Capítulo 23 Sua mulher
A conversa com Samuel me deixou mexida. Era nítida sua mudança, ele em momento algum veio com liberdades comigo, me tratou muito diferente das outras vezes. Refleti bastante sobre cada gesto, cada palavra e confesso que, ao mesmo tempo que fiquei feliz, me senti culpada diante de tudo o que me disse, eu não fazia ideia de como tudo aquilo estava refletindo nele.
O Samuca poderia até ser impulsivo, em alguns momentos agir de forma egoísta, mas não dá para negar que, como ser humano, tem sentimentos e pode cometer erros com direito a se redimir. Eu só não imaginava que um dia seria a redenção de alguém.
— Aonde vai? — perguntou Soraia, vindo com alguns lençóis dobrados na mão pelo corredor.
— Tomar um pouco de sol, e talvez passe no escritório ver os rapazes.
— A Brenda está na fazenda, tenta não esbarrar com ela.
— Dessa vez estou armada — eu ri apontando a bengala em sua direção.
Saí pelo jardim e me sentei em um banco olhando os pássaros que brincavam nos arbustos, ali havia beija-flor e várias borboletas coloridas, sempre gostei de observar os bichinhos.
— Para onde será que os bichinhos vão quando morrem? — refleti me lembrado da minha lagartixa.
— Nat? — Ao ouvir a voz de Bruna, me virei rapidamente para a direção de onde ela vinha.
— Oi — respondi apreensiva.
— Eu soube do que aconteceu, e... — em um impulso ela me abraçou. — Me desculpa, amiga.
— Eu é que te devo um pedido de desculpas — falei em seu abraço.
— Fui egoísta, eu sinto muito, muito mesmo.
— Tudo bem — sorri emocionada. — Como você está?
— Estou bem, a minha mãe apareceu com um namorado que ninguém sabe de onde saiu e disse que vai embora da fazenda.
— Eita, acho que nunca vi sua mãe com um namorado?
— Nem eu — Bruna deu de ombros. — Minha mãe sempre foi muito discreta em relação a isso, agora veio com essa novidade. Pelo visto já tem um tempo que estão juntos.
— Então você vai embora?
— Por enquanto, não, eu vou ficar com meu tio e avós, pelo menos até iniciar a faculdade.
— Natacha?
Olhei pelo corredor de lírios amarelos e vi o homem alto, de pele Oliva e cabelos negros, lisos, se aproximando. Meu coração até errou as batidas.
— Tio Ozório?
— Cheguei ainda agora, vim ver como estava — ele disse com um sorriso. — Oi, Bruna.
— Oi, tio, a sua benção — ela sempre o chamou assim.
— Como você está?
— Estou bem, o vô vai gostar de saber que chegou, vai lá ver ele, não vai?
— Eu vou, sim, tenho umas encomendas de carrinhos, os caminhões de madeira que ele faz são um sucesso. Cortou o cabelo?
— Aparei as pontas — ela disse ajeitando as mechas que caiam pelo ombro.
— Ficou bom. E as notas, está indo bem na escola?
— Ah, tio tirei nota vermelha em matemática, que vergonha — ela riu.
— Peça para o Ian te ajudar, ele é ótimo com números; ou o Ivan.
Olhei aquela interação entre pai e filha e fiquei emocionada. Ao mesmo tempo, me sentia culpada por saber a verdade e não poder dizer a ela.
— Vou pedir.
— E você, Nat, o pé ainda dói?
— Estou conseguindo firmar no chão, acho que logo já me livro desse negócio — apontei para a bengala. — Me sinto uma senhora de oitenta anos.
— Exagerada — o tio sorriu. — É bom te ver bem, fiquei preocupado.
— Tive pessoas maravilhosas me cuidando, tio.
— Você é muito querida, Nat. Sabe se o Ian está por aí?
— Acredito que sim — respondi.
— Vou lá falar com ele.
— A sua benção — pedi.
