Capítulo 25 Sentimentos
Aquela noite, Crístian e Samuel assumiram a cozinha, onde, juntos, fizeram o jantar com direito a uma lasanha maravilhosa. Enquanto isso, a patroa conversava conosco na sala onde contava histórias da família; como das outras vezes, um clima muito acolhedor. Eu estava distante, não conseguia parar de pensar na Bruna e em como sua vida mudaria a partir de agora. A atitude do tio Ozório me surpreendeu, em tempos em que pais biológicos fogem de suas responsabilidades, ele abraçou a garota como sua filha legítima.
— Juliano ligou — disse a patroa, quando nos reunimos na área da frente, após jantar. Estava calor, tempo fechado, não demoraria muito a chover. — Está no México, e teve uma grande surpresa.
— Não me diga que encontraram a filha dele? — perguntou o patrão.
— Sim, ela está no abrigo para menores desde que a mãe faleceu. O William foi para lá adiantar as coisas até que o Ju retorne ao Brasil.
— É criança? — Soraia perguntou, se sentando no primeiro degrau da escada.
— Está para completar dezessete anos — a patroa respondeu.
— Eu não sabia que ficavam no abrigo até essa idade — comentei.
— Crianças maiores não tem a mesma sorte de serem adotadas. Ela tem dois irmãos que logo que foram para o abrigo conseguiram uma família, mas como já tinha dez anos não quiseram levá-la.
— Eu agradeço aos céus por ter vocês em minha vida — Samuel abraçou os pais.
— Eu também — Cristian se juntou àquele abraço. — obrigado por não nos separar, eu amo esse cabeçudo aqui.
Eu e Soraia nos entreolhamos confusas.
— Vocês são adotados? — Soraia perguntou.
— Sim — Cristian, para nossa surpresa, confirmou.
— Eu não posso ter filhos, aí a vida me deu esses dois — disse a patroa.
— Eles eram um toquinho de gente quando fui até o abrigo para buscá-los — explicou o patrão. — Os pais faleceram em um deslizamento de terra, a avó não tinha condições de cuidar, aí o juizado de menores recolheu. Eu consegui a guarda provisória sem muitas dificuldades, depois foi só entrar com o pedido de adoção. Esses dois foram um presente em nossas vidas.
— Uma atitude muito bonita — comentei com um sorriso.
— Agora só falta casarem e fabricarem nossos netinhos, estou ficando velho, daqui a pouco não consigo mais levar o moleque para pescaria — disse o patrão, eu estalei os olhos e Soraia engasgou com o suco.
Os rapazes foram organizar a cozinha enquanto permanecíamos na área, conversando. Chegamos a oferecer nossa ajuda, mas recusaram, e decidimos respeitar a decisão. Quando já estava convencida de que a noite seguiria tranquila, um farol potente cortou a escuridão da estrada. De repente, vi uma caminhonete derrapando no gramado, e logo fiquei apreensiva, eu sabia que algo não estava certo.
— Evandro do Amaral — disse o patrão se levantando da cadeira de balanço onde estava sentado.
Do veículo, desceu um homem de estatura mediana, barba fechada, um pouco acima do peso. Ele estava com um chapéu de palha a cabeça, camisa de botão e calça jeans; suas feições não eram amigáveis, mas a do jovem que o acompanhava parecia ainda mais fechada.
— O teu funcionário jogou uma faca no meu filho hoje a tarde. Lá nas minhas terras.
— Valha-me — falei, já sentindo o coração disparar.
— Que funcionário?
— Ela estava com ele — o jovem que era a imagem e semelhança de seu pai, só que com a barba falhada, apontou para mim.
— A Bruna estava atrás do cachorrinho, ele... ele a agarrou. O Ian chegou e acabaram discutindo, foi por isso que atirou aquele punhal.
— Esses ciganos estavam nas minhas terras, não temos um combinado?
— O Ian, é um homem correto, se fez isso com toda certeza deve haver um motivo — disse o patrão.
— Não importa, eu não quero nenhum cigano em minhas terras, da próxima vez mando meter bala.
Do jeito que chegou, ele se foi, e quando todos os olhares se voltaram para mim, fui logo me explicando...
— Juro que não fiz nada, estava caminhando com a Bruna, a cachorrinha apareceu, e...
— Calma, Natacha, não estamos aqui para te repreender — disse o patrão. — Se estava com Ian, não vejo motivos para alarde.
— Eu vou colocar meu uniforme para lavar — disse Samuel, que nem havia percebido que estava ali, saindo cabisbaixo.
