🔥31 - O Vale dos Porcos
Veridiana viu a expressão de fúria de Kiran quando deram a notícia da fuga de Diana. A expressão dele era uma mistura de raiva e decepção. Ele ficou um tempo parado e depois olhou para Zeeba e Veridiana.
— Como isso pôde acontecer?
— Não sabemos alteza, ela saiu no meio da noite. Ninguém a viu. — Zeeba disse apreensivo.
— Ela sabe? Sobre o cão? Porque se alguém contou eu mesmo irei decapitar!
— Talvez ela tenha ouvido, majestade. Diana é uma Fúria. Ser furtiva faz parte do nosso treinamento. — Veridiana tentou disfarçar.
— Eu não quero saber. A minha esposa fugiu bem debaixo dos nossos narizes!
— Vamos atrás dela, majestade. Ela não deve ter ido muito longe. — Zeeba tentou argumentar com o rei.
— Majestade, se me permite, acho que ela tem o direito de ir onde quiser. Ela não é sua prisioneira. — Veridiana disse tomando cuidado com cada palavra.
— Veridiana, ela está pondo a vida dela em risco. Além de nos expor.
— Eu me preocupo mais com a vida dos outros do que da Diana. Ela sabe se virar.
— Ela é uma rainha, devia agir como tal. Sair daqui no meio da noite, para quê? Se de fato ela soube que o Cão de guerra está vivo me deixa mais irritado. Ela colocou tudo a perder por um projeto de homem.
— Majestade, com todo respeito, eu vi o cão de guerra em combate, devo confessar que ele vale por um exército inteiro. — Zeeba disse apreensivo.
— Isso não dá a ela esse direito, nós tínhamos que agir com cautela! Se ela estiver mesmo a caminho de Eisenhower podemos perder tudo! Acha que a Loba vai receber ela de braços abertos? E se o dragão surgir? Se as pessoas morrerem? Vocês estão apenas preocupados com os sentimentos de Diana e seu romance de contos de fadas. Nossos inimigos vão se deleitar com isso. Agora saiam! Preciso ficar sozinho.
Veridiana engoliu seco e virou-se apressada para a saída. Não tinha pensado nisso. Estavam em guerra, Diana era uma bomba relógio. Dependendo do que acontecesse, poderia estar tudo perdido.
A engeliana entrou em seu quarto e fechou a porta atrás de si e ficou um tempo com as costas encostadas ali. Ela respirava ansiosa, o que fazer naquele momento? Dizer ao rei furioso que ela favoreceu a saída furtiva de sua esposa no meio da noite e ser severamente punida?
Ela caminhou até a cama e se jogou sobre ela lutando para que a respiração voltasse ao normal. Sua atenção voltou para a porta quando Zoe entrou eufórica.
— Amor, você não vai acreditar! Você acredita que eu e a Missai... — Zoe começou uma longa narrativa sobre um evento no laboratório que Veridiana não prestou atenção. Estava exausta.
Veridiana gostava de perfeição, de tudo correto, de regras. Havia sido treinada para isso. Então quando algo saía dessa linha ela ficava perdida. Ansiosa. Ela ergueu o corpo na cama apoiando-se sobre os cotovelos e encarou Zoe, mas parece que não conseguia ouvir. Queria sair dali. Daquele quarto, daquele Palácio, daquela província gelada dos infernos. Ir para um bar qualquer e encher a cara de rum até esquecer o seu nome. Será que Eiseges Tal tinha bar pelo menos?
Ela odiava aquele lugar. Havia aprendido a viver ali quando suas opções se tornaram poucas e quando a esperança de se encontrar a Sangue de Fogo aumentou. Mas odiava aquele lugar. Tudo era limpo demais, branco demais, certinho demais. As pessoas andavam nas ruas com os narizes para cima, desfilando. Queria estar em Eisenhower, naquela bagunça de Graben.
Rindo das piadas de Ragnar, das ideias malucas de Hebe, do jeito tímido de Egon, da sopa de batatas da Missai, do olhar doce de Valkiria. Sentia falta até mesmo de Mia. Era uma garota esperta, tinha um olhar curioso e aprendia tudo com facilidade, do dom que ela tinha para remendar roupas, costurar peças novas, ela sabia diferenciar tecidos como se tivesse vivido em Pantheon. E o conhecimento que ela tinha era apenas de achar roupas velhas no lixo. Sentia falta até disso.
Sentia falta dos Lobos Negros, de como era naquela época. Não havia nada, somente a vontade de ser livre, de ter uma refeição decente. Quando foi que a luta para ajudar os necessitados virou uma guerra?
— Veridiana? — Zoe encarava a namorada com as sobrancelhas franzidas e braços cruzados.
— Sim?
— Eu to falando com você. Dá para prestar atenção no que eu falo de vez em quando?
— Desculpe... dia difícil. Sabe como é.
— Não, eu não sei. Porque você nunca fala.
— Zoe, eu não gosto de te colocar nessa bagunça.
— Eu sou sua namorada e não sei absolutamente nada sobre você! Nunca me diz sobre seu dia e nem sobre seus problemas.
— Os problemas sempre ficarão fora desse quarto.
Não era sobre isso que Zoe falava. Era sobre a distância que Veridiana colocou ao redor de si. Tudo que ela dizia ou fazia era contido e ponderado. Como se Zoe fosse uma boneca frágil de porcelana.
— Veridiana, você me ama? — A pergunta de Zoe veio como um gancho de direita no queixo.
— Que pergunta meu amor. Claro que amo!
— Não acho. Você tem dó de mim. Porque eu perdi uma perna. Porque você me viu sofrendo e se sensibilizou. Se sente responsável por mim.
— Zoe, isso é um absurdo. Não tem nada disso.
— Mas é como eu me sinto. Seus olhos até brilham quando você fala da sua ex. Na verdade, brilham mais ainda quando você vê a Diana lutando, ou quando ela está por perto. Até quando fala da Mia seu olhar muda. Mas comigo está sempre com o mesmo olhar.
— Pelo amor de Erste! Que olhar? Está me dizendo que eu tô afim da Diana e da Mia? Faça-me o favor!
