🔥35 - A caça e a caçadora
Aos pés de uma montanha nevada, onde árvores quebradas se espalharam como sentinelas caídas, Mia jazia de barriga para cima. A dor lancinante de sua perna quebrada era quase insuportável, mas o frio crescente da hipotermia começava a dominar seus sentidos, tornando-se uma ameaça ainda maior.
Flocos de neve caíam suavemente do céu, cobrindo seu corpo com um manto gelado. Ela podia ver a lua brilhando em meio às nuvens no céu noturno, uma pequena luz de esperança em meio à escuridão e ao frio. Cada respiração era um esforço, cada movimento, uma batalha. O estado físico de Mia era crítico. A dor era intensa, irradiando por todo o corpo e dificultando qualquer movimento. A perna estava torcida em um ângulo anormal, torcida para fora, e o inchaço começava a se formar ao redor da fratura. Cada tentativa de mexer-se resultava em uma onda de dor que a fazia gemer involuntariamente.
Além da dor física, Mia estava lutando contra a hipotermia. Seus lábios estavam azulados e sua pele, pálida e fria. Tremores involuntários percorriam seu corpo enquanto ela tentava, em vão, se aquecer. Seus dedos e pés estavam dormentes, e a sensação de formigamento indicava que a circulação estava comprometida.
A respiração de Mia era superficial e irregular, cada inspiração parecia um esforço monumental. Seus olhos, embora abertos, estavam vidrados e desfocados, refletindo a exaustão e o desespero que sentia. O frio estava lentamente drenando suas forças, e ela sabia que precisava de ajuda rapidamente, ou não sobreviveria à noite.
Ao seu redor, a paisagem era um cenário de desolação e beleza ao mesmo tempo. A montanha se erguia majestosa, coberta por um manto branco de neve que brilhava sob a luz fraca da lua e das estrelas. As árvores ao redor, muitas delas quebradas e caídas, pareciam sombras esqueléticas contra o fundo nevado. Como se seu próprio estado não fosse aterrorizante o suficiente.
O chão estava coberto por uma espessa camada de neve, que absorvia os sons e criava um silêncio quase absoluto. O ar era frio e cortante, cada respiração de Mia se transformava em pequenas nuvens de vapor que se dissipavam rapidamente. Ao longe, as montanhas se estendiam em uma cadeia interminável, suas silhuetas escuras contrastando com o céu estrelado.
Ela parecia não pensar em nada ou pensar em tudo ao mesmo tempo. Muitas coisas passavam em sua mente. Ela pensava na morte, em todos os seus arrependimentos. Mia sentia o peso de suas escolhas, cada erro e cada momento de dúvida. Cada momento que ela poderia ter feito diferente. O frio penetrava seus ossos, e a escuridão ao seu redor parecia refletir dentro de si. Ela se perguntava se alguém a encontraria, se alguém sentiria sua falta. Se alguém choraria por ela. Pensou em Egon, em sua mãe. Queria poder voltar no tempo.
Enquanto os flocos de neve continuavam a cair, Mia fechou os olhos, tentando encontrar um pouco de paz em meio ao caos de seus pensamentos. Será que ali seria seu fim? Um fim patético? Sozinha, com frio, com medo e cheia de arrependimentos.
Mia lutava para manter a consciência enquanto o frio e a dor ameaçavam dominá-la. Seus pensamentos eram um turbilhão de memórias, mas ela sabia que precisava se concentrar em sobreviver. Cada segundo que passava parecia uma eternidade, e a escuridão ao seu redor só aumentava sua sensação de isolamento.
De repente, ela ouviu um som distante, quase imperceptível. Era um som de passos na neve, um som que lhe deu uma centelha de esperança. Mia tentou gritar, mas sua voz saiu fraca e rouca. Ela reuniu todas as suas forças e tentou novamente, desta vez conseguindo emitir um som um pouco mais alto.
Os passos se aproximavam, e Mia sentiu uma mistura de alívio e medo. E se fosse um animal selvagem? E se fosse alguém que não pudesse ajudá-la? Mas ela não tinha escolha. Precisava de ajuda, e qualquer ajuda era melhor do que nenhuma.