***
Quando chegamos no quarto, eu estava bastante preocupada. Pensei que Samuel não apareceria, ele ficou visivelmente incomodado com o fato de Ian ter me socorrido mais uma vez, inclusive desabafou com o irmão sobre isso. Mas Cristian o aconselhou e acabou convencendo a se juntas a nós para assistir a mais um filme; só que agora era uma comédia romântica.
— Por que aquele homem tem tanta raiva do nosso povo? — perguntei, mais para mim mesma do que para eles.
— Aquele João Pedro é um Mané metido a besta — disse Samuel. — Ele mexeu contigo?
— Comigo, não.
— Sorte a dele — Samuel estreitou os olhos.
— Eu queria entender o motivo dessa implicância com os ciganos — disse Soraia.
— Meu avô conta que seu Evandro do Amaral, tinha amizade com o avô de vocês — Cristian explicou. — Faziam negócios juntos na época, ele chegou a ser um dos fazendeiros mais bem sucedidos da região. O problema é que nessas idas e vindas ao acampamento Evandro acabou se encantando por uma cigana, e ficou obcecado por ela. Por fim, a esposa descobriu que o marido vinha assediando a garota e pediu separação; há quem diga que ela descobriu as outras traições também.
— O castigo sempre vem — Soraia comentou.
— Sim, e com a separação ele perdeu metade de tudo e deu uma boa quebrada. O casal travou uma luta na justiça, foi assim que ele ganhou o direito de ficar com o filho; a mãe foi morar em outro estado e nunca mais apareceu por aqui. Mas enfim, ele depois de separado achou que podia se casar com a cigana, e como segundo os costumes, não pode, o pedido dele foi negado, e, essa negação acabou iniciando uma briga entre o assentamento e o povo da fazenda dos Amaral.
— Uma guerra desnecessária — comentei. — Regras são regras, ué.
— É mesmo? — Soraia cantarolou abraçando o Cristian.
— São situações diferentes, nós não temos juízo — eu ri.
— Eu ainda me pergunto o que você fazia com Ian para aqueles lados — disse Samuel.
— Eu não estava com Ian, estava com a Bruna, ele chegou depois.
— Ah, não, vocês não vão ficar discutindo relação, agora vamos ver o filme.
— Dessa vez ninguém morre, não é? — perguntei, me aconchegando nos braços de Samuel.
— Não. Nesse ela sofre um acidente e fica com perda de memória recente, o cara precisa conquistá-la todos os dias — Samuel explicou acariciando meu rosto. — Você não precisa perder a memória, eu faço questão de te conquistar a cada amanhecer, e te amar quando a noite chegar.
— Olha a indecência! — Cristian jogou uma almofada no irmão.
***
Era dia de terapia, a sessão seria após o almoço, mas Alejandro tinha algumas coisas para resolver logo cedo na cidade, então saímos antes do sol nascer. Ian estava com ele, e enquanto os dois conversavam sobre compromissos de trabalho, estudo, me acomodei no banco de trás, onde permaneci calada pelo trajeto todo.
Eu até que curtia nossas idas até a cidade, era a oportunidade de passear um pouco e distrair a cabeça. Na ocasião, me levaram para comprar alguns livros, a psicóloga havia indicado a leitura como forma de distração e os livros que eu tinha já havia lido todos. Ian passou por alguns lugares resolvendo seus compromissos, meu irmão também, eu só estava de companhia. Almoçamos em um restaurante no centro da cidade e me senti um pouco desconfortável pela forma como uma mulher me encarava, mas dessa vez até que foi tranquilo, então, eles me deixaram no local onde fazia terapia e combinamos de me pegar em uma hora.
Entrei naquela sala de paredes claras e olhei para o céu azul refletido na vidraça da janela. Havia um jardim de inverno no canto, com porta de vidro temperado assim como seu teto por onde entrava luz. Ali havia plantas, galhos secos e alguns pássaros coloridos desses que são criados em cativeiro. Confesso que das poucas vezes em que estive ali, senti uma vontade imensa de soltá-los, mas meu irmão disse que se fizesse isso morreriam de fome ou até mesmo pelo ataque de um predador. Pois desde que nasceram, eram criados assim e não saberiam se adaptar com tantos desafios a ser enfrentados do lado de fora daquele espaço; às vezes me sentia assim.
