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10. O Espelho de Twille

Os céus escureciam cada vez mais, a luz dos dois sóis oculta pelas grossas nuvens, que traziam vento e tempestade junto de sua presença. As crianças, que se divertiam ao longe, tiveram a brincadeira interrompida por uma adulta, sabendo da tempestade que chegaria em breve.

- Pena que a mãe deles os levou embora, não acha? - o Doutor comentou para uma figura que se aproximava pelas sombras. Esticando os braços para espreguiçar-se, ele sequer se importou com o tronco da árvore cutucando suas costas, pois sua jaqueta era grossa. - Mais um pouco e fariam progresso no que estavam planejando fazer.

- Mesmo que a própria mãe das crianças não fosse ficar contente com isso? - a senhora replicou, olhando-o de soslaio. O senhor do tempo apenas meneou a cabeça e ela escondeu as mãos nas dobras de suas vestes. O vento aumentava. - Me surpreende ter captado minha presença com tanta rapidez.

- Sinto em dizer, Yohana, mas, por mais experiente que seu povo seja, nunca serão capazes de se ocultarem da percepção de um senhor do tempo - ele retrucou com um estalar de língua, cruzando os braços.

- Decidiu-se sobre o seu destino, Doutor?

O senhor do tempo voltou os olhos claros para a mulher alguns centímetros mais baixa, arqueando as sobrancelhas e aparentando surpresa. Conhecendo-a há tanto tempo, não era de tanto espanto a questão repentina.

- Direta como sempre, Yohana. - Evadiu-se da resposta em um primeiro momento. - Ainda não - soltou por fim com um suspiro.

Míseras gotas de chuvas começaram a despencar do céu com lentidão, aqui e acolá. A senhora fez um sinal, guiando-o para longe dali. A chuva era ácida em Twille, precisando ser evitada o quanto fosse possível. A não ser que a pessoa em questão possuísse uma pele grossa o suficiente para se proteger.

- Não estou o apressando a nada, Doutor - Yohana disse com suavidade, a voz calma e arrastada como sempre.

Os dois saíram da área aberta, caminhando por entre as árvores que tornavam-se menos esparsas conforme prosseguiam. O senhor do tempo não questionou para onde era levado.

- Sei que não está - ele retrucou. - Faz parte da sua personalidade, sempre me fazer perguntas - brincou, conseguindo a sombra de uma risada rouca da mulher.

- É visível o quanto está melhor após o trauma regenerativo - comentou, recebendo um aceno de "obrigado". - Porém, não posso dizer o mesmo de sua mente.

- É normal ficar confuso um pouco. Todos ficamos assim de vez em quando - ele retrucou e os dois pararam à borda de uma caverna. - O que há aí? - questionou. Mesmo que confiasse plenamente na mulher ao seu lado, não podia esconder seu lado curioso.

- Não é apenas confusão que vejo emanando de você, Doutor. - Os dois entraram pela abertura, pequenas chamas aqui e acolá iluminavam o caminho. Apesar da penumbra, o franzir de cenho do senhor do tempo não passou despercebido. - Raiva, dor, culpa, muita culpa - enumerou, vendo o rosto do outro adquirir tons sombrios. E não era pela escuridão do ambiente. - E dúvida.

Ambos atingiram o limite da caverna, não necessitando mais de chamas pelas paredes. O caminho de pedra deslizava em direção a um lago cristalino e brilhante, que trazia uma luz azul à cratera mergulhada na escuridão. Mesmo que não acreditasse na teoria de que a cor azul era calmante, esta era a impressão que ela emanava ali.

- Quanto aos outros sentimentos, apenas você poderá lidar com eles. - Ela apontou para as águas, sequer precisando disso para que o senhor do tempo avançasse em direção a elas. - Quanto à dúvida, espero que eu possa ser de alguma ajuda.

- O famoso Espelho de Twille. - Ele sorriu, surpreso e divertido pela descoberta posta em sua frente de forma inesperada. - Confesso que esperava literalmente um espelho.