Finalmente, uma figura apareceu na borda de sua visão. Era um homem, vestido com roupas de inverno pesadas, carregando uma lanterna que lançava um brilho quente na neve ao seu redor. Ele se aproximou rapidamente, ajoelhando-se ao lado de Mia e examinando sua condição.
— Está viva. — A sensação de alívio logo foi embora. O sorriso do homem não lhe transmitia segurança. Lembrou dos Porcos que estupraram mulheres moribundas nas ruas de Graben.
— Por favor, me ajude. — ela sussurrou, sua voz fraca e trêmula.
O homem não disse nada. Ele se abaixou e a olhou por um momento, seus olhos frios e avaliadores. Antes que Mia pudesse reagir, ele a agarrou pela perna quebrada e começou a arrastá-la pela neve. A dor foi tão intensa que ela quase desmaiou. Tentou gritar, mas sua voz foi engolida pelo vento.
Ele a arrastou por um caminho íngreme até uma velha cabana no alto da montanha. A cabana parecia abandonada, com janelas quebradas e a madeira desgastada pelo tempo. O homem abriu a porta com um chute e arrastou Mia para dentro.
O interior da cabana era sombrio e desolado. As paredes de madeira estavam cobertas de mofo e teias de aranha, e o ar tinha um cheiro forte de umidade e abandono. Havia uma lareira de pedra no canto, mas estava apagada e cheia de cinzas antigas. O chão de madeira rangia a cada passo, e algumas tábuas estavam soltas ou quebradas.
No centro do cômodo, havia uma mesa velha e desgastada, com uma cadeira de madeira ao lado. A mesa estava coberta de poeira e havia marcas de copos e pratos antigos. Em uma das paredes, pendia uma prateleira torta com alguns livros empoeirados e objetos aleatórios, como uma lanterna enferrujada e uma caixa de fósforos.
Ele a arrastou mais um pouco jogando-a em um quarto pequeno e escuro. Sem dizer uma palavra, ele trancou a porta e foi embora, deixando Mia sozinha na escuridão. Ela tentou se mover, mas a dor era insuportável. Estava trancada, sem saber o que aquele homem pretendia. O frio da cabana era quase tão intenso quanto o da neve lá fora, e ela sabia que precisava encontrar uma maneira de sair dali antes que fosse tarde demais.
O quarto onde Mia foi jogada era pequeno e claustrofóbico. Havia uma cama de ferro com um colchão fino e sujo, coberto por um cobertor esfarrapado. Uma pequena janela, com vidros quebrados, deixava entrar um pouco de luz, mas também permitia que o vento frio soprasse para dentro. No canto do quarto, havia um balde velho, provavelmente usado como banheiro improvisado.
Mia ficou ali sozinha, sentindo a dor pulsar em sua perna quebrada. O tempo parecia se arrastar, cada minuto se transformando em uma eternidade. O frio penetrava cada vez mais fundo em seus ossos, e ela tremia incontrolavelmente. A escuridão do quarto e o silêncio opressivo só aumentavam sua sensação de desespero.
De vez em quando, ela ouvia vozes ao longe, indistintas e distorcidas, como se viessem de um sonho. Eram murmúrios que ela não conseguia entender, mas que a faziam sentir ainda mais isolada e apavorada. Passos ecoavam pelo chão de madeira da cabana, aproximando-se e depois se afastando, como se alguém estivesse andando de um lado para o outro.
A dor e o frio começaram a afetar sua mente. Mia sentia-se à beira da inconsciência, sua visão ficando turva e seus pensamentos confusos. Ela lutava para se manter acordada, mas a exaustão e o sofrimento eram quase insuportáveis. Cada vez que fechava os olhos, tinha medo de não conseguir abri-los novamente.
O tempo passava, e Mia não sabia quanto tempo havia ficado ali, sozinha e sofrendo. As vozes e os passos ao longe eram seu único contato com o mundo exterior, mas não traziam conforto, apenas aumentavam sua sensação de abandono. Ela sabia que precisava encontrar uma maneira de escapar, mas a dor e o frio tornavam cada movimento um desafio quase impossível.