Corri meu olhar pela estante atrás da escrivaninha, havia livros de capa dura, coleções e mais coleções sobre psicologia e comportamento humano. Fiquei curiosa para saber se ela realmente leu tudo aquilo, ou era um mero enfeite. A doutora Lauana era jovem, tinha a pele de um tom acastanhado e cabelos lisos, negros como a noite, olhos apertadinhos, mas não com traços orientais, estava mais para uma mistura tipicamente brasileira. Ela me olhava com aquele semblante sereno, me sentei a sua frente e repousei as mãos sobre as pernas, sempre ficava apreensiva nessas horas.
— Tudo bem, Natacha?
Ajeitei minha postura e sorri, ela fechou seu notebook e guardou uma pasta de documentos na primeira gaveta. Sua mesa de madeira escura exalava um cheiro característico de óleo de peroba, eu conhecia porque Soraia usava muito para lustrar os móveis da fazenda. Na parede da janela, havia um sofá de couro na cor preta, se não fosse pelo piso claro e as paredes brancas eu chamaria aquele lugar de sombrio.
— Tudo bem — respondi.
— Como foi sua semana?
Olhei para o peso de papel em sua mesa, que não se apoiava sobre papel algum, tentando me recordar de tudo o que ensaiei para dizer. Meu irmão dizia que tinha que ser espontânea, mas não me sentia assim, era como se tivesse que trazer comigo respostas prontas, a fim de não ficar falando muito sobre coisas que me eram tão íntimas. Estranho, eu sei, mas era assim que me sentia.
— Estou passando a semana na casa da patroa, meu pai está reformando o quarto, como a senhora sugeriu.
— E como está sendo a experiência?
Olhei para os pássaros no jardim de inverno, cantarolando entre si, e voltei minha atenção para ela.
— Estranha.
— Um choque de realidade, talvez?
— Acho que sim.
— E como está sendo conviver com Samuel?
— Ele mudou comigo.
— Mudou como?
— Está mais atencioso, focado em nosso futuro, eu acho.
— E você, como se sente em relação a ele?
— Não sei se consigo responder essa pergunta — falei sincera.
— Se tivesse que me dizer quem é o Samuel, o que me diria?
— Eu diria que é um cara incrível, que demonstra que me ama e que está se esforçando para construir uma vida comigo. Acho que é assim que me sinto em relação a ele.
— E você, como se sente em relação a isso?
— Tenho medo.
— Se tivesse que me dizer quem é o Ian?
— O Ian, é..., o Ian — dei de ombros.
— Vou reformular a pergunta. Quando você pensa no Samuel, o que vem a sua mente?
— Quando penso no Samuel, me vem a mente a sensação de liberdade. De poder ser quem eu quero, fazer minhas próprias escolhas sem que isso signifique desonrar ou ofender a alguém. Mas, ao mesmo tempo, me vem a sensação de vazio porque sendo cigana, me unir a ele significa me afastar de todos os que amo, e isso me assusta, porque como aqueles passarinhos, ali, eu não conheço outra vida.
— Se unir ao Samuel significa deixar suas origens, é isso?
— Eu passei um tempo na cidade, mas ainda assim estava entre os meus. Do lado de fora, vivia uma rotina diferente, mas quando chegava em casa, o meu mundo estava lá; nas vestes, alimentos, na música. Minha tia é cigana e tenta manter suas raízes vivas e presentes em tudo o que faz.
— Você me disse na sessão passada, que se sentia confusa sobre o conflito de tradições que viveu.
— Sim, ainda me sinto. Ainda mais agora que estou passado uns dias na sede da fazenda.
— E como está sendo essa experiência?
— Eles são atenciosos, brincam entre si, são carinhosos, fazem o possível para que me sinta em casa.
— E você se sente?
— Às vezes, sim, mas também sinto muita falta de casa. Da minha família,
— Quando pensa no Ian, o que vem a sua mente?
Olhei para minhas mãos e recordei dos tempos de criança quando ele, já adolescente, brincava comigo. Sempre fui muito apegada, mas por várias vezes minha mãe não deixava brincar com eles, eram garotos e eu uma menina. Me lembrei de vê-lo aprendendo a atirar facas com o cigano Erick, um homem que trabalhou por muitos anos no circo. Na época chorei muito porque Ian participou de uma apresentação e colocou na cabeça de ir embora com a trupe; por sorte a mãe não permitiu.
— O Ian para mim representa segurança e, ao mesmo tempo, insegurança.
— Consegue me explicar?
— Sim, segurança porque desde que me conheço por gente, ele sempre esteve ali.
