🔥54 - Uma alma perdida
O sol brilhava alto no céu.
O calor constante queimando a pele, os lábios rachados e secos, as pernas bambas, não havia nada além de areia. Ela já havia visto aquela cena. Já havia passado por tudo aquilo. Era como estar vivendo tudo outra vez, mas não havia ninguém para carregá-la nas costas desta vez.
Ygritte estava sozinha.
Como sempre esteve.
Sua pele branca estava vermelha e queimava tanto que mal podia encostar. Não caiu de insolação como da outra vez, o que ela pensava se era bom ou ruim. Era como se estivesse em Fegefeuer.
Ela havia morrido?
Não... tinha conseguido escapar dos untotes. Correu pelo deserto sem parar durante a noite toda ouvindo o rosnar e uivos de lobos a rondando. Ela esperava encontrar Wustental, mas quando a noite terminou e ela pôde finalmente ver onde estava, só via areia.
Seus pés doíam, ela estava descalça. Ela foi se livrando das peças mais apertadas tentando espantar o calor escaldante. Já não sabia quantas noites ou quantos dias haviam passado. Talvez tudo aquilo fosse apenas um delírio de sua cabeça e ela iria acordar em sua cama, ao lado de Samir.
Em determinado momento, suas pernas fraquejaram e ela caiu de joelhos na areia. Exausta. Onde estava Wustental? Ou o rio, ou alguma caverna para se esconder do sol? Por que Erste havia sido tão cruel com ela? Ela iria morrer ali daquele jeito? Sozinha mais uma vez?
Ela se curvou para a frente e apoiou a testa na areia, tentando chorar pelo menos, seu corpo queimado e desidratado não conseguia nem expelir uma lágrima, apenas o grito abafado que custava a sair de sua garganta.
— Já vai desistir, Damares? — Ela ergueu seu olhar na direção da voz e duvidou de si mesma. A verdadeira Ygritte diante dela, usando um vestido branco esvoaçante, os cabelos longos e dourados, os olhos verdes claros. Ela sorria de forma gentil e parecia não sentir o calor escaldante do deserto.
— Você... Aqui? — Ela tentou erguer o corpo fraco e firmou o olhar para a mulher que tremulava com o calor que saía do chão.
— Sempre juntas, lembra?
— Por que?
— Porque somos amigas, ora essa!
— Não... por que está aqui?
— Eu vou te ajudar a achar o caminho de volta.
— Para onde?
— Para casa.
— Não posso voltar... Eisenhower...m-mortos vivos. — Ygritte dizia com dificuldade, as palavras mal saíam de sua boca.
— Oh... querida. — A mulher andou na direção da ruiva e segurou sua mão e começou a guiá-la pelas areias. — Tem sido tão difícil, né? Você tem sofrido tanto.
— Meu filho... eu perdi meu filho.
— Uma pena mesmo. Quer conversar a respeito?
— Eu fiz tantas coisas erradas! Eu matei tanta gente... Eu só agi tentando me defender e livrar-me de situações difíceis.
— Mas todo mundo não é assim? — A verdadeira Ygritte disse gentilmente ainda guiando a ruiva pelo deserto.
— Mas eu fiz pior! Eu enganei, matei, roubei, trai! Eu fui desleal! Eu fui uma pessoa horrível! E eu paguei durante cinco anos! Cinco anos da minha vida, sendo usada e violentada por aqueles porcos!
— Mas a culpa disso não foi sua... né?
Ygritte lembrou-se de Mia. Da expressão de raiva em seu olhar, do desprezo, dos abusos físicos e psicológicos. — Não...
— Foi dela... — A Ygritte verdadeira apontou para frente e a imagem de Mia surgiu no meio do deserto. Tinha o olhar frio e assustador.
— O que faz aqui? VOCÊ TINHA QUE ESTAR MORTA! — A ruiva gritou para a imagem refletida no meio do deserto que foi desaparecendo aos poucos.
— É só uma miragem, vamos... Ainda tenho que levar num lugar.
Elas seguiram caminhando pelo deserto que parecia não ter fim. A cada passo que dava, Ygritte, a ruiva, via reflexos de suas próprias lembranças se projetando no horizonte. Sua mãe, a Casa Flor, a morte de sua amiga, seu primeiro assassinato, Heide, Diana, Klaus, Mia, Samir, Cairo, todo mundo parecia aparecer em algum momento.
A cada passo, as imagens oscilavam, misturando-se como se fossem sombras dançando ao ritmo do vento quente do deserto. Ygritte tentava ignorar as visões, mas era impossível. Cada rosto, cada cena, carregava um peso que ela ainda não sabia como suportar.
A verdadeira Ygritte continuava a guiá-la, o vestido branco permanecendo imaculado, mesmo com a poeira do deserto rodopiando ao redor.
— Está quase na hora. — disse ela, com um tom suave e enigmático.
Ygritte sentiu as pernas fraquejarem novamente, mas a mão da mulher segurava firmemente a sua, puxando-a para frente.
