7. One Last Time
24 de dezembro de 2019, Madrid, Espanha.
A Doutora caminhava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco cinza, sentindo no ar o gelado daquela tarde de inverno. Apesar das baixas temperaturas, várias famílias aproveitavam o dia de Natal para passar um tempo juntos na bela cidade de Madrid, rindo e festejando. A senhora do tempo deixava que aquele ar de harmonia tomasse conta dela.
Desta vez, preferira ficar sozinha durante o Natal, dando a oportunidade para seus amigos passarem a data junto de suas respectivas famílias. Yaz rodeada de seus parentes e Ryan e Graham em suas próprias companhias, acostumando-se ao relacionamento de neto e avô. Ela própria decidira por vagar pela Terra em sua própria companhia. Espanha era uma boa ideia, pois fazia tempo que não visitava o país de língua espanhola.
A Doutora se sentou à beira de uma das fontes da praça principal, vendo os transeuntes passar com calma em seus agasalhos pesados. A única coisa que destoava da visão comum era uma mulher caminhando apressada com um xale negro a cobrir toda a sua cabeça e rosto, chegando até a altura do pescoço. Ela parecia preocupada, como se observasse todo o seu arredor. Talvez fosse uma cigana solitária, a Doutora pensou.
Permitiu-se continuar a observar as ruas de pedra cinzenta, sentindo os raios frios do sol de inverno, não fazendo muito efeito para aquecer o solo. O ar era leve, com as notas de um acordeom preenchendo o sussurro das conversas com sua música tradicional.
Todo o cenário se transformou com uma explosão que sacudiu o chão, assemelhando-se a um terremoto. O ar, tão calmo de segundos antes, parecia zumbir e gritos preenchiam a calmaria de outrora, com os espanhóis fugindo para o mais longe possível do epicentro da confusão. Seguindo para onde a fumaça negra apontava, a Doutora deixou seus próprios pensamentos de lado e correu, esbarrando-se com tantos pelo meio do caminho.
Os sons de sirenes e gritos tornavam-se mais altos e um cheiro podre de enxofre tomava o ar, ardendo-lhe os olhos e a garganta. O centro de tudo era a Catedral de la Almudena, que encontrava-se com um de seus lados transformado em escombros.
—Não procuramos guerra. — a Doutora ouviu a voz alta e metálica anunciar, logo visualizando seu interlocutor, tomado dos pés a cabeça por uma armadura totalmente negra. Ele devia ter pelo menos dois metros de altura. — Exigimos que a Terra nos entregue a humana Clara Oswald ou os reféns sofrerão as consequências.
A Doutora arregalou os olhos ao ouvir o nome tão familiar. Clara? O que ela tinha a ver com tudo aquilo? Como ela se metera com aqueles perigosos mercenários espaciais? Ao menos, para a senhora do tempo, era óbvio quem eles eram. E, o mais importante naquele momento, havia pessoas presas sob a mira tão perigosa dentro daquela igreja?
Ignorando seus pensamentos sobre Clara, que fazia seus corações palpitarem de temor, a Doutora forçou seu caminho entre a pequena multidão que se aglomerava às portas da catedral, optando por não correr, como era o mais sensato. Humanos e sua curiosidade... A senhora do tempo passava com dificuldade por entre os espanhóis, esticando o pescoço para tentar ver à frente, sendo pelo menos uma cabeça mais baixa do que os que tampavam sua vista.
— Eu sou Clara Oswald! — O sangue da Doutora pareceu congelar em suas veias ao ouvir aquela voz tão familiar e cheia de uma autoridade. Ela não podia... — Eu me entrego a vocês por minha própria vontade e exijo que não façam mal algum a essas pessoas. O problema de vocês é comigo.
A senhora do tempo finalmente conseguiu passar por entre a multidão que aumentava cada vez mais. À sombra da catedral, ainda teve tempo de visualizar o xale cair dos ombros da mulher pequenina em direção ao solo de calçamento. Era a mesma pessoa que tomara por cigana... Exceto que ela estava vestida de preto dos pés a cabeça.
— Clara, Clara, você não pode fazer isso — a Doutora encontrou as palavras e a atitude, tomando o braço magro em suas mãos e tendo o medo deslizando por sua voz.
A moça virou o rosto em sua direção e a senhora do tempo prendeu a respiração por alguns instantes, sentindo o peso dos olhos castanhos sobre seu rosto. Dentro deles não viu nada além de preocupação e cansaço e, talvez, pelo que ela conhecia tão bem daquela mulher, certa culpa a brilhar em algum lugar.