Mia ouviu as vozes se aproximando, cada vez mais claras e distintas. Seu coração acelerou, mas sua mente parecia envolta em uma névoa. A dor e o frio haviam drenado suas forças, e ela mal conseguia manter-se acordada.
A maçaneta da porta girou lentamente, e o som do trinco sendo destrancado ecoou pelo quarto. Mia tentou se mover, mas seu corpo não respondia. Ela queria desesperadamente fugir dali, mas suas pálpebras pesavam como chumbo, e seus pensamentos estavam lentos e confusos.
A porta se abriu com um rangido, e uma figura entrou no quarto. Mia tentou focar a visão, mas tudo parecia embaçado. Ela sentiu uma mistura de medo e esperança, sem saber se aquela pessoa vinha para ajudá-la ou para causar mais sofrimento.
Seus olhos se fecharam por um momento, e ela lutou para mantê-los abertos. Cada segundo parecia uma batalha contra a escuridão que ameaçava engoli-la. Ela sabia que precisava reagir, mas seu corpo estava exausto e sua mente, à beira da inconsciência. Sussurros e fragmentos de frases. Não dava nem para distinguir vozes.
... Ela é de Würzen...
Olhos de engeliana...
É uma delícia.
Tiramos a sorte grande
Veja os seios dela...
Ela dormia e acordava. Estava quase morta. Imagens distorcidas, o teto se movimentando devagar e aumentando a frequência. O homem em cima dela. Dormia e acordava. Já era dia? Ou era noite? Já não sentia mais nada. Tudo parecia amortecido em seu corpo. Deitada de barriga para baixo sobre a cama de ferro, vendo a sombra do homem sobre ela e o vai vem da cama. O barulho constante e o ranger das molas. Era isso, não é? Eles estavam mesmo fazendo isso.
É a minha vez...
Olha esse corpo...
Tem que aproveitar antes que ela morra...
Morta também dá para foder...
Malditos porcos. Se ela estivesse bem arrancaria o pau deles. Ela fez uma lista das várias formas que desejava matá-los. Mas não tinha mais tempo. Ela iria morrer. De forma patética. Sem um pingo de dignidade. Foi assim que Ygritte se sentiu todas as vezes? Essa vontade de vomitar? Esse nojo? Essa repulsa?
Se Tod quer levar sua vida, faça logo. É melhor morrer logo de uma vez. Quer ouvir que ela se arrepende? Não vai ouvir. Ela fechou os olhos com força e mentalizou onde queria estar. Uma casa grande na beira de um lago, um lugar bem verde como ela viu as gravuras nos livros. Ela sentada numa cadeira de balanço, dentro de um vestido de seda azul. O vento fresco batendo em seu rosto, o cheiro gostoso das flores e de pão andando no forno. Uma sensação de paz. Mentalizou com todas as forças. Talvez Erste a perdoe por seus pecados e ela possa ir para um lugar assim. Ela implorou: Tod, leve minha vida. E de novo: Tod, leve minha vida. E da terceira vez, o movimento constante parou.
— O que é isso? — A voz do homem que a levou para lá. Parecia assustado. Ela teve um momento de lucidez, mas manteve-se imóvel, não conseguia se mexer. Depois ouviu gritos e apagou outra vez.
Dessa vez ela teve um sonho. Fazia muito tempo que ela não sonhava. Um local todo branco. Não havia nada ali. De longe viu uma mulher alta, cabelos vermelhos esvoaçantes, vestido também vermelho, olhos verdes. Ela caminhou até Mia e tocou seu rosto com as duas mãos.
— Ah, minha querida... Está exausta. Não precisa se preocupar mais. Minha querida Moema.
O local branco se transformou num quarto de um Palácio. Ela estava abraçada à mulher. Mas desta vez não era a ruiva. Era Diana, mas tinha os cabelos longos, usando uma camisola de seda branca, apoiando Mia em seu peito.
— Acorda, Mia. Já dormiu muito. Está na hora de acordar. Ou prefere ficar na cama mais um pouco?
