Sherlock, por favor, pare de implorar por atenção! — disse o senhor Lawrence, assim que percebeu o felino ao lado de Monica. —Ele anda um pouco perdido desde que Dalila faleceu. Fico pensando no pobrezinho, deve ter visto quem...a machucou. Acho que ficou traumatizado. Desculpe-me pelas artes desse garoto —falou ele, pegando o gato gordo do sofá. O felino prontamente se aninhou em seu colo. —Aqui está, a agenda dela. Dalila era muito metódica, sabe? Não dava um passo sem planejamento.
Monica agradeceu e pegou a agenda de capa lilás. Estava organizada pelos dias da semana. Os compromissos variavam entre pessoais e profissionais. Receber um novo carregamento de livros. Comprar ração para o gato. Fazer uma surpresa para Lawrence.
No dia em que morreu, um compromisso se destacava.
"Eleanor Lynn
15:30, Cafeteria da Rua Morgue"
—Você conhece alguma Eleanor Lynn? —perguntou Monica.
Lawrence Littlejohn pareceu pensativo por alguns segundos.
—Sinto muito, mas não. As vezes Dalila negociava com algumas pessoas em troca de livros raros. Você não faz ideia das coisas que as pessoas jogam fora achando que não valem nada.
—Entendo — falou, se levantando do sofá. —Muito obrigada por sua atenção, senhor Littlejohn. Mais uma vez, sinto muito por sua perda. Espero que tudo fique bem.
— No que eu puder ajudar... — disse ele.
— Ah, uma última coisa! Sabe se isso pertencia a sua esposa? — falou, entregando-lhe o pingente quebrado.
Lawrence olhou para o conteúdo do pacote. Balançou a cabeça.
— Eu tenho certeza que não — respondeu, e então fez uma pausa, comprimindo os lábios. —Não é engraçado? — falou, olhando para algum ponto acima da cabeça dela.
— O quê? — redarguiu Monica, pensativa.
— Se a morte de Dalila foi causada por uma consequência do que aconteceu há 4 anos, então, ela morreu por um... contratempo. Se não o tivesse encontrado, provavelmente estaria viva.
— É...
Monica Reagan se despediu de Lawrence Littlejohn.
Em vez de ir direto até o carro, ela ficou em pé na calçada. O ar úmido indicava que a chuva se aproximava. Franziu o cenho.
Lynn.
Aquele nome não era totalmente estranho.
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