Eu sempre imaginei que com o tempo iria me acostumar com a espera de vigiar uma pessoa a distância, já faz algum tempo que tenho feito as coisas que faço. Mas com as coisas como estão, posso ter certeza que não fica nem um pouco mais fácil com o tempo.

O porco imundo que estou vigiando é Demóstenes Nogueira, vereador da cidade de São Paulo que entre outros crimes, teve a bondade de desviar o dinheiro da merenda de escolas municipais. Ele já foi acusado e respondeu sobre as acusações. Mas claro, devido a eficiente e rápida justiça desse país, ele foi inocentado.

Quando a justiça falha em fazer o certo e acolhe os milionários que deveria punir, não sobra muito para o cidadão comum agir. Mas é nesse campo que atuo. Invadindo e vasculhando tudo da vida privada dele e para provar a todos o quanto ele é culpado.

Sempre cultivamos um imaginário de como agem os políticos corruptos. Um aspecto de sagacidade e malandragem nata, alguém que está sempre cinco passo a frente de todas as pessoas. Porém a grande verdade é que os superestimamos demais. Não são muito diferentes que os diversos pais e avós nossos frente a tecnologia Sua vasta maioria é composta por velho decrépitos que não sabem instalar um aplicativo no celular.

Eu já perdi a conta de quantas senhas foram desbloqueadas apenas usando "123456" ou datas de nascimento e de aniversário de entes próximos. Geralmente com o acesso de uma senha eu consigo desbloquear quase tudo na vida de um homem público, e esse caso não foi muito diferente.

O principal foi ter acesso ao notebook dele, um samsung de última geração que felizmente conta com câmera e microfone embutidos de alta qualidade e facilmente hackeaveis. Esses velhos imundos ainda montam sua segurança pensando no século passado, onde alguém teria de invadir fisicamente a casa para colocar uma escuta ou uma câmera escondida. Eu rezo todo dia para que essa ignorância por partes deles seja mantida.

Mexendo remotamente pelo computador pude ver o peso da segurança com câmeras por toda a casa. Felizmente não será difícil desativá-los pelo próprio computador, quando me for necessário cobrá-lo de uma visitinha.

Para me manter focado no objetivo, fico pensando nas consequências da ganância do vereador. A criançada já não tinha acesso a um digno banquete no passado. Com o dinheiro desviado, o pouco que sobra não é suficiente sequer para comprar o básico. Por isso consideram cortar totalmente o alimento de crianças que, muitas vezes, tem na escola sua única refeição... esse pensamento sozinho me enoja.

Em uma irônica situação o sebento glutão acaba de fazer um pomposo banquete com as mais refinadas carnes e iguarias, uma única janta desse ser desprezível deve ser maior que o orçamento mensal de qualquer escola da periferia.

O mais interessante ao mexer na lama dessa escória é que se encontra muito mais do que o esperado. Descobri também o envolvimento dele com a máfia dos caça níqueis. O próprio vereador foi um exaustivo combatente na proibição dos jogos e caça níqueis em bares, unicamente para poder alimentar um notável grupo de agiotas que recebem propina de bares que ainda se mantém no negócio, agora ilegalmente.

Pelo que pude pesquisar da vida do pária, esse grupo cresceu a ponto de oferecer serviços de segurança particular "extra-oficiais" muitos deles são policiais aposentados recebendo uma mixaria do INSS. Não precisa de muito para que isso se torne algo parecido com as milícias no Rio de Janeiro.

Eu já tenho todas as provas físicas necessárias para provar a culpa dele por estes crimes, o único motivo de não agir ainda é que as provas nunca são suficientes para o povão. É preciso algo mais incriminador... uma confissão, uma gravação de telefone que agora, o vereador está muito receoso de fazer.

Olho apreensivo quando o vereador pega o telefone, mas infelizmente é apenas uma ligação para a amante, parece que ela vem cobrando mais dinheiro para manter o silêncio. Essa pressão pelo lado dela é quase agradável, pois além de colocar o vereador em uma situação de submissão, faz com que ele fique desesperado em captar mais dinheiro. Parece que hoje mesmo resolverei todo o trabalho que tenho aqui.

A conversa parece tomar outra forma... mais sensual eu diria, e se prologona demasiadamente. Enquanto aguardo, para pra refletir um pouco sobre mim e o caminho que me levou até esse exato momento. Onde persigo e espiono políticos e outras corruptas figuras de poder.

Há não muito tempo eu estudava Gestão Pública, minha ideia sempre foi trabalhar na política em nome do bem de todos. Fazer uma mudança positiva no mundo. Porém a realidade nunca é bondosa com nossos sonhos íntimos.

Consegui rapidamente alguns pequenos empregos em cargos públicas que foram o início da minha ruina. Tão logo percebi quão sujo é o jogo político, como sem capital político é basicamente impossível fazer alguma mudança e aqueles que detém o poder só vivem em prol de si mesmo.