— A sua benção, tio — Bruna se despediu.
— Está abençoada, filha.
O pai de Ian se afastou e fiquei remoendo aquela culpa. Era nítido que tinha um carinho muito grande por ela, desde sempre tratava todos assim. O tio era muito legal, tinha o dom para conversar com os adolescentes, e ganhou o respeito da maioria por ali, por seu jeito atencioso e brincalhão. Não entendia o porquê de a mãe da Bruna fazer isso com eles, achava muito injusto.
— Estou preocupada com a Karen, ela não tem se entendido bem com o padrasto, outro dia ele quase a agrediu. Aquele homem dá medo.
— Sério? Que horror, mas a mãe dela aceita?
— A mãe diz amém a tudo o que ele faz, se você ver o que ele faz com ela dentro de casa. O homem é um burro xucro, nem sei como suporta.
— Nossa, isso é preocupante.
— Mais do que você pensa; a Karen percebeu que ele tem agido de modo estranho com ela.
— Estranho como?
— Estranho do tipo que ela precisa trancar a porta do quarto para dormir.
— O Ivan sabe disso?
— Ainda não, ela está de castigo, não pode sair.
— Castigo?
— Sim, o padrasto disse que a viu de assanhamento com os peões da fazenda, e olha que ela nem fala com eles, o Ivan tem ciúme.
— Mas e o pai advogado?
— Karen tem medo de contar e ele a levar daqui.
— Que situação — murmurei pensativa. Pelo visto, não era só minha vida que estava de pernas pro ar.
— O Ian me procurou, conversamos sobre o compromisso de vocês.
— E o que ele disse?
— Disse que viu o cigano Venâncio te observando e notou um interesse da parte dele.
— Mas eu havia acabado de chegar, e...
— Sim, foi logo que você chegou. O Ian disse, que ele te olhava como um homem olha para uma mulher, e ficou preocupado, não por ser mais maduro, mas por não inspirar confiança. O problema é que todos gostavam dele, e não tinha uma razão para dizer que não era uma boa pessoa.
— Não mesmo, ele era trabalhador, desde sempre esteve indo e voltando daqui. Segundo meu pai, nunca deu margens para desconfianças; o Ian pelo visto foi o único que ficou receoso.
— Sim, ele me disse que na noite em que você contou sobre sua visão, ficou preocupado, pensou que pudesse ser um sinal de que algo ruim te aconteceria, então, mesmo sabendo que estava com Samuel, demonstrou interesse à sua família como uma forma de proteção.
— Aquele homem estava interessado em mim — murmurei incomodada.
— Desculpa, Nat, eu não deveria ter falado, e...
— Tudo bem, ele não pode mais me fazer mal.
— Eu amo o Ian, amiga, mas sei que o coração dele nunca será meu. Terei que aprender a conviver com isso.
— Com o Ian não deu certo, mas existem outros ciganos solteiros. Talvez com o tempo você encontre algum que lhe agrade, já que quer tanto ser uma cigana.
— Não sei, eu sou muito diferente de vocês.
— Isso não te impede de realizar seu sonho. Posso te ensinar a dançar como nós, falar sobre nossa cultura, será uma cigana no coração, o que acha?
— Faria isso por mim?
— Claro.
— Eu danço muito feio — ela riu.
— Sem pessimismo, eu vou te transformar em uma linda cigana — falei decidida.
— Senti sua falta, Nat.
— Eu também.
***
Meu reencontro com a Bruna foi melhor do que esperava, ela era minha melhor amiga e estava muito sentida por ter se afastado daquela maneira. Me sentia mal por não poder contar a ela sobre o pai, mas sabia que não era um assunto que me dizia respeito; só me restava torcer para um dia poderem conviver em família. E se dependesse de mim, isso aconteceria, já até pensava em algumas coisas para transformá-la em uma legítima cigana, nos gestos e aparência, porque de sangue ela já era.
— O Ian está por aqui? — perguntei a Carla, que digitava um relatório em sua mesa.