— Não! Mas você admira! Nem seja na base do ódio como é com a Mia, mas elas significam alguma coisa para você. Eu só recebo um olhar de pena! Parece que eu só fiquei com as sobras. E sem contar o rei. É só ele estalar os dedos e você vai como um cachorrinho. — Zoe tremeu os lábios e sentou-se na cama ao lado de Veridiana.
— Zoe eu... — Veridiana levantou o braço para abraçar a namorada.
— Parece que não sente nada. Parece automático para você. Você não sente nada.
— Está sendo muito injusta, Zoe! — Veridiana encheu os olhos de lágrimas. — Não faz ideia do quanto eu sofro!
— Você não compartilha comigo!
Veridiana não queria prosseguir aquela discussão. Tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo e Zoe cobrando uma DR que não fazia sentido algum para Veridiana. Ela se levantou e seguiu para a porta sem olhar para a namorada.
— Onde você vai, Veri?
— Tomar um ar.
— Volta aqui, vamos conversar! Ainda não terminei!
— Não!
Veridiana saiu pelos corredores do palácio dando passadas largas. Odiava aquele lugar, aquelas paredes, aqueles quadros. Lugar gelado do caralho. Ela saiu do Palácio depois de um bom tempo em meio às esculturas de gelo e seguiu até Valdrer e Kara. Os dois estavam na parte de fora do Palácio, num ferreiro. Valdrer estava ensinando à namorada a arte da cutelaria. Todo mundo ali parecia se encaixar.
Ela seguiu mais um pouco, queria se afastar daquela perfeição toda. Ir para longe dali. As ruas de Eiseges Tal estavam impecáveis como sempre. As pessoas passavam por Veridiana com os narizes franzidos como se estivessem sentindo o pior odor do mundo. Tecidos caros, casacos de pele, joias, penteados, chapéus caros, mais joias.
Ela passou em frente a uma vitrine. Uma loja de doces finos, com sobremesas que nem pareciam que eram de comer. Ela olhou seu reflexo no espelho, roupas de tecidos nobres. Sentia-se uma vendida. Ela continuou caminhando, e caminhou por mais um longo tempo. Até começar a se afastar do Lila Palast. Em determinado momento, toda a ostentação da cidade, com seus mármores brancos, vidraças coloridas deu lugar a casas simples.
Veridiana nunca havia saído do centro se Eiseges Tal, e à medida que já se afastando, as ruas pareciam que iam declinando. Uma ladeira que ia até um bairro que ela nunca teve conhecimento. Barracas nas ruas, pessoas de todas as etnias, de todos os países. Tudo ali era colorido, haviam crianças brincando nas ruas. Idosas sentadas nas portas de suas casas vendo o movimento. Tudo tumultuado, tudo barulhento.
Pela primeira vez desde que havia chegado até ali, ela se sentiu em casa.
O cheiro de espetinhos e de comida gordurosa. Roupas simples e crianças nas ruas brincando. Ela andou naquele lugar com casas simples, ruas de pedras, até avistar um estabelecimento no fim da rua, tinha música vindo de lá de dentro, risos, cantoria. Alguns metros depois já era o porto e o mar. Navios, pescadores, contêineres e caixotes. Uma bagunça familiar.
Veridiana olhou a placa do estabelecimento: TABERNA ALDEBARAN. Um sorriso brotou em seu rosto. Por Erste! Era a porra de uma taberna! Bebida ruim e comida gordurosa. Ela se aproximou da porta e olhou o ambiente esfumaçado. Havia soldados do Palácio, marinheiros e alguns homens jogando baralho. O cheiro de tabaco misturado com cheiro de comida e loção barata foi direto para suas narinas, lhe causando certa nostalgia.
As mesas de madeira redonda já bem gasta pelo tempo, as cadeiras podia-se contar quais estavam em boas condições e certamente os dedos de uma mão seriam mais que suficientes. O balcão no fundo do bar repleto de bebidas variadas, a maioria de péssima qualidade, mas quem estava bebendo pouco se importava com isso.
Atrás do balcão um jovem rapaz servia as mesas. Era alto, olhos castanhos claros, cabelos ruivos e cheios e a pele bem clara. Caminhando entre as mesas com uma bandeja, uma mulher de cabelos curtos platinados, andando sorridente entre os clientes. Servindo cada prato como uma mãe que prepara o jantar para os filhos. E o que mais chamou a atenção de Veridiana foram seus olhos dourados.
A mulher continuou seu trabalho com esmero, enquanto isso, Veridiana adentrou a taberna com os ombros encolhidos e olhando desconfiada para os lados. Ali ninguém parecia se importar com ela. Como ela trabalhou os últimos anos a mando do rei, a maioria dos soldados ficavam apreensivos com sua presença. Mas ali não. Eles só queriam beber e se divertir.
Ela se aproximou do balcão e sentou-se na banqueta e pôs as duas mãos cruzadas sobre o móvel. O garoto atrás do balcão andava de um lado para o outro apressado que nem percebeu a presença de Veridiana, algo que ela agradeceu de certa forma. Dava tempo de pensar um pouco, como se fosse possível no meio de toda aquela barulheira.
No lado oposto de onde ela estava, um grupo de músicos cantava uma música ruim de marinheiro. Mas os ouvintes não se importavam com a letra cheia de duplo sentido. Eles só queriam beber. Era um barulho constante, mas Veridiana estava amando cada segundo. Era real, era verdadeiro.
— Brandon! Acorda moleque, olha a cliente esperando! — o grito da mulher despertou Veridiana de seu devaneio.
— Eu nem vi ela mãe. Ela ficou aí caladinha.
— E se ela continuasse calada você não ia atender? Preguiçoso!
— Mas mãe...
— Mas mãe nada! — Quando a mãe parou de chamar a atenção no filho, seu olhar se virou para Veridiana. Os grandes olhos dourados, o nariz afilado, a pele levemente marcada pelo tempo. O sorriso no rosto deixava tudo mais harmonioso, e por alguma razão, seu rosto lhe era familiar. — Seja bem vinda! Desculpe o mau jeito do meu filho, em que posso te ajudar?
— Tá tudo bem, eu que estava indecisa mesmo.
— Posso te ajudar a escolher, temos bebidas de todos os tipos e gostos. Claro, nada tão caro quanto você deve tomar no Lila Palast. — ela disse olhando a farda que Veridiana vestia.