— Não se preocupe, vai ficar tudo bem comigo — Clara assegurou, tocando com sua palma gelada a mão que a Doutora apertava seu braço com força, numa tentativa para que ela não sumisse outra vez. — Vai ficar tudo bem comigo — ela repetiu e sorriu amarelo, tendo consciência de sua mentira e sabendo que nada estava bem. Mas não tinha problema, daria um jeito, sempre dava um jeito.
— Clara, você não...
— Finalmente nos encontramos, Clara Oswald — a voz metálica sibilou, avançando em passos pesados em direção das duas mulheres. Clara sorriu em desafio.
— Ainda não conseguiu pastilhas pra voz? — ela perguntou com atrevimento, apenas recebendo uma respiração falhada como resposta. Se houvesse um rosto humano sob aquela armadura, ela supunha, estaria trincando os dentes naquele instante.
Sem cerimônias, o mercenário agarrou o braço esquerdo da jovem Oswald, sumindo com ela em pleno ar, para surpresa dos espanhóis.
— Clara! — a Doutora gritou em um ímpeto, voltando os olhos para cima e visualizando apenas o céu nublado e cinzento novamente.
Tendo certeza que a dupla fora direto para a nave dos mercenários, enfrentou novamente a multidão, desta vez com fúria, não temendo forçar seu próprio caminho com o cotovelo se fosse preciso. Ela correu pelas ruas de Madrid, mal sendo percebida pelos bombeiros e a polícia que acabavam de chegar.
Escondida à sombra de uma das estátuas na Praça do Sol, entrou como um raio dentro da cabine azul, pulando logo para o console e correndo os dedos por todos os botões que podia.
— Vamos, vamos, velha amiga, me ajuda a encontrá-la... — A Doutora pediu aos murmúrios para a Tardis, sabendo que seria ouvida.
Logo, uma luz branca piscou em um dos scanners.
— Isso! — ela exclamou, puxando uma das alavancas e colocando a nave para funcionar, nem que fosse aos trancos e barrancos.
A Doutora se segurou com força na borda do console, quase sendo arrastada para o chão, enquanto a cabine azul se desmaterializava e voava desgovernada no rastro da enorme nave a ser perseguida. Os nós de seus dedos estavam praticamente brancos de tanto de tanto apertar a superfície dura, quando finalmente tudo parou e a senhora do tempo quase bateu com a cabeça em uma alavanca, sendo forçada para frente com a parada repentina. O ponto branco ficou estático no scanner.
— Por que pararam?
Com dedos ágeis ativou a tela para o exterior, sendo saudada pelo espaço profundo e inúmeras naves paradas em volta de um planetoide miserável.
— Parando para tomar uma bebida, hein? — ela disse mais para si mesma, já tendo inúmeras vezes passado por aquele famoso bar no meio do nada espacial.
Com agilidade, ajustou as coordenadas e colocou a Tardis para materializar-se dentro do covil dos leões, ou dos mercenários, no caso. Com pressa, correu até a porta da cabine azul, a abrindo com força e sendo saudada pelo vazio do corredor comum de uma nave espacial.
— Que sem graça... — a Doutora soltou com uma torcida de nariz, esperando um pouco mais de personalidade vindo daquele lugar, que nada mais tinha do que paredes que outrora foram cinza e passavam a tomar outras cores devido ao agir do tempo.
Ela aventurou-se pelo desconhecido, tendo nada mais do que o ruído de seus passos a quebrar o silêncio. Talvez toda a trupe descera no bar para uma bebida? Bem, sorte a dela.
Apertando a chave de fenda sônica em uma das mãos, a senhora do tempo finalmente encontrou o caminho para a traseira da nave, visualizando uma única porta naquele corredor. Como tudo naquele lugar, era sem graça, de metal enferrujado e tendo apenas uma janela embaçada para visualizar o que se passava do outro lado. A Doutora limpou o vidro com a manga de seu casaco, sendo capaz de ver a silhueta diminuta de Clara sentada sobre uma das caixas de metal daquele porão. Nem ao menos uma cela decente aqueles mercenários possuíam e prenderam sua amiga na despensa? Que decadência...
— Clara, ei! — ela gritou com um sorriso para o lado de dentro, apertando o botão de sua chave de fenda sônica e abrindo a porta com um clique.
Clara virou-se ao ouvir o ranger da porta ser aberta. Para sua surpresa, não era um ser enorme que estava nos umbrais, mas a figura diminuta de uma mulher desconhecida. Já não a tinha visto antes? Na catedral...
