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01. Adeus ao Lar

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"Embora o espírito estremeça à lembrança e seja avesso ao pranto, começarei."

Virgílio

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A SÚBITA REVELAÇÃO DE MEU PAI HAVIA surpreendido-me de tal maneira que pareceu que meu espírito saíra do corpo e só retornava agora, enquanto já estava deitada em minha cama.

Encarando o teto e girando meus anéis nos dedos — algo que fazia quando estava ansiosa, quase inconscientemente —, enquanto sentia uma grande mão fria apertando minhas entranhas, comprimindo meu interior e fazendo com que fosse quase difícil respirar.

Não seria certo dizer que estava surpresa com o fato de casar-me, pois desde a infância aprendi que um dia seria retirada rudemente de minha terra natal e jogada em um país estrangeiro, onde, com o tempo, iria definhar. Embarcaria em uma jornada, sabendo que nunca mais veria meu pai, minha avó, meu tio, e meus amigos. Chegaria em um reino onde a língua seria estranha, sentindo meu coração se apertar com o medo. Ao som dos sinos jubilosos da igreja e do crepitar das fogueiras, seria introduzida em uma corte com costumes, modas e políticas estranhos.

No início eu seria a novidade, a estrela resplandecente da corte, recebendo presentes, reverências e elogios exagerados. Mas quando as festividades do casamento acabassem, os sinos da igreja silenciassem e as fogueiras virassem cinzas, todos os cortesãos me virariam as costas e voltariam-se para uma suposta amante do rei, ignorando a princesa estrangeira e de pouco encanto que eu era.

As lágrimas silenciosas escorreram de meus olhos, sem que pudesse contê-las.

Nessa mesma tarde pensara em como seria bom se Darron fosse meu noivo, e eu realmente ganhara um noivo, embora não o que eu queria. O rei de Anglicourt seria meu marido...

Fazendo uma força descomunal para engolir meus soluços, enxuguei minhas bochechas úmidas pelo choro e levantei da cama, jogando o robe sobre minhas vestes de dormir. Meu coração pesava, pois sentia a necessidade de ir até meu pai e expor meus pensamentos; no fundo, queria que ele desfizesse esse acordo, permitindo que eu ficasse em Darian, mas sabia que isso era algo impossível. O rei não voltaria atrás em sua palavra.

Mesmo assim eu, Eleanor Eyriss, segui pelos corredores até parar em frente à sala particular de meu pai, com a cabeça erguida, pronta para bater à porta, porém me acovardei ao ouvir vozes abafadas vindas lá de dentro.

— ... sua única filha para Anglicourt! — reconheci a voz de meu tio — Poderia casá-la com alguém daqui, ou da Inglaterra que é do outro lado do mar, mas quer mandá-la para o lugar onde o Rei de Resa mais insiste em afrontar e tentar invadir!

— Exatamente. Minha filha, irmão, não sua. E como minha filha, Eleanor irá para onde eu mandar — dessa vez era a voz do rei, meu pai.

Era uma grande falta de educação ouvir conversas dessa forma, escondida, mas estavam falando sobre mim, então considerava ser meu direito fazer isso.

— Irá casá-la com o rei — era a voz de minha avó — Um doente deformado.

Senti meu sangue gelar.

Báh! — podia quase visualizar a expressão desdenhosa do rei — Doente pode até ser, e deformado é o que as más línguas dizem, mas rei Olivier está bem longe de ser um fraco. É um monarca jovem, mas tenho respeito por ele, e a senhora saber o quão difícil é para que eu respeite algum governante, minha mãe. E de qualquer forma, caso ele venha a falecer, Eleanor poderá governar como regente, isso foi um dos acordos entre Olivier e eu.

Eu não sabia se era algo bom ou ruim meu pai respeitar o rei de Anglicourt, e também não sabia se era bom ou ruim a possibilidade de me tornar regente. Mordendo o interior das bochechas, finalmente bati algumas vezes na porta de madeira e minha avó abriu.

— Olá, minha querida — cumprimentou, não parecendo muito surpresa ao ver-me ali — Não deveria estar dormindo?

— Gostaria de falar com o senhor meu pai — falei com doçura.

— É claro que quer — seu olhar suavizou enquanto me fazia entrar na sala — Vamos nos retirar, Nathaniel, pai e filha precisam conversar.

Meu tio passou por mim dando um sorriso melancólico e apertando levemente minha mão, fechou a porta ao sair deixando-me sozinha com meu pai.

O rei estava sentado atrás de sua mesa, com vários papéis em sua frente e a pena entre os dedos, como eu imaginara. Meu pai era um homem alto e robusto, de cabelos loiro avermelhados, uma barba ruiva, e olhos azuis; seu nome era Edward Eyriss.

Fiz uma reverência delicada e abri a boca para falar, mas meu pai foi mais rápido.

— Sente-se, filha — apontou para uma das cadeiras diante da mesa — Deve estar curiosa sobre o casamento.