- As Águas que mostrarão os seus caminhos, Doutor... - A mulher gesticulou para que o outro olhasse para o lago.

- Está querendo dar uma de Galadriel comigo, Yohana? - ele ironizou, disfarçando sua insegurança do que veria caso ousasse deixar o Espelho guiá-lo.

Não queria mostrar sua vulnerabilidade. Já viram demais, quando caiu confuso e perdido em sua Tardis, diretamente após uma regeneração. Por sorte, os moradores de Twille o conheciam muito bem. Com outros rostos, é claro. Contudo, nunca deixariam de oferecer cuidados ao homem que os salvara tantas vezes.

- O Espelho de Twille mostra aquilo que pode ser, Doutor.

- Eu chamaria isso de universos paralelos - ele retrucou, desviando o olhar das águas para a mulher parada ao seu lado.

- Deve ter ouvido falar sobre os Gêmeos, suponho. - Em resposta, Yohana teve apenas um menear de cabeça. - Os Gêmeos são as suas versões que poderiam ser. O que você teria se tornado seguindo aquele caminho? O que aquela escolha teria causado? O Espelho é capaz de mostrar cada um dos seus Gêmeos, criados a cada escolha que você deixou para trás.

- Não compreendo o porquê me trouxe aqui, Yohana. - O senhor do tempo tentou evadir-se mais uma vez, os braços cruzados e analisando a mulher em busca de respostas.

Yohana poderia ser extremamente misteriosa quando queria. E isso era um dos fatos mais intrigantes sobre ela. O que tanto havia por trás.

- Sim, você sabe - ela respondeu, vendo as sobrancelhas unidas do Doutor em aparente confusão. - Você conhece suas dúvidas, Doutor. - Escondeu as mãos nas dobras das vestes, esperando-o dar o primeiro passo. - Sua longa estadia entre nós não é à toa. Sua mente está repleta de dúvidas, posso senti-las. Qual é a sua escolha para esse dilema, Doutor?

Ela desafiou-o com o olhar, que o senhor do tempo sustentou por breves instantes. Não adiantava esconder-se ou evadir-se. Yohana era boa demais em ler pessoas. E isso incluía ele.

- Bem, uma olhada não deve fazer mal nenhum, não é mesmo?

O Doutor se aproximou das águas, seu rosto iluminado em tons de azul, que parecia tornar-se cada vez mais forte conforme elas se movimentavam vagarosas. Logo, o reflexo azulado formou a imagem dele próprio. Seu Gêmeo, preso em seu momento no tempo.

...

Ainda estava em Twille, isso era claro. Não havia ninguém nos campos cinzentos e a noite derrubou seu manto totalmente.

O Doutor estava sozinho em sua Tardis. O que não era novidade. O senhor do tempo vivia solitário, escondido, alguns sequer sabiam que ainda estava no planeta. Suspeitavam que a qualquer momento ele entraria em sua cabine azul e voaria para bem longe dali. Decerto, ele entrou na Tardis. E dela não saiu mais.

Muito tempo havia passado. Tempo que apenas o Doutor poderia medir. E tempo que apenas ele poderia dar um fim.

Uma batida na porta da cabine de polícia pôde ser ouvida do lado de dentro e logo ela foi aberta, revelando a face carrancuda do Doutor. Sequer se lembrava como era sorrir verdadeiramente. Um sorriso que não fosse ácido e sarcástico.

- Doutor, Yohana disse que chegou uma mensagem para você - o jovem rapaz anunciou, temendo a reação do homem. Sempre ouviu dizer que ele era explosivo em alguns momentos. - Precisam de você em um planeta...

- Já disse que não faço mais isso! - o senhor do tempo exclamou incomodado, pronto para fechar a porta na cara do rapaz.