A cena se transformou e as duas estavam nuas debaixo dos lençois. Diana olhava para Mia com carinho e depois tocou seu rosto e lhe deu um beijo.
— Mas que merda!
(...)
Mia acordou. Tinha o coração acelerado. Estava deitada na cama enrolada em um cobertor ao lado da lareira. A perna tinha um torniquete. Seu corpo estava aquecido, a cabeça ainda estava zonza mas parecia mais lúcida. Ela olhou ao redor e percebeu que ainda estava na maldita barraca. Não era um pesadelo. Tinha sido real. Ela olhou para seu corpo debaixo das cobertas completamente nu e ficou ainda mais desesperada. Onde eles estavam? Tinha sido real?
— Olha só, você acordou. — Diana estava de pé ao lado da porta segurando um prato na mão com uma camiseta branca folgada marcando os seios e uma calça verde escura. Ela se aproximou devagar com as sobrancelhas franzidas.
— Fica longe de mim. — Mia disse ainda com a voz fraca.
— Está tudo bem, não vou te machucar.
— Quer me matar.
— Eu quero, mas agora não. Não machuco moribundos e miseráveis. — Diana puxou uma cadeira e sentou-se diante de Mia, misturou a gororoba com a colher, assoprou e levou a boca de Mia. — Abre a boca.
— Não vou comer isso, você quer me envenenar.
Diana levou a colher à própria boca e depois mergulhou a colher de novo na gosma concentrada e levou a boca de Mia mais uma vez. — Estou a três dias enfiando comida na sua boca. Se quer fortalecer come logo essa merda.
Mia obedeceu ainda desconfiada e Diana enfiou a colher na boca dela que fez uma careta. — Está horrível.
— Mas está te sustentando.
Mia olhou ao redor assustada e depois criou coragem para perguntar. — Onde eles estão?
— Mortos.
— Quantos eram?
— Três.
— Como você os matou?
— Com bastante crueldade.
— Onde estamos?
— Uma cabana de caçadores, no alto de uma montanha nevada e isolada. — Diana respondia às perguntas como se aquilo fosse algo normal e corriqueiro.
— Estamos em Eiseges Tal?
— Quem dera. Pelo que me lembro sobrevoamos o oceano, até eu perder a forma de dragão, no ar. Mas você não deve lembrar de muita coisa. Caímos de uma altura bem considerável em dois pontos diferentes aos pés dessa montanha. Depois um dos putos te achou e te arrastou pela perna quebrada até aqui. Ia te usar até você morrer. E talvez até depois de morta.
Mia sentiu o nó na garganta se formar. — Como sabe de tudo isso? Usou seu poder de dragão?
— Esfolei eles vivos até me contarem.
— Vai me dizer que me procurou para me salvar porque somos amigas agora?
— Não, eu ia te matar mesmo. Acordei no meio da neve depois de alguns dias. O puto dono da roupa que tô vestindo tava impregnado com seu cheiro. Segui ele até aqui. Quando entrei, um deles estava montado em cima de você.
Mia sentia o estômago revirar só de lembrar. Mesmo que tudo estivesse turvo em sua mente, a sensação ainda estava viva em sua memória. — Me conte detalhes da morte deles.
— Você não vai querer saber.
— Por favor... eu preciso.
Diana encostou na cadeira e deu mais uma colherada no mingau e apontou para a janela. — Eu os confrontei, amarrei os três ali naquela árvore, nus, perguntei a eles qual tinha te sequestrado, quando se recusaram, fui esfolando um deles com essa faquinha. — ela mostrou a faca que ainda tinha vestígios de sangue. — Depois eles começaram a falar. Quando me falaram de quem foi a ideia, cortei o pau dele, e depois peguei um pedaço de lenha e enfiei bem fundo no rabo dele.
— E aí matou eles?
— Não, deixei eles presos ali agonizando. No frio. Se você tivesse acordado há dois dias atrás teria visto eles sofrendo.
— Teria sido maravilhoso. — Mia disse com os lábios trêmulos. — Não tinha que me ajudar, sou sua inimiga.