— Ah... não. Eu não quero nada caro. Você poderia me sugerir algo?
— Prefere bebida de dose ou algo mais refrescante?
— Aqui tudo é meio refrescante.
— Ah, sem dúvidas. Estamos numa geleira eterna. Que tal algo mais quente? Glög é uma ótima pedida.
— Glög?
— Feita de vinho quente com algumas especiarias.
— Parece gostoso.
— Não é tão forte quanto a maioria quer, mas acho que você tem o gosto mais refinado que esses patifes.
— Ah... — Veridiana sorriu fraco e olhou a mulher meio cabisbaixa. — Acho que o gosto deles sem dúvidas é melhor que o meu.
— Vai por mim, se soubesse das coisas que eles bebem, não diria isso. — A mulher deu uma piscadinha. Veridiana viu a mulher se afastar e pouco tempo depois voltar com uma caneca. — Aqui, espero que goste.
— Obrigada. — Veridiana olhou o líquido, levou à boca e depois olhou para a mulher e sorriu. — É bem gostoso.
— Se quiser, temos um queijo para acompanhar. Não é como os que você come no Palácio. — A mulher disse à Veridiana que olhou para ela pensativa — A vestimenta que está usando é apenas para os de alta patente. General?
— É... ou algo assim.
— E o que uma mulher nobre como você faz no nosso chiqueiro?
— Eu não sou uma nobre. Sou uma pessoa muito longe de casa.
— Eisenhower?
— Sim, de Graben.
— Minha mãe também era de lá, como pode ver pela cor dos meus olhos.
— Eu... — Veridiana deu uma olhada ao redor do bar. — Não sabia deste lugar. Aqui ainda é Eiseges Tal?
— Não conhecia o Vale dos Porcos?
— Vale dos Porcos?
— Você viu, quando começou a descer a ladeira já estava no Vale dos Porcos, o nome gentil que deram a este lugar frio e lamacento.
— Eu pensei que Eiseges Tal fosse apenas a cidade onde está o Lila Palast.
— Não, lá é onde os ricos moram. Os pobres moram no Vale dos Porcos. Onde você acha que todos aqueles funcionários, lacaios, faxineiras e serviçais moram? Em casas chiques ao redor do Palácio?
— Ninguém nunca me disse que existia um outro bairro.
— Não vão dizer mesmo. O Vale dos Porcos parece um xingamento em meio à classe elitista. Um lugar que eles sabem que precisam, mas preferem fingir que não existe. Como uma lenda ou algo assim.
Veridiana franziu o cenho e observou as pessoas ali. Alguns rostos eram conhecidos em meio aos serviçais do Palácio. Ninguém nunca havia mencionado o Vale dos Porcos, nem mesmo Zeeba.
— Falar sobre o Vale é proibido?
— Não necessariamente. As pessoas evitam falar que o local perfeito deles tem uma mancha enorme e tumultuada.
— Nossa! Eu realmente nem sei o que dizer. Eu não pensei que existisse desigualdade social aqui.
— Achou que aqui tinha igualdade? — A mulher deu uma risada sarcástica e depois se virou para o filho. — Brandon, traz mais outra dose para a moça. Ela vai precisar.
— Desculpe... eu não entendi.
— Não existe igualdade em lugar nenhum. A diferença daqui e Eisenhower é que temos uma ladeira ao invés de um muro e uma trincheira. Se fôssemos todos iguais para quem eles esbanjariam suas fortunas abastadas? As roupas que está vestindo tem tecidos que pagariam quase o mês de trabalho deles.
— Acaba que no fim é tudo igual... — Veridiana deu mais um gole em sua bebida, colocou as moedas no balcão e se levantou. — Esse valor paga pela bebida?
— Paga umas trinta dessa. Não tem mais nada que eu possa te ajudar?
— Eu... Tô cansada desse lugar. Eu estou cansada de tentar fazer o que é certo. Parece que está sendo tudo em vão.
— Olha moça, por que não fica mais um pouco? Eu tenho quartos para alugar, se quiser ficar e descansar pode ficar. O dinheiro que me deu deve dar para uns três dias com direito a três refeições.
— Não precisa, eu dei como gorjeta.
— Por favor, eu insisto.
— Em outra ocasião. Mas fico muito grata.
— Volte quando quiser, as portas estarão sempre abertas para você. Aliás, eu não sei seu nome, general.
— Veridiana.
— Sou Aldebaran. É um prazer conhecê-la.
Veridiana sorriu para a mulher e depois se afastou discretamente das mesas da taberna. Só depois ela associou o nome do estabelecimento com a proprietária e achou curioso o fato do nome ser Taberna Aldebaran ao invés de Taberna da Aldebaran.
Depois que saiu da taberna andou mais um pouco pelas ruas do Vale dos Porcos, até viu uma barraca de uma engeliana que vendia comidas secas e temperos. Quando o dia já estava quase acabando ela voltou para casa. Conforme ia retornando vendo as ruas impecáveis, a tristeza retornava. Era hora de voltar a ser perfeita de novo. Quando chegou no portão do Lila Palast, Kara já se aproximou dela correndo.
— Veri! Onde esteve?
— Andando um pouco. Por que está tão tensa?
— O rei mandou te procurar. Aí quando não te encontraram montou uma equipe de busca.
— Eu só saí por algumas horas.
— Mas você sabe, né? Ele fica de muito mau humor quando você não está por perto. Ainda mais que a Diana sumiu. — Kara disse caminhando ao lado da amiga.
— Eu tô cheia desse lugar. — Veridiana disse sussurrando. — Não somos nem sombra do que fomos um dia.
— Todos estamos. A gente parece soldadinhos de brinquedo. Nada acontece aqui.
— A gente devia estar buscando ser mais forte. Lutar de verdade. Desse jeito vamos ficar acomodados. Vamos por aqui. — Veridiana apontou para um corredor que dava acesso aos armazéns de mantimentos. A general pegou uma das chaves que carregava consigo, procurou no enorme molho e destrancou a porta olhando para os lados. — Entra.
— Tem acesso pelo Palácio todo? Que moral, hein?
— Como se fosse uma coisa boa. Você sabia que existe um bairro aqui chamado Vale dos Porcos? — Veridiana disse sussurrando.