— Quem é você? — disparou a pergunta em um tiro e logo sentiu a mão da mulher loira envolver a sua gelada, puxando-a para fora daquela despensa parcialmente vazia.
— Resgaste espacial — a senhora do tempo permitiu-se uma piada, tentando sair daquele lugar sem graça o mais rápido possível.
Com um sorriso de orelha a orelha, ela olhou para trás, vendo o rosto confuso de sua amiga. Claro, dessa vez era ela própria a não ser reconhecida. Coisas de regeneração.
— Mas quem é você? Eu me lembro de você ter me segurado em Madrid... — Qualquer pergunta morreu na boca de Clara quando a dupla finalmente parou em frente a uma caixa azul, a única coisa que parecia ter vida naquele lugar semimorto.
Os lábios de Clara tremiam com palavras que ela tentava expressar, mas, espantada demais, todo seu sistema nervoso parecia entrar em pane. Não era possível, simplesmente não era...
— Vamos entrar? — A Doutora abriu a porta, segurando-a em um convite para que Clara entrasse primeiro.
Com passos que pareciam ter vontade própria, Clara marchou para dentro da cabine azul, sendo saudada por um interior amarronzado e convidativo. Não era possível, sua mente lhe dizia, porém, seus olhos contavam outra coisa. O tempo pareceu parar enquanto ela analisava centímetro por centímetro do novo interior. Seus olhos foram tomados por lágrimas e suas mãos tremiam, sendo fechadas em punho para que pudesse se controlar.
— Vou tirar a gente daqui. — Clara sentiu uma mão quente sobre seu ombro e foi saudada por um sorriso gentil da estranha. Seus sentidos lhe diziam que ela conhecia aquela mulher e tentava ignorá-los a todo custo. Até que isso não era mais possível.
A senhora do tempo passou por ela em direção ao console, mexendo em botões e alavancas com uma rapidez impressionante para qualquer um. A Tardis fazia seu famoso ruído, quebrando o silêncio e levando-as para bem longe dali.
— D-doutor? — Clara gaguejou em um fio de voz e guiou seu caminhar até estar lado a lado com a loira. Ao erguer do rosto, foi recebida com um sorriso gentil e caloroso.
— Talvez eu seja uma Doutora agora — com a voz vacilante, a senhora do tempo segurava-se na borda do console, usando-o como uma muleta para pudesse ficar estável.
Logo, o corpo de Clara chocou-se com o seu e ela foi envolvida em um abraço apertado, como há tanto tempo as duas não compartilhavam. A Doutora passou seus braços ao redor do tronco da outra, devolvendo o gesto com a mesma intensidade. As duas permaneceram em silêncio em seu reencontro, deixando que os gestos falassem por si só. Clara chorava com o rosto enterrado no ombro da Doutora e ela apenas acariciava os cabelos castanhos da outra com carinho.
— Você se lembra de mim? — Clara questionou em um sussurro, como se estivesse em um sonho. Ela finalmente quebrou o abraço, erguendo a face para analisar o novo rosto de sua amiga. Memorizava cada centímetro da nova face da senhora do tempo, sendo analisada por um olhar amoroso.
— Consegui minhas memórias de volta em um natal como esse. Bem, não exatamente igual a esse, mas você...
O reencontro das duas foi interrompido pelo apito estridente vindo de algum lugar do console da Tardis. A Doutora voltou os olhos preocupados para o scanner.
— Ah não, não, não, não! — exclamou com raiva, empurrando a tela para longe e concentrando-se nos controles.
— Eles estão nos seguindo? — Clara questionou, tomando seu antigo lugar à beira do console e pronta para a ação. — Eles vêm me seguindo desde o fim do universo. Mal me lembro onde abandonei a minha Tardis... — Clara soltou como um suspiro. Com a ajuda de um telemat que encontrara em um dos planetas durante sua fuga, Clara acabara indo parar na Terra, o último lugar que queria estar em sua perseguição desenfreada.
— Já sei como dar um jeito nisso. —Com um olhar maníaco no rosto, que assustaria Clara se não conhecesse a outra tão bem, a Doutora tirou a tampa de um espaço escondido no console. Por baixo estava um grande botão vermelho, rodeado por dizeres de “não toque”, “fique longe” e “deixe seu dedão bem longe daqui” marcados à tinta permanente.
— O retorno rápido — Clara afirmou, dessa vez tendo conhecimento suficiente para saber detalhes de como cada centímetro daquela nave funcionava.