— Eu não ficaria em paz se visse uma mulher sendo estuprada. Ainda mais você que estava mais morta do que viva. Não suporto esse tipo de coisa. Cresce uma raiva latente em mim. Klaus um dia me disse que isso é ter empatia. Vai ver foi isso. Acho que você também teria feito a mesma coisa se visse uma mulher sendo violentada.
Mia fechou os olhos e sentiu a garganta arder. Ela não teria feito a mesma coisa. Ela não fez a mesma coisa. Muito pelo contrário. Ygritte estaria rindo dela nesse momento. — E por que não me matou logo?
— Não chuto cachorro morto. Eu prometi a mim mesma que não cometeria mais assassinatos. Se eu vou matar você, e eu vou, vai ser numa luta justa. Com você inteira. Até lá vou manter você viva.
Mia se ajeitou sentindo a dor na perna. — Está doendo muito.
— Tem sorte de estar viva e de ainda ter perna. O puto que te trouxe aqui te arrastou pela perna quebrada. Não te deu nenhum cuidado. Acho que é porque você é engeliana, se não fosse estaria morta faz tempo.
Mia olhou o corpo nu debaixo das cobertas e disse com a voz trêmula — Você me achou assim?
— Foi. Eu ia te colocar uma roupa, mas achei melhor te dar um banho quente e manter você aquecida perto do fogo. Trouxe até a cama para cá.
— Se acha que vou te agradecer, esqueça. Não pedi para fazer nada disso.
— Não fiz porque sou legal, vai ficar bem pior do que isso quando eu te der a surra que você merece.
— Eu não tô confortável pelada! Devia ter me colocado uma roupa se queria meu bem estar.
— Eu já disse que tô cagando para o seu bem estar! A questão maior de eu não ter te colocado uma roupa foi porque eu esquento muito fácil e ia começar a suar demais estando vestida.
Mia ficou olhando para Diana tentando entender a informação, enquanto a outra continuava comendo o mingau esbranquiçado. — O que você tem a ver com a parte de eu estar pelada?
— Como você acha que mantive seu corpo magrelo e gelado aquecido? Considerando que a quantidade de lenha que temos por aqui não é muita coisa?
— Você...? — Mia tinha o olhar arregalado já temendo a resposta.
— Tirei a roupa, deitei com você e te abracei, te mantendo aquecida, durante três dias.
— Sua esquisita! Isso é estranho pra caralho! Eu acabei de passar o evento mais traumático da minha vida e você estava se aproveitando de mim?
— E eu lá quero esse corpo magrelo seu? Você é uma ingrata!
— Tem sorte de eu estar com a perna quebrada! Eu iria acabar com a sua raça! Não conta essa merda para ninguém! O que vão pensar? É por isso que eu estava sonhando com você...
Diana ergueu uma sobrancelha e ficou encarando Mia que ficou tão desconcertada que nem terminou a frase. — Tava sonhando comigo? Isso aí é esquisito pra caralho! Como nós duas estávamos?
— Eu não sonhei com você!
— A gente estava fazendo o quê?
— Não vamos mais falar sobre esse assunto!
— Tá bom... mas foi você que disse.
— Muda de assunto! E o que você fez com os corpos? Vão dar falta deles e nos achar aqui. O certo seria irmos embora.
— Eram caçadores, ficavam aqui por temporada. Ou seja, era normal se isolarem nessa cabana para caçar. E com relação aos corpos, eu dei um jeito.
— O que você fez?
— Disso aí você não precisa saber. Toma! — Ela entregou o prato para Mia. — Tem que comer. Para fortalecer.
Mia pegou o prato e mexeu no mingau com cara de nojo. — Eu já comi coisas do lixo mais bonitas que essa.
— Cozinhar não é meu forte.
— Isso aqui é o que?
— Arroz.
— Mingau de arroz?
— Não, é só arroz.
Mia franziu ainda mais a testa e olhou para Diana com indignação. — Você espancou o arroz, ou sua ideia era fazer uma sopa?
— Come logo! Enquanto estiver sob meus cuidados vai ter que se acostumar com a minha comida.