— Não tanto — respondi — O senhor havia prometido que eu estaria livre de qualquer compromisso até completar dezoito anos, o que ocorrerá na próxima semana, mas... bom, sempre imaginei que fosse escolher a Inglaterra, Escócia, reinos maiores... — hesitei — Até mesmo pensei que iria escolher algum Conde ou Duque daqui mesmo...

— O rei Richard da Inglaterra está mais ocupado com a França do que com seu próprio reino desde da Terra Santa, e seu irmão, príncipe John, é sem terras e de temperamento impulsivo e violento — explicou — Quanto a Escócia, não veriam com bons olhos o sangue e a proximidade que dividimos com os ingleses, e além disso todos aqueles clãs parecem estar sempre prontos para iniciar uma guerra civil a qualquer momento. E sobre um Conde ou Duque daqui mesmo, quero que saiba que há muito tempo tenho conhecimento de suas afeições pelo herdeiro do Duque de Westwood e lhe aconselho a sufocá-las. O jovem Darron está noivo há quase um ano, e em nenhum momento apresentou-se diante de mim com o desejo de tornar-se seu pretendente. Ele não a quer, Eleanor, não de forma honrada.

As palavras de meu pai partiram meu coração e ele percebeu, embora eu tivesse feito o possível para disfarçar a mágoa.

— Você é minha única filha — falou, com um suspiro — Com o sangue do próprio Carolus Magnus correndo em suas veias, somente um rei seria digno de casar-se com você.

— Compreendo — minha voz falhou.

— Rei Olivier é jovem, está em seu vigésimo terceiro aniversário, mas é prudente e honrado, um verdadeiro guerreiro — em um gesto de afeição, ele segurou minha mão sobre a mesa — O casamento de vocês consolidará uma união entre nossos reinos, e será mais fácil resistirmos contra rei Raynald e o reino de Resa caso tente novamente nos atacar.

Ergui-me da cadeira, subitamente nervosa.

— Não sei se conseguirei, pai — senti as mãos geladas — Não quero ir, não estou pronta... Irei falhar em meus deveres!

Em questão de segundos meu pai já estava de pé e com as mãos em meu ombros, fazendo com que olhasse em seus olhos.

— Você passou a vida inteira aprendendo como governar — sua voz era uma mistura de severidade com gentileza, estava retirando paciência das próprias entranhas para lidar comigo, eu sabia — Sua avó a ensinou, eu a ensinei quando pude. Seu tio a ensinou também, embora de formas diferentes — respirou fundo — Preciso que deixe a menina para trás e deixe uma rainha nascer, e preciso que faça isso agora.

Estremeci. O incerto me assustava e eu nunca gostei de tentar viver algo diferente. Mudar de reino, assumir a posição de rainha, casar com um desconhecido e nunca mais ver minha família, isso era aterrorizador. Eram muitas mudanças, todas de uma vez.

Entretanto, não tinha escolha. Era o fardo de ser a filha de um rei, o fardo de ser uma princesa real, então eu assenti.

— Irei para Anglicourt de cabeça erguida, senhor meu rei e pai — falei — Irei governar ao lado do rei.

O orgulho nos olhos de meu pai me fez saber que a resposta fora satisfatória.

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— Você já estava sabendo que meu pai iria me casar com o rei de Anglicourt? — perguntei, enquanto recarregava a besta em minhas mãos.

Desviei brevemente o olhar da arma para observar Nathaniel acertar um dos alvos com a sua. Estávamos em área aberta, o local perfeito para treinos com bestas e arcos — o que fazia com meu tio desde que eu tinha onze anos. Espadas não me interessavam, eram armas brutas que não despertava-me o desejo de aprender.

— Sabia que ele lhe casaria com alguém importante, mas não que seria Olivier — Nathaniel respondeu, abaixando a besta — Acredito que irá gostar dele, irmã. O conheci há seis meses, quando nos juntamos a Anglicourt contra Raynald de Resa. Você sabe, não é? A doença não o impede de liderar pessoalmente seus homens em batalha, embora algumas vezes cobre caro dele depois. Eu realmente o admiro.

— Como ele é? — não posso negar que estava curiosa, e mal notei quando a indagação apressada saiu de meus lábios.

Meu tio se posicionou e atirou mais uma vez ao alvo antes de responder.

— Pareceu-me um homem honrado e corajoso. Nobre. Um temperamento digno de um rei sagrado cavaleiro — deu os ombros — Fala sempre em uma voz suave, quase gentil. Me deu sono quando o ouvi falar.

Pensei em perguntar se Olivier IV era bonito, porém contive a língua; Nathaniel zombaria de mim durante muito tempo caso o fizesse. Ergui a besta, então, e a posicionei, mirando calmamente, com olhos atentos, e atirei. Bem no centro do alvo.

— Você seria uma grande adição ao nosso exército! — Nathaniel riu, aplaudindo.

— Muito sangue, muita sujeira e risco altíssimo de morte? Não, obrigada — falei, franzindo o nariz em desgosto.