— Duvido que eles consigam nos encontrar em um lugar à beira do universo — a Doutora afirmou em um desafio para seus perseguidores, mesmo que eles não fossem capazes de ouvi-la.
— Para qualquer lugar. — Clara colocou sua mão sobre a da senhora do tempo e, juntas, pressionaram o grande botão vermelho.
— Segure-se! — A Doutora gritou em um aviso quando tudo parecia rodar a toda velocidade, capaz de causar náuseas a alguém que não fosse tão acostumado quanto as duas.
Tudo parecia ter perdido a direção dentro da Tardis, quando, subitamente, parou. O ar foi tomado por um silêncio e a dupla finalmente pode se levantar do chão, onde caíram pouco antes, devido à força da gravidade. A Doutora foi a primeira a se aproximar do console e segurar o scanner, vendo a tela completamente escura.
— Despistamos eles! Conseguimos! — a senhora do tempo comemorou, abraçando Clara logo em seguida. Clara devolveu o gesto com movimentos lentos.
— Não por muito tempo. Logo eles vão me encontrar de novo — ela disse pessimista, quase acostumada com tanta fuga.
A Doutora se separou do abraço, lendo o cansaço nos olhos de sua amiga.
— Nós podemos continuar fugindo. Nós duas vamos dar um jeito neles. Como nos velhos tempos... — ela tentou convencê-la, porém, a resposta estava óbvia demais para quem conhecia tão bem a Clara Oswald: ela estava exausta. Exausta de fugir, de lutar, de tanto caminhar pelo universo. Talvez fosse hora...
— É a minha hora, Doutora — Clara verbalizou o pensamento que corria pela mente das duas naquele exato momento. Ela finalmente havia chegado ao fim do caminho mais longo.
— Não! Não pode ser agora, eu acabei de te reencontrar... — Em desespero, a senhora do tempo teve sua mão envolvida por dedos gelados e parou.
— Talvez o universo tenha deixado que nos reencontrássemos para dizer adeus. — O olhar das duas se encontrou e a Doutora compreendeu que não poderia fazer mais nada. Quando a hora finalmente chegava, era impossível de adiar.
As duas se abraçaram uma última vez, como se aquele gesto fosse o único capaz de expressar toda a saudade que sentiam. Em silêncio, permitiram-se apreciar o último contato com a companhia uma da outra.
— Obrigada, Doutora. — Clara foi a primeira a se separar, voltando seus olhos castanhos para a outra. — Obrigada por tudo.
— Clara... — A Doutora soltou o nome da outra com a voz carregada das lágrimas que não queriam sair de seus olhos. — Para onde você quer ir?
— Netuno — ela focalizou a memória, lembrando-se onde deixara sua nave. Juntas, puxaram a alavanca da Tardis uma última vez, se desmaterializando suavemente enquanto as duas permaneciam com as mãos unidas.
As duas se encararam e, com um último segurar de mãos, Clara deslizou para fora da Tardis, sendo saudada pelo céu roxo de Netuno. Parada em seu lugar, ela respirou fundo como se tentasse criar coragem, então, tornou-se para a senhora do tempo parada às portas da cabine.
— Você está sozinha? — Clara questionou inesperadamente.
— Não... Deixei meus amigos com suas famílias em Londres. — A Doutora sorriu languidamente com a lembrança de Yaz, Rayan e Graham. Voltou os olhos parcialmente nublados para Clara. — Tenho seguido seu conselho.
Clara sorriu abertamente, feliz pela outra ter seguido em frente, sendo um Doutor, ou uma Doutora, exatamente como ela dissera. Sempre tivera certeza que seu último pedido seria atendido.
— Adeus, Doutora. Volte para seus amigos, viva aventuras por aí e, nunca, nunca mais me esqueça novamente — brincou de forma autoritária, mesmo que lágrimas fossem visíveis em seu rosto.
— Adeus, Clara — a senhora do tempo soltou em sussurro, vendo pela última vez o rosto de sua amiga.
Sem olhar para trás, sabendo que assim cederia, Clara tomou seu caminho, entrando na sua própria Tardis congelada na forma de um restaurante. Por algum motivo, a cabine telefônica sabia exatamente onde devia parar. Sempre sabia onde a Doutora devia estar.
A senhora do tempo observou a nave se desmaterializar, deixando nada mais do que um ruído que logo sumiu com o vento. Olhando para o céu, ela agradeceu ao universo por ver sua amiga uma última vez. Talvez o universo tivesse alguma obsessão com natais e Clara Oswald.
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