— Me mata logo de uma vez! Ou me tortura!
— Ingrata!
— Ridícula! E me arruma uma roupa! Eu não me sinto bem desse jeito.
— Tá. — Diana saiu e voltou com umas peças de roupas que estavam na cabana. — Isso deve servir, um deles era magricela como você.
Mia colocou o prato de lado e pegou as peças de roupas e ficou olhando para Diana a encarando. — Ao menos vira para lá.
— Que? Tudo que você tem eu tenho. Não é nenhuma novidade para mim. Além do mais te dei até banho!
— Não me lembra disso!
— E agora que está acordada vou ficar de olho em você. Não se esqueça que é só você ficar cem por cento e nós vamos terminar nossa luta.
Mia tirou o cobertor de cima de seu corpo e ficou evitando olhar para Diana que mantinha os braços cruzados a encarando. Mia não teve muitas amigas ao longo da vida, tudo aquilo era estranho para ela. A única pessoa que havia visto ela nua foi Samir. Diana se aproximou e sentou-se diante dela na cadeira.
— Por que eles são tão pontudos?
— O que? — Mia estava com o rosto queimando naquele momento, aquela mulher não sabia o que eram modos?
— Seu peito é pontudo.
— Que tipo de pergunta é essa?
Diana levantou a camiseta e deixou os rosados seios à mostra. Os mamilos eram pequenos e arredondados. — Olha.
— Por favor, se cobre! Você cresceu num estábulo?
— Como você sabe?
Mia havia se esquecido disso. Diana não tinha mãe, e não tinha nem o mais próximo de se ter uma. Havia crescido como um animal selvagem bem adestrado. E graças à mãe de Mia, que vendeu a menina para Heide. Quanta ironia.
— Tá! Se cobre e me deixa eu me vestir.
— Vou te ajudar a vestir a calça. A sua perna ainda tá bem inchada.
— Vai cicatrizar rápido, mas ainda vai demorar uns bons dias. Graças a você e seu dragão, ou seja lá que merda é aquela.
— Foi você que começou!
— Eu comecei o que? — Mia disse franzindo a testa, em seguida cheirou a camiseta, fez uma careta e vestiu a peça de roupa. Diana passava a perna da calça na perna quebrada e depois rasgou até o joelho. — O Klaus foi até mim por livre e espontânea vontade! Daí você vai até o meu QG e mata meus soldados, invade o local, me confronta, vira aquela coisa e me arrasta com você por aí!
— Eu tenho certeza que o Klaus tinha outros planos. Ele jamais se aliaria a uma cretina como você! Além do mais você atirou nele!
— Porque você invadiu o meu território! Eu vou acabar com a sua raça! — Mia pegou uma das camisetas que estava sobre a cama, enrolou no pescoço de Diana e forçou. Mas antes que pudesse tentar aplicar mais força, a rainha bateu na perna quebrada da loba que gritou de dor, caindo para trás – Filha da puta! Sua desgraçada! Tá doendo, porra!
— Isso é para você aprender, sua traiçoeira! Da próxima vez vou bater com mais força!
— Eu não preciso de você! — Mia disse encolhida chorando de dor.
— Dá próxima vez deixo você toda mijada e vomitada!
— Me mata logo!
— Não! Já disse que não bato em cachorro morto! — Diana se levantou e a pegou pelos ombros, a virou para si e segurou seu rosto com uma mão só apertando as bochechas. — Eu não fiz porque sou legal, acha que é difícil matar você? Ainda estando neste estado miserável em que você se encontra? Qualquer outro que saiba da sua fama não teria nem vindo atrás de você, mas eu sou justa! Mas se você continuar dificultando as coisas você vai descobrir que eu não sou os molengas que você está acostumada! Não sou boa como a Veridiana, não sou nobre como o Klaus e sem sombra de dúvidas não sou covarde como a Heide! Eu estou sendo justa com você e te dando a chance de morrer com dignidade em respeito à guerreira que dizem que você é, mas se preferir morrer agora, tenho várias formas de fazer você sofrer.