A corrupção era repulsivamente ordinária e a justiça não só era completamente cega, como ainda protegia os interesses dessa corja. Meu coração se encheu de ódio e nada na minha vida pareceu fazer sentido. E foi quando desci o mais fundo no meu âmago, clamando aos aos céus sozinho por uma chance de rebelar, que o estranho aconteceu.

Amparado por uma voz misteriosa que decidiu não se apresentar, foi me oferecido uma proposta inusitada. Uma chance de lutar. Fui apresentado a um misterioso material escuro sólido, muito leve, do qual eu exerço o completo controle. Posso moldá-lo ao meu prazer com o poder da minha mente. Com apenas um pensamento posso fazê-lo sólido como diamante ou flexível como borracha.

Posso controlá-lo de forma que cubra toda a minha roupa e faça uma maleável armadura, ainda que resistente e impenetrável com aço. Podia usar o excedente do material para dar forma a qualquer arma possível. Bastava um pensamento que o misterioso material disfórmico se alterava.

Minha única condição imposta pelo enigmático visitante para o uso desses poderes era punir aqueles que cujas ações mereciam penitência. Justamente o que desejava. Meu primeiro alvo ao testar esse poder foi um ponto de tráfico que vinha aterrorizando minha vizinhança. Devido a leveza e cor desse material, pude facilmente passar despercebido e até escalar paredes, moldando pequenos ganchos nas mãos para auxiliar a escalada.

Com o dinheiro roubado dos traficantes, me equipei com um bom material tecnológico para finalmente ir atrás de peixe grande. Nos meus punhos tenho um disparador que preencho com dardos afiados desse material misterioso. Além de uma máscara de operação militar, onde posso enxergar no escuro e ampliar minha audição.

Devido a distração com meu interno monólogo, percebo que a ligação havia terminado e ele se encontrava pensativo em sua poltrona. A insegurança o tornaria cauteloso, hesitava em acionar qualquer contato incriminador. Felizmente a ganância venceu a cautela. Após terminar o charuto e dar seu último gole de whisky, Nogueira levanta de sua cara poltrona de couro, passa as mãos suadas sobre o rosto ainda ponderando sua atitude, e só então toma coragem para mandar o áudio que o incriminaria.

— O Teixeira, pode mandar o dinheiro desviado na operação da merenda pra minha conta, mas não manda pra habitual não. To com um pressentimento esquisito. Manda para outra na off-shore que assim ninguém vai conseguir rastrear, o número é esse que te mandei em texto.

— Seria realmente difícil de rastrear — digo através de um falante no capacete que distorce minha voz, trazendo um ar ainda mais sombrio a minha abordagem — se você não tivesse partilhado o número com seu amiguinho corrupto.
Havia aproveitado a distração do vereador para invadir a casa dele e pegá-lo de surpresa. Com o susto ele tenta mandar outro áudio pedindo ajuda, mas acerto sua mão com um dos dardos que disparei. Como planejado todas as luzes do condomínio foram apagas, os dados do celular dele já estão sendo copiados para meu computador e todo o dinheiro dele será desviado de seu destino em breve.

No escuro e com o punho incapacitado, Nogueira teme pela própria vida e move-se perdidamente pelo lugar, com medo de mim espreitando na escuridão. Como se um fantasma rondasse agora sua sala de estar.

— Você... é o culpado pelas recentes mortes? O q-que chamam de penitência? — Sua voz é tremida, quase como um choro, o vereador reúne o pouco que lhe sobra de coragem e continua — Escute garoto... você não precisa fazer isso, eu posso te fazer rico. Seja quem for que esteja te pagando, eu pago o dobro.

— Nem tudo nessa vida se resolve com dinheiro, Nogueira. Pena que você descobriu isso tarde demais.

Eu fico encarando ele em silêncio apenas para aumentar seu nervosismo. Nada me fará mudar de ideia, ninguém poderá resgatá-lo. Apenas alongava a tensão para sentir de perto esse medo ensandecido dele. Desde que recebi meus poderes eu sinto essa vontade de despertar o medo nas vítimas. Como se esse sentimento me alimenta-se, me tornasse mais forte.

— Tirar comida de crianças famintas, Nogueira. Existe algo que você não faça?

Em desespero ele tenta inutilmente fugir. Disparo com meu bracelete em seu calcanhar fazendo com que caia instantâneamente. Nogueira se vira rapidamente puxando fôlego para um grito que é brutalmente interrompido por um dardo que cruza a sua garganta. Onde antes teria um grito sai apenas um engasgado resmungo que se mistura a sangue e o sufoca lentamente.

Eu poderia finalizá-lo exatamente agora, trazer um pouco de paz a morte dele, mas prefiro admirar enquanto vejo lutando para manter-se vivo, levando as duas mãos ao pescoço numa tentativa fútil de estancar o sangramento, sujando-se todo com o próprio sangue. Aos poucos o vereador se asfixia até que em seus últimos espasmos abandona completamente a vida.

Meu acordo com a voz misteriosa era a de trazer punição aos poderosos que trazem desgraça e tristeza para a população incapacitada de se defender. Um serviço que a justiça pública não consegue servir. Por isso me chamam de Penitência, e isso que eu venho servir.