8. Mistérios ao Vento
O vento da noite de outono assobiava pelas ruas desertas de São Francisco Xavier. A brisa parecia procurar pelas vias por alguém para congelar até os ossos, porém, os moradores do pequeno distrito pertencente a São José dos Campos deixaram a coragem dentro de suas próprias casas, com medo de uma lenda mais antiga do que o morador mais velho daquele lugar. E que não se prendia somente ali.
Os mais céticos diziam que um lobisomem era apenas crendice para assustar os mais medrosos e que permaneceriam na rua até o sol raiar, sem sequer um pelo do corpo se arrepiar. Contudo, ao se confrontarem com o manto pesado da noite e a enorme lua cheia a brilhar no céu, aparentemente se esqueceram do próprio juramento feito em plena luz do dia.
Os mais corajosos foram aqueles que se atreveram a colocar o nariz ou todo o rosto para fora por uma frestinha na janela. Entretanto, ao ouvirem um uivo cortar a noite, passaram até o último trinco e voltaram para a segurança de seus lares. Se alguém mais atrevido ousasse continuar com sua bisbilhotagem, veria uma forma escura atravessar o pavimento deserto.
O couro coberto por pelo negro, correndo por sobre as quatro patas e com os olhos que reluziam vermelhos. Literalmente reluziam. Não era apenas um grande cachorro, conforme a notícia que voava pela cidade. A verdade era que ninguém ousara enfrentar a fera frente a frente.
Ou talvez aquilo estivesse prestes a mudar.
A besta-fera trotava sem rumo pelas vielas, aparentando estar perdida e atordoada. As árvores pareciam lançar sombras medonhas sobre o solo, ocultando a criatura ainda mais. Ela farejava o ar e tudo o que via eram apenas casas antigas a ladearem tudo. O caminho parecia se abrir em um certo ponto e correu por ali, deparando-se com a igrejinha matriz da cidade. Por algum motivo, as portas estavam escancaradas, as luzes de seu interior completamente apagadas, lançando um ar de mistério a quem estava fora.
- Aqui, cachorrinho, aqui. - Uma figura, com vestes que poderiam pertencer a um frei, tentou se aproximar, a mão estendida contendo um alimento estranho. - Não precisa ter medo, não vou te fazer mal. - Ele engoliu em seco. - Só espero não perder minha mão com isso, mesmo não sendo canhoto.
A criatura virou-se para o único corajoso - ou louco - o suficiente para ousar confrontá-la. Farejou o ar e pareceu estar em dúvida por alguns segundos. Como a melhor defesa era o ataque, rosnou.
- Ai, meu Rassilon - o Senhor do Tempo sussurrou, lentamente se afastando para trás. Àquela altura, não parecia ser mais tão corajoso assim... - É comida, o-olha só - gaguejou, balançando a mão, sabendo que não adiantava correr.
Um apito estridente cortou a noite. Se ainda houvesse um desavisado a bisbilhotar pela janela, desistiria e se esconderia de vez debaixo das cobertas. A besta-fera congelou e ganiu, abaixando a cabeça.
- O que é isso? - o homem com vestes de frei questionou para si mesmo, confuso e vendo que a criatura parecia ter uma audição mais sensível do que imaginou.
- Isso, meu caro Monge, é um apito Hasselin. - Saltos deixavam um trac-trac-trac por onde os passos marcavam o pavimento de paralelepípedos. - E de nada, por você ainda ter seu braço preso ao corpo.
- Missy - Monge sibilou entre dentes, tentando metralhá-la com o olhar e falhando.
- Ora, e meu agradecimento? Não recebo nenhum? - Ela soltou uma risada anasalada, parando no meio da rua, a saia violeta farfalhando com o movimento. - Você não costumava ser tão mal educado assim na última regeneração.
A fera pareceu mudar de ideia sobre sua vítima e voltou-se para a Senhora do Tempo. Percebendo o que estava prestes a acontecer, ela soprou o apito, fazendo o bicho se encolher. Se os dois não fossem quem eram, provavelmente sentiriam pena com o ganido.
- Agradecer? Por você me roubar a oportunidade de receber os diamantes da recompensa pelo Yawara? - Monge cruzou os braços, parecendo uma criança mimada. Franziu o bigode, ainda tentando manter sua dignidade.
Missy assoprou o apito mais uma vez, faltando pouco para ter a criatura sob seu domínio. Claro, o medo sempre era uma das melhores armas. Exceto para aquele que o sentisse, segundo ela pensava.
- E um bunda-mole feito você ia ter coragem de abrir o Yawara para retirar o coração? De jeito nenhum! - ela exclamou, a mão na cintura e sem hesitar um centímetro, com o ser quase aos seus pés, mesmo que, de pé, o Yawara fosse bem mais alto do que os dois Senhores do Tempo presentes.
- Ora, sua, sua... - Monge ergueu o dedo em riste, procurando entre os melhores xingamentos em gallifreyano que conhecia. Quase desistiu.