— Eu te... odeio! — Mia disse tremendo de raiva, seus olhos dourados imersos em lágrimas de raiva, Diana soltou seu rosto e se abaixou perto da lareira e jogou o que antes era uma cadeira, já toda desmontada no fogo. — Eu vou matar você, Sangue de Fogo! Vai se arrepender disso tudo! Eu... passei por tudo isso por sua causa. É tudo culpa sua...
Diana parou o que fazia e ficou ouvindo a mulher chorar. Mia soluçava com os ombros encolhidos, um choro incontrolável misturando ódio, rancor, tristeza e sofrimento. Queria desaparecer do mundo, a pele dela parecia estar impregnada com sujeira e podridão, assim como sua alma. Era a pior sensação do mundo. Diana se levantou e sentou-se ao lado dela na cama e ficou olhando a madeira queimar na lareira.
— Se eu pudesse controlar, eu jamais teria deixado o dragão surgir em público daquele jeito, mas eu não controlo. E com relação ao que aconteceu com você, se eu soubesse que isso aconteceria, eu teria dado um jeito de impedir. Toda vez que eu me transformo leva um tempo para me recuperar. Eu teria dado um jeito. Não deixaria eles fazerem aquilo com você!
— Eu me sinto imunda... Eu me sinto um lixo! E eu me sinto ainda pior porque você me salvou! Você! E se não fosse você eu teria morrido aqui, nas mãos daqueles porcos! E... eu implorei que alguém viesse... mas não você!
— Eu sinto muito por isso.
— Você poderia me deixar aqui! Não tinha que me dar banho, cuidar de mim, me alimentar! Eu não quero dever nada para você! Eu... Não preciso da caridade de ninguém! Eu nunca precisei!
Diana ficou em silêncio por alguns instantes e depois soltou um suspiro pesado. — Tudo que eu queria na vida era ter alguém para cuidar de mim nos momentos mais difíceis. Das vezes que chorei sozinha dentro daquele estábulo, ou quando eu via crianças nas ruas brincando com seus pais. Ao invés de bonecas, eu tinha facas, adagas, e uma lista imensa de formas de matar alguém. Decorei nomes, rostos, eu estudei coisas que acho que nenhuma pessoa normal precisa saber. E quando eu tive pessoas que se importam comigo, eu as perdi. Você tem razão. Em partes a culpa é minha. Mas se serve de consolo, não me deve nada.
— Enfia essa sua empatia no rabo! Me odeie! Odeie como eu odeio você! — Mia firmou o corpo na cabeceira da cama e tentou dar um passo, mas caiu no chão. Diana tentou ajudar a engeliana a se levantar, mas ela bateu em sua mão — Não me toque! Eu não preciso de você... Eu...
Diana mesmo assim a levantou do chão e a levou no colo até a cama e a cobriu. — Vou fazer um chá para você.
— Por que isso tinha que ser assim?
— Eu não sei.
— Para de falar comigo com essa voz de pena. Não preciso disso.
— Não, você não precisa. Apenas descanse, vamos ficar aqui mais uns dias até você poder ao menos ficar em pé direito. Depois damos um jeito de sair deste lugar. Ir até a capital, tentar pegar um navio. Os três cretinos tinham um pouco de dinheiro, mas não vamos muito longe com isso. Quando sairmos daqui, e estivermos em Eisenhower, nós nos enfrentamos até uma de nós morrer. Pode ser assim? — Diana aguardou a resposta de Mia e quando viu que ela não responderia, ela se levantou e seguiu para a cozinha preparar um chá, ou o mais próximo disso.
— Não conta para ninguém... por favor... sobre o que aconteceu comigo. Se eu der trabalho me deixa para trás, e se eu morrer de todo jeito, diga que foi lutando.
— Nunca direi a ninguém, tem minha palavra.
— E onde estamos? Exatamente?
— Eu não disse?
— Não...
— Norwein.
Mia arregalou os olhos e ergueu a cabeça se apoiando na cama com os cotovelos. — O que? Estamos do outro lado do mundo?
— É. Dragões pelo visto voam rápido.
— Mas que merda!
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