— Hora de quê? — perguntou, a voz rouca pela sede e pelo cansaço.
— De encontrar a verdade.
As palavras deixaram um arrepio em sua pele que não tinha nada a ver com o calor abrasador. Atravessaram uma duna e, no topo, Ygritte viu algo que a fez prender a respiração.
À frente, em meio ao deserto infinito, havia um portão de ferro negro. Alto, imponente, como se pertencesse a uma cidade há muito esquecida. A estrutura parecia deslocada, um pedaço de civilização encravado na areia dourada. Gravuras antigas enfeitavam o metal frio, contando histórias que ela não conseguia compreender.
O que é isso? — Ygritte perguntou, o coração martelando no peito.
A verdadeira Ygritte sorriu, mas seus olhos pareciam sombrios.
— O fim. Ou o começo. Depende do que você escolher.
A ruiva hesitou. — O que há do outro lado?
A mulher segurou seu rosto entre as mãos e sussurrou: — A resposta para tudo que você procura. Mas precisa estar pronta para encarar o que vier.
Um calafrio percorreu a espinha de Ygritte. Ela olhou para o portão, depois para a mulher que ainda segurava sua mão. Algo dentro de si dizia que, uma vez que cruzasse aquele limiar, não haveria volta.
Mas havia outra opção? Vagaria pelo deserto até seu corpo desistir?
— De que verdade está falando? — A ruiva perguntou ainda hesitante.
— Só existe uma verdade.
Engolindo seco, ela respirou fundo e deu um passo à frente, tocando o ferro frio do portão.
E empurrou.
Ela paralisou diante do que viu. Seu corpo inteiro parecia amortecido. As dores pareciam que iam se dissipando aos poucos, mas seus olhos ainda não acreditavam no que via.
— O que significa isso? — Ela perguntou se virando para a mulher que a acompanhava que de repente, transformou-se diante de seus olhos.
A figura agora tinha os cabelos negros que desciam até o chão, de um preto tão absoluto que parecia a própria escuridão, tinha 3 metros de altura, seus olhos também era um preto profundo como se não houvesse nada ali, tinha a pele pálida, as unhas longas e pretas, o vestido era fluido, de mangas longas que tremulavam em seu corpo como se fossem sombras. Seus lábios tinham um batom preto.
Ela virou seu corpo na direção de Ygritte e parecia que seus pés não tocavam o chão. A voz saiu antes que sua boca se mexesse. Um som gélido, similar a um arranhar de unhas num quadro negro.
— Damares...
— Quem é você? — Ygritte perguntou sentindo o medo tomar conta de seu corpo.
— Eu já tive muitos nomes... Peste, fome, medo... Morte...
Ygritte sentiu o arrepio percorrer por seu corpo, as mãos tremiam e suas pernas mal sustentavam seu corpo. Seu estômago parecia revirar. Ela teve ânsia de vômito, mas não saía nada. Ela sentiu o desespero. Olhou ao redor buscando para onde fugir, enquanto a criatura a olhava com aqueles olhos vazios.
A ruiva saiu correndo na direção do portão de ferro e tentou empurrar esmurrando sem parar, até suas mãos sangrarem.
— ME TIREM DAQUI! ME TIREM DAQUI! POR FAVOR! ISSO É UM SONHO, TEM QUE SER! ALGUÉM ME AJUDE.
Quando ela se deu conta de que a ajuda não veio ela sentiu o corpo pesar bruscamente e caiu de joelhos no chão. Sentia dor em seu peito como se seu coração estivesse despedaçando dentro de seu peito.
A criatura deslizou na direção dela, o céu acima delas ficou escuro, e tudo ao redor parecia cinza, num tom triste e sem vida. As mãos longas tocaram o ombro da ruiva e depois tocou sua mão e a ergueu do chão.
— Venha, querida.
— Por que? Por que?
— Com o tempo fica mais fácil.
— Eu não aceito! — Ygritte chorava copiosamente enquanto a criatura a guiava segurando sua mão.
As enormes dunas de areia foram se transformando em um lugar árido, com árvores secas. Não havia nenhum som além do choro de Ygritte. Depois de um longo trajeto, elas chegaram a beira de um lago escuro, onde um ser coberto por um manto negro a aguardava segurando uma lanterna em suas mãos. Ao lado dele um grande barco e a frente não havia nada mais que escuridão.
— Diga para mim que isto é um sonho e que vou acordar em breve... por favor... — A voz de Ygritte estava cansada, assim como seu corpo. Ela sentia um sono que mal conseguia manter os olhos abertos.
— Não é, criança. Eu sei que está doendo agora, mas logo você irá entender. Não haverá mais dor e nem sofrimento.
— Como pode não ser um sofrimento? Depois de tudo que passei, apenas me sobrou a morte?
— A morte para você não foi um alívio? De tantas vezes que a desejou, de como você sofreu. Quantas vezes não chorou implorando que eu a levasse?
— Mas por que agora?
— Porque sua jornada naquele mundo se encerrou, e agora... a sua jornada será daqui em diante, a partir deste lago, dentro deste barco.