— Eu cheguei aqui há pouco tempo, mas ninguém nunca me disse nada. Eu me lembraria de um nome assim.
— Eu já tinha ido num porto da cidade, só que lá era tão pomposo quanto aqui. Mas hoje eu segui por outro caminho e cheguei em uma parte que não conhecia. Lá é cheio de gente, barracas nas ruas, pessoas simples. Não esse desfile de gente exibida como é aqui. Tem até uma taberna!
— Eu preciso conhecer esse lugar. Mas qual a sua preocupação, Veri?
— Eu fiquei pensando no porquê todo mundo simplesmente ignora aquele lugar. O nome do Vale dos Porcos nunca foi mencionado por aqui. E se for como Eisenhower?
— Isso eu não sei, mas acho que nosso problema maior agora é onde está a Sangue de Fogo. Estamos em guerra e ela era nossa principal arma.
— Tá, você tem razão. Tenho que encarar o rei Kiran.
Veridiana e Kara saíram do armazém e foram para dentro do palácio. Uma rainha estava teoricamente desaparecida e isso era algo aterrorizante para todos ali. Ainda mais um país que raramente saía da rotina. Veridiana acenou para que Kara a deixasse sozinha e seguiu até o escritório do rei. Ela parou hesitante na porta, respirou fundo, bateu, e entrou depois de ouvir a voz de Kiran.
O rei estava sentado diante da mesa pensativo. Revirando documentos antigos, olhando atentamente em cada folha de papel como se procurasse algo.
— Majestade, perdão pelo atraso. Eu...
— Tá tudo bem, Veridiana. — As palavras monótonas do rei a deixaram ainda mais aflita.
— Alteza, eu queria me desculpar. Estamos numa situação complicada e fiquei fora o dia todo.
— Sim, estamos. E sabe o que é pior? Eu tentei localizar ela como faço com você e adivinha? Eu não consigo. Fiquei horas tentando entrar em contato. Mas ela eu não consigo. O que deixa tudo convenientemente ainda mais desfavorável para nós.
— Eu entendo que esteja chateado. Ela é importante para você.
— Não é só para mim. Para todos nós. Estamos em guerra! — Kiran soltou um suspiro e encostou em sua poltrona. — Esteve no Vale dos Porcos, não é?
— O senhor me viu e mandou me seguir?
— Esse cheiro de comida gordurosa que emana de você é inconfundível. Devem ser os famosos bolinhos de peixe da Aldebaran.
— Como o senhor... sabe?
— Acha que fico só aqui dentro deste Palácio? Às quintas ela serve um ensopado de carne que acho que ninguém faz igual.
— Como nunca mencionou este lugar?
— Quer se sentar? A história pode ser um pouco longa.
Veridiana puxou a cadeira e sentou-se diante de Kiran e colocou as mãos sobre a mesa. — Um lugar afastado de tudo, me lembrou Graben.
— Tá. Mas você não viu lixo a céu aberto e nem mendigos nas ruas, viu?
— Não.
— A minha família tem uma mancha enorme e gigantesca. Meu tataravô era escravagista. Trazia mão de obra escrava de diversas partes do mundo. E por muito tempo, isso fez parte de Eiseges Tal. Mas, quando meu avô assumiu, ele aboliu a escravidão. Um pedido de Calandiva. Ela dizia que ele queria ser merecedor de seu amor, mas mantinha uma tradição desumana. Ele aboliu a escravidão, mas as pessoas que foram libertas não tinham para onde ir, então eles foram para um local afastado e lá começaram as primeiras famílias. Eles escolheram ali, porque podiam pelo menos pescar, já que não havia trabalho para eles. Os ricos daqui da parte alta diziam que olhando daqui de cima, lá parecia um lamaçal cheio de Porcos. Daí o nome pegou. Era o Vale dos Porcos.
— Eles foram abandonados à própria sorte.
— Sim, eles foram. Aí no reinado do meu pai, ele fez um decreto dizendo que as pessoas de lá eram cidadãos de Eiseges Tal e deviam ser tratados assim. Eles puderam pelo menos trabalhar. Ter um pouco de dignidade. Mas os burgueses daqui não gostam de ser associados ao Vale dos Porcos. Então você não vai ouvir ninguém dizer sobre aquele lugar, nem mesmo quem é de lá.
— Eles temem ser discriminados.
— Exatamente. Mas mesmo assim não há emprego para todo mundo. Então, quando eu assumi o trono eu liberei uma pequena quantia para famílias abaixo da linha da pobreza. Decreto esse que o Conselho tenta derrubar constantemente. — Kiran disse de forma cansada. Veridiana observou as olheiras levemente marcadas.
— Tem dormido mal, majestade?
— Normalmente já não durmo muito bem, ultimamente têm sido pior.
— Entendo.
— Passei a minha vida toda atrás da Sangue de Fogo e agora que a encontrei parece muito mais exaustivo do que eu imaginava. Ela parece a droga de uma bomba relógio. Faz tudo o que quer, do jeito que quer e sem pensar nas consequências. Por que ela não podia conversar antes?
— Eu sou culpada. Ajudei ela a fugir. Ela... ouviu o senhor dizer que Klaus estava vivo e que não era para dizer a ela. Aceitarei qualquer punição. — Veridiana disse de cabeça baixa.
— E faria diferença, Veridiana? Ela iria de qualquer jeito. Eu só queria poder pensar primeiro e ele agiu antes mesmo que eu pudesse planejar algo.
— É muito ruim?
— O dragão pode aparecer a qualquer momento e não temos a menor ideia de como controlá-lo. Nossa maior arma também é nosso maior ponto fraco.
— Agora tem certeza de onde ela foi, talvez devêssemos ir atrás dela.
— Não. Como você disse, ela precisa de espaço e tomar as próprias decisões, além de que não tem ninguém forte o bastante para trazer ela de volta, e muito menos convencê-la. Só me resta esperar e tentar planejar caso o pior aconteça.
— E... quanto a mim, majestade?
— Eu decidirei o que fazer com você mais tarde.
— Claro. Se não precisar mais de mim, irei me retirar.
— Eu preciso muito de você, Veridiana. Eu me sinto sem rumo quando você some. Você é minha general e minha conselheira.
— Isso não vai mais se repetir.