- Mas você é o Doutor! - Ele tomou coragem para insistir. Por esse mesmo motivo que Yohana escolheu-o para ir até ali. Mesmo que ela praticamente não tivesse mais esperanças que o senhor do tempo fosse mostrar alguma reação. - Você salva pessoas, as histórias falam sobre isso! O homem na cabine azul que viaja pelas galáxias trazendo esperança.

Os olhos claros do Doutor adquiriram tons sombrios, certo contraste com as marcas de olheiras abaixo deles. Sua face tornou-se dura, contorcendo-se em dúvida. E também raiva. De si mesmo.

- Não sou mais esse Doutor, criança - disse em um quase sussurro, começando a fechar a porta. - Eu não salvo pessoas. - Ele voltou-se totalmente para dentro da Tardis escura, deixando o rapaz para o lado de fora. Sabia muito bem do olhar de decepção que teria que encarar. Não aguentava mais isso. - Como posso continuar sendo o Doutor, se não fui capaz salvar meu próprio povo? Como continuar salvando pessoas? - Se não podia salvar a si mesmo.

Ele ecoou a pergunta que sempre fazia para as paredes da Tardis. Sempre vazia. Sempre solitário e corroído em culpa.

...

O Doutor continuou encarando as águas, mesmo quando elas voltaram a se mover e retornaram para o tom azul. Yohana esperou por alguma palavra, porém, quando não teve nada em resposta, coube a ela mesma quebrar o silêncio.

- Agora você entende porque o trouxe até aqui - esclareceu suas intenções iniciais e o senhor do tempo ergueu-se em toda sua altura, encarando a mulher de cima.

- Posso tranquilizá-la quanto isso, porque não tenho planos de me tornar igual àquele Gêmeo. - Apontou para o Espelho, mascarando suas verdadeiras emoções com um sorriso. - Estive até pensando em dar uma passada em...

- Não adianta se esconder em mentiras, Doutor - ela advertiu, observando as Águas. Não estavam mais tão azuis quanto antes, calmantes. - Se o Espelho te mostrou isso, é porque é uma possibilidade de existir. Em algum lugar no tempo, esse seu Gêmeo está lá, solitário e amargurado.

- Bem, há diversas realidades paralelas. - Cruzou os braços, tentando passar um ar de quem sabe mais. - Em algumas delas eu sequer deixei meu planeta. Por que não haver uma realidade igual a essa? Sempre é possível. - Deu de ombros como se não fosse nada.

- O Espelho te mostrou a possibilidade, Doutor, não posso fazer mais nada se insiste em fugir da verdade... - Ela chamou-o com as mãos, para olhar novamente para as Águas. - Parece que o Espelho quer te mostrar algo mais. Um Gêmeo mais antigo...

...

As areias pareciam solitárias em direção ao celeiro abandonado. O senhor do tempo caminhava lenta e vagarosamente, quase se arrastando com o saco nas costas...

...

- Por que está me mostrando isso?! - o Doutor exasperou-se, afastando-se do Espelho em um salto. Sua voz ecoou pela caverna vazia. - Havia apenas uma possibilidade! Uma! - Seu tom de voz assustaria qualquer um, menos Yohana. Estava totalmente ciente da razão de sentimentos tão sombrios do senhor do tempo. - A única outra possibilidade seria destruição, trevas! Não há nenhum Gêmeo nessa realidade para me mostrar.

Ele finalmente respirou, passando as mãos pelo rosto numa tentativa de se acalmar. A mulher deixou que ele tomasse seu próprio tempo.

- Desculpe, eu...

- Entendo sua reação, Doutor, não se preocupe. - Tranquilizou-o, aproximando-se do senhor do tempo e tocando em seu braço, numa tentativa de minimizar pelo menos que um pouco seu sofrimento.

Esse era um dos motivos pelo qual o Doutor estava há tanto tempo em Twille: a paz. Seus habitantes possuíam a habilidade de transmitir seus sentimentos, alguns sequer precisavam do toque. E tudo que o Doutor precisava era de um pouco de paz, que encontrou somente ali. E de um pouco da calma que Yohana acabou de lhe oferecer.