— Eu... estou com medo! — Ygritte segurou firme a mão de Tod que secou, colheu uma lágrima que escorria em sua face e a jogou no lago.
— Este lago é feito de lágrimas. Dos que já partiram desta vida e também daqueles que ficaram, chorando em luto pelos que amavam.
— Não haverá ninguém para chorar por mim. No fim, eu terminei sozinha, sem ser amada por ninguém, sem propósito! Como pode haver alguma justiça, ou razão nisso? Onde estavam os deuses quando eu mais precisei, onde estava Erste?
— Não podemos interferir no livre arbítrio, cada escolha que você fez te levou ao caminho que chegou.
— Mas vocês sabiam! Todos vocês sabem quando vamos nascer, morrer, e o quanto vamos sofrer! Controlam nossas vidas, nos queimando como uma luneta ao sol num formigueiro! Eu não posso... aceitar... uma coisa dessas! — Ygritte dizia pausadamente em cada soluço enquanto as lágrimas continuavam a cair.
— E de que adiantaria dizer a você o que iria acontecer? Ou quando iria morrer? Acha que no fim mudaria o resultado? Te impediria de morrer?
— Eu queria ter tido uma vida feliz. Uma família, um amor, uma vida digna de viver!
— O seu ciclo terminou, querida Damares. E entendo que esteja com medo. Temer o desconhecido é algo humano. Faz parte da vida. Deve subir no barco querida, e fazer a travessia. Segure firme a lanterna que o atravessador tem nas mãos e aconteça o que acontecer não olhe para trás.
— O que tem no fim dessa jornada? Eu... vou para Fegefeuer?
— Mond a aguarda. Só ela pode dizer que caminho deve seguir. Até lá verá sua vida refletida nessas águas, terá tempo de refletir e se arrepender. Se seu arrependimento for verdadeiro, talvez Mond tenha piedade de você.
Ygritte sentiu os ombros pesados, mas não sentia mais dor, apenas o vazio em seu coração, o medo do desconhecido. — Como... eu morri?
— Você terá o direito de escolher se quer ver ou não, mas tente manter a calma, não se desespere, ou será puxada para o fundo e sua alma se perderá para sempre. Presa eternamente em seus arrependimentos.
— Eu não vou mesmo voltar, né? É mesmo o fim...
— Não há retorno para o mundo dos vivos. Uma vez que se inicia a jornada, só tem como ir para a frente.
Ygritte seguiu até o barco e subiu devagar se apoiando na embarcação, estava usando um vestido cinza, ou seja lá que cor ele era. Tudo ali era cinza. O atravessador lhe entregou a lanterna e moveu o barco lentamente até a água. Damares, a ruiva, que por muito tempo foi chamada de Ygritte, encerrou sua jornada e começou uma nova a bordo daquele barco. Em direção ao vazio, ao desconhecido, ao pós morte. Seria julgada por Mond e sua alma perdida encontraria finalmente um destino.
Só lhe restou apenas o arrependimento.
(...)
O homem cavava o buraco cada vez mais fundo, jogando a areia para por cima dos ombros, o sol estava se pondo lentamente no horizonte, por detrás de Wustental. Ele secou o suor de sua testa e olhou o cadáver enrolado num pano encardido. Ele não quis deixar o corpo ali, achou que merecia pelo menos um enterro, mesmo que não soubesse o nome, ou de onde ela veio.
Seu companheiro de viagem, que havia parado para dar um pouco de água a um de seus camelos, o meio de transporte comum entre os nômades, se aproximou do homem com o olhar espantado.
— Por Erste! O que aconteceu aqui?
— Estou apenas dando um enterro a esta pobre mulher. — O homem continuava a cavar cada vez mais. Até encontrar um pouco de terra firme debaixo daquela enorme quantidade de areia e continuou a cavar. — Venha, me ajude a cavar.
O outro desceu as dunas de areia para dentro do enorme buraco e começou a ajudar o homem a cavar. — O que houve com esta mulher?
— Encontrei seu corpo a pouco mais de 500 metros de Wustental. O deserto a levou. Ela parece ter lutado com lobos no caminho, parte de sua perna e rosto foram devorados. Não sei ao certo...
— Você às vezes é nobre até demais.
— Apenas estou lhe dando um enterro, só Erste sabe o quanto esta alma estava perdida.
Quando terminaram de cavar, ambos subiram o monte de areia até a superfície, pegaram o corpo da mulher e jogaram na cova e começaram a cobrir até que toda terra e areia estivessem nivelados.
O homem caminhou até seu camelo, pegou duas tábuas que ele havia buscado na cidade, pregou as duas em forma de cruz e fincou na areia fofa. Tentando enterrar o mais fundo que conseguia. Em seguida, ele tirou da algibeira que carregava um pequeno pedaço de carvão e escreveu:
A RUIVA, UMA ALMA PERDIDA. ESPERO QUE TOD TENHA LHE MOSTRADO UM CAMINHO.
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