— Espero que seu namoro não atrapalhe suas tarefas e sua lealdade, como te disse antes. — Kiran desviou o olhar.
— Jamais, majestade.
— Acho que só você entende o que sinto. — Ele disse segurando um peso de papel em formato de urso. — De como tudo é tão difícil.
— Eu me esforço, majestade. — Veridiana olhou para o objeto nas mãos do rei. — Ainda tem isso?
— Claro, foi um presente. De alguém especial.
— Ora, majestade. Eu comprei isso numa lojinha aqui em frente ao palácio, com as poucas moedas que tinha. Nem deve valer muita coisa.
— Para mim vale muito. Você viu o enfeite quebrado sobre a minha mesa e depois saiu caladinha e me trouxe um novo. Algo que foi muito atencioso da sua parte. E aliás, nunca te dei nada em troca. — Ele levou a mão à gaveta de sua mesa.
— Não precisa se incomodar com isso, majestade.
— Não, eu faço questão. — Ele tirou da gaveta uma pequena caixa de veludo vermelho e colocou sobre a mesa. — Eu fiquei pensando no que dar a uma pessoa como você, por isso demorei tanto. Mas na última semana tive que olhar as joias da rainha, que serão entregues à Diana, aí vi isto e lembrei de você.
Veridiana ficou olhando para a caixa ainda tentando entender tudo o que estava acontecendo. — Senhor, eu...
— Abre.
Veridiana levou as mãos trêmulas até a caixa de veludo e abriu de forma delicada. Um par de brincos pequenos com uma pedra brilhante e amarela. — Senhor! Isto deve ser muito caro!
— É um par de brincos de diamante amarelo e ouro. Essas pedrinhas pequenas ao redor são âmbar. Pertenceram à minha mãe.
— Eu não posso aceitar, meu senhor!
— Claro que pode! Ou ficarei ofendido.
— Mas isso pertence à Diana, agora.
— Não, pertence a você. Nunca vi você de brincos, mas notei que tinhas as orelhas furadas. E a cor deste diamante, vai combinar muito com seus olhos. Gostaria que os usasse.
Veridiana sorriu e tirou os brincos da caixinha de forma delicada e colocou nas orelhas. Seu rosto queimava como fogo. Nunca havia recebido um presente, ainda mais algo tão valioso. Em seguida, o rei entregou a ela um espelho que tinha em sua gaveta, ele era um homem muito vaidoso. Ela viu sua imagem no espelho e abriu um sorriso. — São lindos, nem sei como agradecer. Eu não sou digna de tal presente, ainda mais depois do que fiz.
— Não se preocupe com isso. — Ele se inclinou para frente e abriu um sorriso — Viu só? Combinaram com seus olhos. Agora, você pode ir.
— Muito obrigada, Majestade.
Veridiana se levantou ainda sorrindo, deixou o escritório do rei e seguiu para seus aposentos. Quando abriu a porta Zoe já aguardava sentada em frente a janela com o semblante triste. Seu olhar encontrou o de Veridiana e depois ela voltou a olhar para a janela.
— Onde esteve o dia todo?
— Eu fui dar uma volta.
— Hum. Belos brincos. Nem sabia que usava brincos. Você sempre sendo misteriosa. Sai sem me falar onde vai, volta toda enfeitada e fedendo a álcool e tabaco. Uma vez puta, sempre puta. — Zoe disse com desdém.
— Zoe, me desculpe eu...
— Eu quero terminar. — Zoe disse sem tirar o olhar da janela.
— O que?
— Não está dando certo, Veridiana. — Ela olhou para a general com os olhos marejados.
— Eu posso melhorar, ser mais atenciosa. Eu só preciso de um pouco mais de tempo.
— Não Veri. Não dá. Não tem espaço para mim em seu coração.
— Zoe... vamos conversar direito. Por favor...
— Não quero que fique comigo por dó.
— Não é por dó, Zoe.
— Eu não quero mais.
Existem dias que parecem que nem devíamos levantar da cama. Veridiana sentia exatamente isso naquele momento. Ela não disse mais nada. Apenas virou as costas e saiu. Pediu a um dos lacaios que providenciasse outro quarto. Mais tarde pegaria o restante de suas coisas.
Além de tudo ainda teria de conviver com ela. Teria de vê-la todos os dias. Ela entrou em seu novo quarto, foi para o banheiro, encheu a banheira e ali ficou por mais alguns minutos. Queria poder voltar no tempo. Arrependimento tem um gosto horrível. Gosto amargo.
Amanhã seria tudo igual de novo, além de tudo provavelmente seria punida pelo rei. Embora ele tenha a presenteado naquela noite. Algo que a deixou num momento de felicidade indescritível. A punição talvez não fosse tão rigorosa.
(...)
Os dias foram passando lentamente. A cada minuto que passava, Veridiana esperava alguma notícia ruim vindo de Eisenhower. Nesse meio tempo, o rei trancou-se em seus aposentos e não saiu. Provavelmente ele estava tentando contato com Diana. Toda vez que fazia isso ele ficava exausto.
Veridiana fez seu treinamento naquela manhã até seu corpo doer. Queria descontar toda aquela tensão. Depois foi para a sauna e quando saiu, Kara já aguardava na porta.
— Me diz que não é problema, por favor. — Ela disse soltando os ombros.
— Egon e eu estávamos conversando sobre a Sangue de Fogo. É verdade que ela fugiu?
— É...
— Valdrer começou a dizer, mas não quis entrar em detalhes.
— Não há detalhes, ela fugiu atrás do Klaus.
— E o que vamos fazer? Todos nós viemos aqui para lutar por ela. E se ela não voltar mais? Teremos que atravessar o deserto atrás dela?
— Eu não sei, Kara. Não tenho a menor ideia.
— Veri, nós estaremos com você. Independente do que decidir.
— Obrigada, Kara.
Veridiana viu a amiga se afastar e depois se vestiu. Era informação demais para a cabeça dela. Ela seguiu para dentro do Palácio e viu Zeeba seguindo com alguns relatórios.
— Zeeba! Alguma notícia da Diana?
— Nada, mas mandei alguns soldados disfarçados para Eisenhower.
— E o rei?
— Ainda trancado dentro do quarto.
— Se tiver notícias, me fale.