Ou talvez não desistisse, se um estampido não tivesse interrompido o bate boca dos dois. Se é que poderia ser chamado disso, já que mais parecia uma zombaria da parte de Missy para com Monge.
- Quem 'ocês acha que é pra fazer mal pro Juninho, hein? - Uma senhora de meia idade apareceu, vinda da escuridão e apontando um trabuco com firmeza, alternando hora entre um e o outro.
Missy gargalhou, analisando a mulher de cima a baixo.
- Isso é sério? - soltou descrente. - Uma espingarda, pra cima de mim? - Seu dedo com a unha pintada de vermelho alternou entre ela e a desconhecida, finalizando com um riso. - Humanos... Patéticos.
- 'Ocês acha que são os primeiro estrangeiro a vir aqui atrás do Juninho, é? Mas eu tô é muito preparada pra lidar com gente da laia do'cês.
É, havia apenas uma pessoa com coragem o suficiente para estar na rua naquelas circunstâncias. E qualquer morador do distrito iria concordar: não havia nada no céu e na terra que fosse fazer dona Sebastiana tremer nas bases. E, pelo visto, nem algo além da Terra...
- Veja bem, minha senhora, é um tanto perigoso estar aqui. Talvez fosse melhor... - Monge tentou usar como arma seu melhor ar persuasivo possível. O problema era que ele não conseguia ser hipnótico feito Missy, que parecia não ter a mínima paciência para lidar com a situação sem matar alguém.
- Vamos acabar logo com isso. - A Senhora do Tempo estendeu um aparelho na direção da mulher. - Por que não diz algo legal?
Missy teve apenas como resposta um tiro do trabuco, que passou raspando pelo seu rosto.
- A próxima eu não erro, dona!
- Certo, sem últimas palavras dessa vez - ela soltou, fingindo estar desapontada.
A Senhora do Tempo disparou o laser, vendo que não teve efeito nenhum. O queixo de Monge por pouco não foi ao chão e as sobrancelhas de Missy subiram quase ao meio da testa. Ao redor de Sebastiana, o vento parecia mais presente do que o normal.
- Isso é impossível! - Missy exclamou, vendo que o Yawara estava plenamente recuperado do assombro do apito e pronto para atacá-la. Mesmo com Monge voltando a se afastar, ela continuou no mesmo lugar, analisando a humana de cima a baixo.
- Mas eu vou mostrar pro'cês o que é possível! Juninho, atrás dele!
Com a arma ainda em riste, Sebastiana voltou a disparar na direção de Missy, enquanto o Yawara meteu-se a correr na direção de Monge. Usando da única solução possível, o Senhor do Tempo fugiu quase a galope. Missy não teve outra alternativa a não ser sair dali, recebendo uma salva de balas da mulher. Ah, quando a munição acabasse... Coisa que não demorou mais do que alguns metros para que se concretizasse. A Senhora do Tempo ouviu o barulho do gatilho sendo puxado e nada acontecendo. Voltou-se para a humana, tendo um sorriso zombeteiro nos lábios delineados com batom.
- Como é mesmo aquele ditado de vocês? - Missy tirou seu aparelho do bolso, segurando-o enquanto levava o dedo até o queixo, fingindo estar pensativa. - Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come? - Ela riu. - O bicho parece ter desistido dessa vez.
Sebastiana abaixou o trabuco, vendo que era inútil.
- 'Ocê não devia mexer com o que não conhece, dona - a mulher retorquiu sombria, seus olhos parecendo trocar a coloração. E ela não era uma daquelas pessoas que as íris costumavam mostrar outras cores conforme a luz mudava.
Antes que Missy pudesse retrucar que a humana não era nada, comparada com o que ela própria viveu, o vento começou a espiralar ao seu redor. Não era apenas a brisa de outono que gelava até os ossos, era além disso. Além do natural.
Missy encarou Sebastiana, tendo absoluta certeza que os olhos da mulher mudaram de cor.
- Você não perde por esperar. - Com a ameaça, a Senhora do Tempo saiu com o trac-trac-trac de seus saltos sobre os paralelepípedos, arrumando os cabelos que o vento bagunçou.
Sebastiana riu, vendo a ventania acalmar-se para a brisa de sempre. O Yawara - que era tomado por um lobisomem pelos moradores - parou ao seu lado, tentando lamber a mão da mulher.
- É, Juninho, vamo' ter muito trabalho pra fazê. - Ela olhou para o bicho, acariciando a cabeça dele. - Mas 'cê tem que aprender a tomar mais cuidado, o pessoal tá com medo dessa história de lobisomem.
Juninho soltou um choramingo, que, na verdade, poderia ser apenas ele achando graça de tudo.
- Agora, vam'bora, porque a gente precisa dar um jeito nessa história.
Sebastiana começou a caminhar, sendo seguida pelo Yawara, sozinhos nas ruas vazias de São Francisco Xavier.
- Não é dois estrangeiro que vai levar 'ocê embora - ela prometeu para o vento.
Enquanto a brisa de outono soprava pelas ruas vazias do distrito de São José dos Campos, mais um dentre tantos mistérios se escondia novamente para dentro da noite.
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