— Uma espécie de protetor?
— O Ian é um mistério para mim, se ao menos soubesse o que sente.
— Como assim, Nat?
— Ele não fala sobre seus sentimentos, então eu nunca sei o que esperar, por isso a insegurança.
— E isso é ruim?
— Sim, porque eu queria muito saber se ele se sente como eu.
— E como se sente?
— O Samuel é intenso, me abraça, beija, faz planos para uma vida. Ele colocou esse anel em meu dedo, pode até não ter um significado para minha família, mas para nós... — coloquei a mão sobre a mesa e olhei para o objeto brilhando. — O Ian, não me diz o que sente, ele é muito discreto em tudo e isso é um verdadeiro desafio para mim.
— Você tem o Samuel ao alcance de suas mãos, mas não ter o Ian da mesma fora te incomoda?
— Deve estar me achando uma leviana.
— Quem nunca se sentiu confusa entre duas situações que lhe fazem bem, que atire a primeira pedra — ela sorriu.
— Eu não posso amar duas pessoas ao mesmo tempo.
— Claro que pode.
— Não, eu não posso.
— Você pode amar quantas pessoas couberem em seu coração, Natacha; o amor é infinito. Desejar e ter fantasias, é natural. Embora a sociedade e a religião tenham estabelecido regras, exitem lugares no mundo onde a bigamia é vista como algo comum, e, de certa forma, funciona. Aqui, é crime, mas não se pode negar que muitas pessoas praticam.
— O que quer dizer com isso?
— Não estou te incentivando a se relacionar com dois homens ao mesmo tempo. Estou mostrando que o ser humano pode, sim, amar duas pessoas de formas diferentes. Só não é "certo", segundo a nossa realidade, se envolver intimamente, isso acarretaria grandes problemas, mas sabemos que existem muitas pessoas que fazem isso. E para elas, está tudo bem.
— Não estou entendendo seu raciocínio.
— Veja bem, o amor pode existir nos gestos, palavras, ações. Você pode amar o Samuel pelo simples fato dele te tratar bem, de te proporcionar coisas novas. E pode amar o Ian por tudo o que representa em sua vida; ou pelo desafio de saber que não o tem em suas mãos. O que eu te convido a pensar, é sobre o que faria se o tivesse.
— Estou com Samuel, temos o nosso compromisso, mas me sinto muito atraída pelo Ian, e isso me deixa mal, porque sei que é muito errado.
— Esse conceito de certo e errado, é relativo. As pessoas hoje em dia sequer mantém relacionamentos duradouros, saem se envolvem, e depois seguem suas vidas. A família tradicional é uma escolha.
— Para meu povo, é a coisa mais importante.
— Sim, e quem disse que está errado? A família é o bem mais precioso que temos. O que eu quis dizer é que formar uma família, sua, é questão de escolha.
— Eu sinto que amo o Samuel, mas também sinto que amo o Ian. Acho que nem sei o que quero da vida.
— Você está descobrindo um mundo novo e é normal se sentir insegura. Não se culpe por isso, todos passamos por algo parecido em algum momento da vida.
— Não posso amar duas pessoas, quero dizer, até posso aqui dentro, mas preciso optar por uma só e essa escolha será muito difícil.
— Vivemos em tempos em que as pessoas procuram a satisfação pessoal, são fases que podem ser duradouras, ou não, mas independente de tudo; a vontade do outro deve ser respeitada.
— O que devo fazer?
— Essa resposta só você tem.
— E se eu não tiver?
— Então terá que encontrar.
"Ótimo, meu pai pagando terapia para eu ouvir que o problema é meu e terei que resolver sozinha"
— Percebi que falamos sobre a confusão de sentimentos em que me encontro, mas não sobre o motivo de eu estar aqui.
— O tratamento envolve várias camadas, e aprender a lidar com seus sentimentos é uma delas.
— Eu beijei o Ian. Não me lembro se falei aqui sobre isso.
— Sim, e já conversaram sobre isso?
— Não.
— Deveriam, assim, teria o gancho para tentar entender os sentimentos dele em relação a você.
No fundo ela tinha razão, eu precisava falar com Ian sobre o beijo, sobre como me sentia, ao invés de ficar tentando adivinhar. Sempre fui muito impulsiva e acabava criando minhas próprias teorias sobre tudo na vida, essa era minha natureza, assim como meu maior vilão. Mas, agora, talvez fosse a hora de mudar de postura e falar abertamente sobre meus sentimentos.
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