— Sim. Soube que esteve no Vale dos Porcos. Gostou do bolinho de peixe da Aldebaran?
— Por que ninguém nunca me disse sobre o Vale dos Porcos?
— Como assim, Veridiana? — Zeeba comecou a rir. — Todo mundo sabe sobre o Vale dos Porcos. Nos reunimos todas as quintas para o famoso ensopado de carne da Aldebaran.
— E ninguém nunca me chamou?
— Veridiana, você passa todos os seus dias a serviço do rei. Desde o dia que chegou aqui. Dia e noite. Agora está a serviço também da rainha.
— Não, eu... tenho lazer!
— Ah é? Qual?
— Eu tenho.
— Sei. Olha, General Nwangi, devia sair hoje e ir para a Taberna Aldebaran e pedir um prato de bolinho de peixe e beber com hidromel. Beba até esquecer o seu nome. Relaxe um pouco.
— Eu não posso! Eu tenho que ficar alerta. E se a Diana voltar? E se o rei precisar de mim? Esses dias saí por um momento e ele soube que saí e ainda fez todo mundo me procurar!
— Tem umas duzentas pessoas só dentro do Lila Palast. Alguém poderá cumprir a missão seja ela qual for. E se a Diana voltar você saberá quando isso acontecer.
— Eu tenho uma papelada para por em dia.
— Eles não vão sair do lugar. E a bebida ajuda a curar o pé na bunda.
— Vocês se reúnem para ficar fofocando, é?
— A Zoe mesmo que nos contou.
— Ah... e o que ela falou? — Veridiana disse olhando para baixo e passando a mão na nuca.
— Você quer mesmo saber?
— Sim.
— Que você não estava tão afim deste relacionamento. E que estava com ela só por dó. Que mesmo depois que ela terminou você não demonstrou arrependimento ou interesse.
— Poxa...
— Foi você que pediu para falar. Agora, eu tenho que ir. Até mais.
Zeeba seguiu seu caminho deixando Veridiana pensativa. Ele praticamente tinha dito que ela era chata e desinteressante. Além de viciada em trabalho. Eles iam ver quem era chata e desinteressante.
Quando a noite chegou ela tirou o habitual uniforme e desceu rumo ao Vale dos Porcos que por algum motivo que ela não sabia estava mais barulhento do que durante o dia.
Devido ao frio constante, não havia muitas opções de vestimenta. Mas ela até se esforçou. Queria parecer menos engessada. Soltou os cabelos e os cachos crespos volumosos adornavam seu rosto, um casaco de veludo azul escuro, botas pretas, calça marrom escura e um cachecol de lã, além de luvas e de uma quantidade de outras peças de roupas por baixo daquelas.
Ela entrou na taberna que estava cheia como sempre. Os olhares se voltaram para a mulher que parou bruscamente com os ombros encolhidos. Queria voltar correndo para casa. Não. Ela tinha que ir até o fim. Ela caminhou devagar como se as pernas estivessem amarradas uma à outra e sentou-se junto ao balcão do bar. Aldebaran se aproximou da mulher com um enorme sorriso.
— Bem vinda de volta! Veridiana, né?
— Sim, se lembra de mim?
— Sou ótima com fisionomias. O que vai pedir hoje?
— Me disseram que seu bolinho de peixe é incrível.
— Não é para me gabar, mas é uma delícia mesmo! E para beber?
— Uma caneca de hidromel.
— Indicação do Zeeba? Aquele puto. Aposto que vai querer desconto. Já trago para você, querida. — O olhar de Aldebaran foi direto nos brincos de diamante amarelos e depois ela abaixou o olhar sem dizer nada.
Veridiana continuou parada olhando tudo ao redor. Queria ser um pouco menos tensa. Relaxar mais. As Fúrias não tinham muitas opções, e nos Lobos Negros não era muito diferente.
Seu olhar encontrou um grupo de homens jogando baralho, rindo alto, gritando uns com os outros. Uma risada inclusive muito familiar. Ela fixou o olhar na direção da risada. Quatro homens. Dois eram soldados do Lila Palast, um terceiro que era baixinho e de rosto redondo e o outro. Alto, forte, com um gorro de lã de gosto duvidoso e uma jaqueta de couro marrom por cima de uma blusa de lã verde musgo que ela achou a coisa mais tenebrosa que já tinha visto.
Ela se levantou da cadeira onde estava e seguiu rumo à mesa. Um dos soldados deu um chute na canela do mais alto e sussurrou alguma coisa. O homem colocou as cartas sobre a mesa e caminhou na direção contrária de Veridiana de cabeça baixa. Um dos soldados foi logo em seguida.
Veridiana deu passadas largas seguindo o homem para fora do bar se esquivando dos bêbados pelo caminho. Ela parou na entrada e olhou para que direção o homem havia ido e viu ele virar em uma porta anexa à taberna. Ela correu até o local e entrou devagar num corredor que dava acesso ao que parecia ser quartos para alugar.
O homem havia desaparecido. Deve ser coisa da sua cabeça. Uma impressão errada. Vai ver, todos estavam certos. Ela estava trabalhando demais. Ela deu meia volta e caminhou em direção à saída quando a porta de um dos quartos se abriu e ela foi puxada para dentro com a boca tapada pela mão do seu raptor.
Ela se debatia e já estava pronta para revidar quando o raptor a soltou e ela virou bruscamente já com os punhos prontos para atacar.
— Majestade? — Veridiana viu Kiran sorrindo com seu gorro horroroso. Estava se divertindo com a situação.
— Calma, Veridiana.
— Mas o senhor não estava no Lila Palast? Quando saiu? Quem está com o senhor? Está seguro?
— Veridiana eu tô bem. Por que está tão tensa?
— O senhor não devia estar aqui.
— Por que não? Tia Aldebaran serve o melhor bolinho de peixe que já comi na vida. Já experimentou?
— Tia? Ela... é sua tia?
— Longa história. Mas o que faz aqui Veridiana? Pensei que nem ia voltar. Você é toda travada. Certinha.
— Eu pensei que o senhor estivesse trancado em seus aposentos. E... eu não sou certinha. Eu me divirto... muito.
— Duvido.
— Eu não me divirto. A quem eu quero enganar? — Ela disse soltando os ombros.
— Não mesmo.