— Uma pena, pois, além de ter ótima mira, você também sabe usar muito bem os punhos — ele falou, em um tom indiferente, mas eu soube exatamente ao que ele estava se referindo.

— Calado! — ergui a voz e ri, apertando seu braço.

Nathaniel voltou a ficar sério e me encarou com seus olhos claros. Ambos, meu pai e ele, tinham os olhos azuis. Já eu herdara os olhos escuros de minha falecida mãe.

— Sentirei sua falta — ele disse — Mas sei que você será uma rainha maravilhosa.

Emocionou-me brevemente esse súbito sentimentalismo de Nathaniel. Não que ele nunca tenha sido um tio carinhoso, ele sempre fora, tratando-me algumas vezes como filha e algumas vezes como uma irmãzinha mais nova, mas suas palavras nas vésperas de eu partir de Darian se afundaram em meu coração.

Sem dizer nada, deixei a besta no chão e passei os braços ao seu redor. Nathaniel não hesitou me abraçar de volta, beijando meus cabelos.

— Amo você — murmurei, ainda o abraçando.

— Também amo você, Nell — ele disse, usando meu antigo apelido, e em seguida se afastando.

— Como é Anglicourt? — perguntei, pegando novamente a besta e a deixando sobre a mesa de madeira que havia sido colocada ali perto.

— Não é muito diferente daqui — foi sua resposta, enquanto colocava sua arma ao lado da minha — Na verdade, é até mesmo parecido.

— Então facilitará minha adaptação — suspirei, deixando minha postura descansar e encostando na mesa — Tem mesmo certeza que Olivier é um bom homem?

— Ele me pareceu ser — pacientemente, Nathaniel respondeu — Não precisa se preocupar com ele — lançou-me um sorriso tranquilo.

Sempre que conversava com Nathaniel, conseguia perceber claramente o grande monarca que ele seria um dia. Seu porte alto e forte, juntamente com a espada que sempre portava e a voz poderosa evidenciavam que era um guerreiro, mas suas palavras demonstravam o grande diplomata que era.

Eu me orgulhava de ser sua sobrinha.

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Olivier IV era rei de Anglicourt. Havia sido coroado aos treze anos, após a morte do pai; porém, só assumiu seus deveres um ano depois, se tornando um rei adolescente. No início, houveram muitas dúvidas sobre sua capacidade de governar devido sua pouca idade. Porém, atualmente todos conheciam a história de como ele, aos dezesseis anos, comandara pessoalmente seu exército no evento que ficou conhecido como a Bataille du Montvert, conseguindo uma grande vitória sobre o rei de Resa — que há anos estava por trás de vários conflitos.

Havia apenas um problema, a meu ver, que rei Oliver não venceria com sua coragem: a Syndrome de la Sueur Sanglante, Síndrome do Suor Sangrento.

Todos já sabiam que o monarca de Anglicourt sofria com esta doença, diagnosticada antes mesmo que ele ascendesse ao trono, e que causava febres, tremores, suor frio e machucados sobre a pele em pústulas sangrentas — daí vinha o nome, e geralmente bastava um leve resfriado para que uma crise começasse.

Perguntava-me como conviveria com o rei. Se ele fosse realmente uma boa pessoa, talvez formássemos uma amizade, e talvez eu pudesse ajudá-lo.

Desde os seis anos comecei a ser ensinada a ler e escrever em inglês, francês, latim e grego. De acordo com meus tutores, demonstrei grande talento com línguas, como era esperado de alguém da Casa Real. Gostava de História Antiga, onde também me destacava, e amava música. Minha avó adorava me ouvir tocar flauta e harpa, dizia que herdei esse talento de minha mãe.

Por todos esses anos de aprendizado, conhecia minhas habilidades — apenas me sentia insegura de colocá-las em prova, isso eu não queria. Indo para um lugar desconhecido, tinha duas alternativas que facilitariam minha nova vida: conseguir que o próprio rei me amasse ou ao menos desejasse, ou ganhar a simpatia da corte. Caso conseguisse ambos, seria lucro, mas não era tão presunçosa ao ponto de afirmar que ganharia a paixão do rei — raros eram os casos em que isto acontecia. Com a corte, porém, teria a maior chance de conseguir afeição, afinal, entre tantos nobres, ao menos alguns poderiam gostar de mim.

Foi pensando em tudo isso que me coloquei de joelhos em meu quarto e comecei a rezar. A maioria das pessoas gostavam de rezar nas igrejas ou na presença de algum membro do clero, porém eu gostava de fazer isso sozinha. Apenas Deus e eu.

Olá, leitores!

Deixando aqui uma breve nota dizendo que se por acaso quiserem ver o dreamcast e os edits e gifs que fiz para essa estória, eles estão agora nos dois capítulos especiais que possuem os símbolos de flores no título!

Espero que tenham gostado do primeiro capítulo e aproveitem a leitura!

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