- Se o Espelho tentou te mostrar essa realidade, é porque ela existe, Doutor. - Ele apenas ofereceu um riso descrente. A mulher não se deixou abalar pela descrença.

- Sim, uma realidade de trevas e sofrimento. - Ele respirou fundo, observando as Águas, que ainda não tinham voltado para seu azul calmante. - É melhor eu ir. O Espelho não...

- Mais uma chance, Doutor - a mulher pediu, puxando-lhe pela manga da jaqueta. - O Espelho ainda quer te mostrar mais um Gêmeo.

O Doutor balançou a cabeça, contrariado e querendo deixar aquele lugar o mais rápido possível. Talvez refugiar-se na Tardis e não sair de lá tão cedo. Contudo, desse jeito traria à tona o primeiro Gêmeo mostrado...

- Veja, as Águas se movem. - Yohana apontou, conseguindo fazer com que o senhor do tempo avançasse um pouco. Mesmo que incerto.

Ambos olharam as Águas pararem e formarem uma imagem.

- É uma moça bonita - a mulher comentou.

O Doutor corria acompanhado de uma jovem loira. Sem olhar para trás, os dois sorriam um para o outro, embalados pela adrenalina do momento. Pelo menos aquele Gêmeo não parecia amargurado como os outros. Não quando não estava sozinho.

- Ela parece bem nova - o senhor do tempo comentou, tentando disfarçar a sombra de um sorriso que passava por seus lábios.

- Você parece feliz ali - Yohana comentou e o Doutor riu sem humor. Ela voltou os olhos para ele, mesmo que a imagem no Espelho ainda continuasse. - Nem todos seus caminhos precisam ser cravados na dor e na culpa, Doutor.

Ele continuou observando as Águas, que aos poucos voltaram a se movimentar, deixando para trás a imagem feliz dele e da moça loira. Mesmo que controlasse seus lábios para não se curvarem para cima em um sorriso, não podia fazer mesmo com seus olhos azuis, nublados em uma possível esperança.

- Cabe a você, e apenas a você, a solução para seu dilema. - O senhor do tempo voltou o olhar para Yohana, captando a seriedade em sua presença. - Qual deles você irá se tornar, Doutor?

O senhor do tempo meneou a cabeça, percebendo que as águas do Espelho retornaram para o azul calmante de anteriormente.

- Parece que não há mais nada para me mostrar - comentou e a mulher sequer precisou olhar para trás. Visto a mudança na energia que emanava daquele senhor do tempo, talvez ela conseguiu o que precisava.

- Talvez agora você esteja pronto para fazer sua escolha. - Yohana finalmente dirigiu um sorriso para o Doutor, que apenas abaixou a cabeça. - Vamos voltar? Acredito que a chuva tenha cessado.

Estendendo o braço, deixou que o senhor do tempo a guiasse para fora da caverna.

...

O Doutor respirou fundo, apreciando pela última vez o cheiro de chuva em Twille. Diferente da previsão de Yohana, a chuva continuou. Fraca, porém ainda presente.

Não poderia negar que sentiria falta. Não apenas do cheiro da chuva, mas daquelas pessoas, que lhe acolheram com tanto amor, e da paz que lhe traziam.

Entretanto, sua escolha estava feita. Só havia um daqueles Gêmeos que desejava se tornar.

Sem espaços para despedidas, abriu a porta da Tardis. Não gostava de despedidas. Além de que, não precisava se despedir para sempre do povo de Twille, pois sempre havia a possibilidade de retornar um dia. Apenas esperava que não estivesse sozinho quando isso acontecesse.

- Ah, você redecorou! - exclamou ao ver o novo interior da Tardis. Depois de todos os espelhos que destruí após sua regeneração, era óbvio que precisava de uma mudança. - Ficou fantástico! - comentou com um sorriso verdadeiro.

Fechando a porta, deixou para trás apenas o ruído característico. Twille ficava para trás e o universo se abria novamente à sua frente.

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