— Me permita escoltá-lo de volta, majestade.
— Não vou embora agora. A noite é uma criança. Inclusive tô voltando para lá. Acho que Edgar deve estar me aguardando do lado de fora. Mas você pode ir para casa. — Kiran ajeitou o gorro e seguiu para a saída do quarto.
— Não posso permitir que sua vida fique em risco, majestade.
— Eu estou bem escoltado. Pode ficar tranquila, Veridiana.
Kiran saiu do quarto cantarolando uma canção qualquer. Veridiana ficou no quarto olhando a beliche com colchas de retalho. Ela poderia ir embora. Mas a ideia de deixar o rei tão desprotegido iria atormentá-la. Ela respirou fundo e decidiu ir atrás de Kiran.
Quando voltou para o bar, o homem já estava de volta à mesa bebendo e jogando. Ela se aproximou do balcão e sentou-se olhando ao redor para ver se de fato ele estava seguro.
— Pensei que tivesse ido embora mulher! — Aldebaran se aproximou com um prato de bolinhos e colocou diante dela junto com a caneca de hidromel.
— Ah... obrigada. — Mas seu olhar ainda estava em Kiran.
— Não precisa se preocupar. Ele está seguro aqui. — Aldebaran disse sussurrando.
— O que?
— Disse para não se preocupar. Ele está seguro aqui. — Aldebaran olhou na direção de Kiran e disse sussurrando — O rei.
— Eu não... É que... eu não fazia ideia que ele saía assim. Pensava que ele ficava a maior parte do tempo dentro do Palácio.
— Sempre teve espírito livre. Aqui ele sempre pode ser ele mesmo.
— Ele disse que você é tia dele.
— Vamos dizer que sim.
Veridiana comeu um dos bolinhos e bebeu o hidromel e um sorriso brotou em seus lábios. — É bom mesmo.
— Eu disse.
Veridiana continuou comendo apreciando a mistura de sabores. Tinha um sabor especial. De alguém que preparava com amor. Ela levou o terceiro bolinho à boca quando sentiu alguém puxar seu braço.
— Venha, saia deste balcão e venha jogar com a gente. — Kiran a puxava pelo braço até a mesa e apontou para que ela se sentasse.
— Eu não sei jogar. — Ela disse ainda mastigando.
— Você aprende. Francamente! Vem num bar para comer bolinhos e beber hidromel. Isso é coisa do Zeeba, né?
— Foi sim.
— Sem graça como sempre. Alde! Traz a sua melhor cerveja!
— Eu não vou beber mais, ma... — Veridiana ficou encarando o rei na dúvida de como iria chamá-lo.
— Boomer. — Ele disse com um sorriso sarcástico.
— Boomer? — Veridiana repetiu o nome em tom de pergunta com a sobrancelha erguida.
— Vamos, Veri! Eu vou te ensinar como se joga, preste bastante atenção! Vou ensinar só uma vez.
Estar ali naquele lugar, em meio aquela quantidade de pessoas se divertindo. Vendo o rei que serviu os últimos cinco anos ensinando a ela como jogar, a fez sentir uma sensação desconhecida. Como se seu coração se aquecesse. Era como estar de volta em casa com os Lobos Negros em seus momentos felizes. A sensação de paz interior.
A noite ainda foi longa, várias canecas de cerveja, jogando baralho, cantando músicas ruins, comendo bolinhos de peixe e observando pessoas ainda mais bêbadas passarem vergonha. Veridiana disse aos soldados que ela mesma escoltava o rei de volta para o Lila Palast, mas mesmo assim um dos soldados ainda os acompanhou até a passagem secreta nos fundos do armazém que dava acesso direto aos aposentos do rei por um túnel subterrâneo.
Eles saíram atrás de uma pintura da família Zafir, já dentro dos aposentos do rei. O quarto do rei era um espaço majestoso e opulento, as paredes eram adornadas com tapeçarias finamente trabalhadas, representando cenas mitológicas e históricas, enquanto o teto era decorado com afrescos elaborados, retratando os deuses.
No centro do quarto, uma cama monumental de dossel, coberta por cortinas de veludo azul profundo, bordadas com fios de ouro. O dossel era sustentado por colunas esculpidas, cada uma decorada com motivos florais e figuras mitológicas. Cadeiras e poltronas estofadas em seda, mesas de mármore com pernas douradas e armários de madeira nobre, incrustados com pedras preciosas.
Candelabros de cristal pendendo do teto, iluminando o ambiente com uma luz suave e cintilante. Espelhos dourados refletiam essa luz, ampliando a sensação de espaço e brilho. No canto do quarto, uma lareira de mármore branco, adornada com esculturas detalhadas. As janelas eram grandes e altas com cortinas pesadas, combinando com as da cama.
Veridiana escorava o rei que parecia estar se esforçando para não parecer mais bêbado do que estava. Ela o apoiou até chegar na cama, ele se jogou sobre a mesma e ficou deitado de barriga para cima olhando para o teto por um tempo. Seu rosto branco parcialmente vermelho devido ao álcool. Os olhos azuis levemente marejados.
— Majestade, obrigada por hoje. Agora irei me retirar.
— Eu queria ser amado por ela... — Os lábios do rei tremeram levemente.
— Talvez ela o ame... algum dia.
— Você sabe que não. — A lágrima discreta escorreu no canto do rosto de Kiran. Veridiana engoliu seco e se aproximou devagar com as mãos para trás.
— Sabe que o problema não é com o senhor, alteza.
— Será que não?
— Ela só ama outra pessoa. — Veridiana lembrou de Zoe naquele momento.
— Poderia me fazer um favor?
— Seu desejo é uma ordem, majestade.
— Podemos conversar mais um pouco?
— Claro, alteza.
Ele se levantou e sentou-se na cama. Em seguida, tirou as botas e o gorro medonho e encostou na cabeceira da cama. Depois apontou para que ela se sentasse. Ela caminhou meio tímida e sentou-se na poltrona ao lado da cama do rei e ficou de frente para ele.
— Sobre o que quer conversar, alteza?
— Sinto falta do Samir. Eu me recuso a dizer isso em voz alta, mas sinto falta dele todos os dias. E eu fico me perguntando o que eu poderia ter feito para que ele ficasse. Nós íamos para a taberna Aldebaran todas as sextas, disfarçados, claro. E era divertido. Contávamos tudo um para o outro, éramos irmãos e aí... ele decidiu seguir seu próprio caminho. E a única coisa que eu me pergunto é por que?
— Tem coisas que estão além de nossos desejos, majestade.
— Tenho medo de não conseguir sem ele.
— O senhor é muito competente. O melhor estrategista que conheço.
— Sou um tolo. O conselho tenta me derrubar todos os dias, meu sonho de fazer do Vale dos Porcos um lugar melhor, de mudar alguma coisa, parece cada vez mais distante. A mulher que eu tomei como esposa prefere enfrentar o deserto e um exército de lobos a se deitar comigo outra vez. E agora tudo pode estar perdido.
— Independente de qualquer coisa, sei que dará um jeito de dar a volta por cima. E com relação à Diana, ela sempre foi muito impulsiva.
— Não sei não. Arrisquei tudo para fazer ela ser reconhecida. Eles podem vir até mim a qualquer momento. Tenho um alvo no meio das minhas costas. Eu deixei meus sentimentos tomarem conta de mim!
Veridiana ficou um tempo em silêncio, olhando para baixo. Depois ergueu o olhar para o rei e disse: — Eu tenho muitos arrependimentos. Eu devia ter sido mais firme e acreditar que o mundo não tem igualdade. Eu devia ter sido mais desconfiada, eu devia ter enfrentado a Mia quando tive a chance, eu não podia ter deixado a Valkiria para trás. Eu era uma guerrilheira, mas acreditava no lado bom das pessoas e hoje eu vejo que isso só me prejudicou e tirou pessoas valiosas de mim. E eu já nem sei mais no que acreditar e no que fazer.
— É uma pessoa boa, Veridiana. Ver o lado bom das pessoas não é um defeito. É uma qualidade enorme.
— O senhor também é. É preciso muita nobreza para se arriscar pelos outros.
Os olhos de Kiran pareciam ainda mais claros sobre a luz fraca do abajur. Ele olhava para Veridiana em silêncio, o que a deixou levemente desconfortável e fez suas bochechas esquentarem. O rei tinha um jeito de olhar que desconcertava qualquer um, independente da intenção dele.
— Como conseguiu essa cicatriz na bochecha?
— Ah... — Veridiana tocou a marca na bochecha em forma de x — Um membro das furias. Ele tentou me estuprar.
— E onde está este cretino agora? — Ele disse com as sobrancelhas franzidas.
— Queimando no inferno. Diana o mandou para lá há bastante tempo.
— Não gosta de homens, né? — O jeito direto dele a deixava realmente desconfortável. Ela sentiu que deveria ir embora, haviam bebido demais. Mas iria responder as perguntas do rei.
— Bom, não é que não goste de homens. Eu gosto de pessoas. Independente do gênero.
— Mas... já ficou com homens?
— Ser fúria me forçou a fazer coisas desagradáveis. Como perder a virgindade com um general guemeisano à força.
— Ele te...
— Fui vendida. Em troca de favores à Heide.
— Sinto muito...
— Está tudo bem. Isso ficou no passado.
— Então... se fosse para ficar com um homem hoje, se ele te agradasse, você ficaria?
Veridiana sentiu a boca secar e as bochechas queimarem como fogo. Ela olhou para o rei que mantinha seu olhar fixo nela e ficou procurando as melhores palavras. O que iria responder? Sim? Não? Talvez? Ela ficou parada olhando para ele com os olhos arregalados e a boca levemente aberta esperando que algum som saísse.
— Eu... tenho que ir. — Ela disse se levantando
— Ainda não respondeu a minha pergunta. — Ele se levantou junto com ela e a seguiu.
— Está tarde, alteza. Precisa descansar. Não tomarei seu tempo com minha vida sem graça. — Ela seguiu para a porta, mas antes que pudesse colocar a mão na maçaneta o rei colocou a mão na porta. Ela ficou de costas para ele completamente paralisada e quando finalmente teve coragem olhou para ele. Kiran tinha um sorriso leve nos lábios.
— Não quis te assustar. Me desculpe.
— Eu realmente... preciso ir... — Nem mesmo a bebida conseguiu atrapalhar o cheiro suave que vinha dele. Veridiana tentou disfarçar e abaixou o olhar, repetindo na sua mente que aquilo era só ele querendo mostrar o quanto era bonito e sedutor. Ela não iria cair nessa.
— Tá bom... mas eu ainda vou querer que responda minha pergunta.
— Eu acho que tenho que pensar. Eu estou muito bêbada.
— Eu também.
— Então... boa noite, majestade.
— Boa noite. — Ele tirou a mão da porta e depois girou a maçaneta abrindo a porta. Veridiana saiu apressada do quarto. — Ah, Veridiana?
— Sim? — Ela virou-se para o rei ainda trêmula diante daquela situação.
— Você ficou linda de cabelos soltos.
— Obrigada... majestade.
Veridiana saiu correndo antes mesmo que ele dissesse qualquer outra coisa desajeitada. Ela não teria mais desculpas para o rei bêbado. Caminhou apressada até seu quarto, entrou e fechou a porta. Depois se jogou na cama e ficou olhando para o teto. Ela depois começou a sorrir. Tinha tido o dia mais divertido da sua vida.
Veridiana nem viu que momento dormiu. Estava num sono profundo quando ouviu alguém esmurrar a porta de seu quarto sem parar.
— Veridiana? — Ela abriu os olhos sentindo uma dor de cabeça intensa e levantou seu corpo devagar. — Veridiana!
Era a voz de Zeeba?
Ela levantou meio cambaleante e seguiu até a porta. Sua cabeça estava zunindo. Ela ficou um tempo parada diante da porta tentando voltar ao normal e depois abriu a porta devagar.
— Até que enfim! — Zeeba disse apavorado.
— Eu estou atrasada?
— Que? Não mulher! Precisa se preparar urgentemente. É a Diana!
— Ela voltou?
— Quem dera. Os soldados enviados a Eisenhower deram notícias. Um dragão surgiu em Pantheon, incendiou casas, matou pessoas e saiu sobrevoando o mar, levando a líder dos lobos negros.
— Mas que porra...
ALDEBARAN
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