— Está, sim, pode entrar.
— Não seria melhor anunciar?
— Ah, não, ele disse que quando você viesse poderia entrar direto, exceto se estivesse em reunião.
— Ah, sim, então eu vou falar com ele.
Respirei fundo e fui em direção à porta de sua sala, é estranho como meu coração disparava só de saber que o veria.
— Ian?
Ao abrir a porta, me deparei com ele sentado em sua escrivaninha com Juliana ao seu lado analisando algo na tela do computador. Ela estava próxima demais, não curti.
— Nat? — ele ajeitou sua postura. Ela nem se moveu.
— Está ocupado, não quero atrapalhar.
— Não atrapalha de modo algum, estamos apenas revisando um relatório — ele se levantou e veio em minha direção. — A patroa disse que dormiu bem a noite, fiquei muito feliz. Como se sente?
— Bem, eu pensei que fosse ficar bravo por eu... esquece.
— Ian, desculpa atrapalhar, o Romero trocou as medicações da égua e pelo visto deu reação, você pode dar uma olhada? — disse o primo Wladimir em um tom apreensivo. — Oi, Nat, você está bem?
— Estou, sim.
— Eu já volto — disse Ian, saindo apressado. — Falei para aquele cabeça dura prestar atenção!
— Eu sei como aliviar o seu estresse, gato — Juliana sorriu, se sentando na cadeira de Ian.
— O meu irmão não está por aqui? — perguntei.
— Está com Samuel fazendo um relatório sobre os animais.
— E você, pretende ficar muito tempo? Digo, o seu estágio termina quando?
— Vai demorar um pouco, por quê?
— Só curiosidade — respondi incomodada.
— Oi, Lídia, e aí? — disse ela ao celular, quando eu pegava uma revista qualquer sobre a mesinha. — Estou aqui..., sim, com ele, eu disse que conseguiria. Idiota, é claro que não, eu só conhecia a pessoa certa.
Revirei os olhos virando outra página de alguma matéria que nem prestei atenção.
— Claro que vou investir, e se tudo der certo, antes do fim do mês ele estará estagiando na minha cama — ela murmurou me olhando de canto, fingi não ter ouvido, mas a verdade é que fervilhava por dentro. — Tem uma amiga dele aqui, não posso falar agora — sussurrou. — E você como está?
"Abusada", pensei enciumada.
— Sim, vou fazer a festa do meu aniversário, será lá no rancho do lago... claro que vai ter, eu quero festar muito. Se vou convidar? Haha, já intimei, ele não me escapa.
— Eu vou falar com meu irmão — falei me levantando.
— Tudo bem? — ela perguntou.
— Eu estou ótima, nunca estive tão bem.
Saí apressada tropeçando com aquela bengala, não ia conseguir ficar naquela sala com aquela garota, ela sim era digna de ser chamada de devoradora de homens, abusada!
— Nat, já vai? — Ian perguntou, vindo em minha direção.
— Se você for à festa dela, eu te bato com essa bengala! — apontei o objeto na direção dele, que me olhou surpreso.
— Festa de quem?
— Você — bati de leve a bengala em seu braço. — Vai — bati outra vez. — Dar um jeito de acelerar esse estágio dela.
— Está com ciúme da Ju?
— Juliana! — bati outra vez. — Ela tem nome, é Juliana. Eu não estou brincando, Ian, você vai despachar essa garota daqui quanto antes!
— Ei, não é assim que a coisa funciona, eu assinei um contrato com a faculdade e não é só ela que virá estagiar. Natacha, é trabalho, eu sei separar as coisas.
— Ela não sabe!
— Problema dela!
— Problema seu que já dormiu com ela — falei entredentes.
— Ei — ele me puxou pelo braço. — Você está dormindo na casa dele e nem por isso eu surtei.
— Ah, como você é chato!
— O que deu nela? — o ouvi perguntar ao primo Wladimir, quando me afastei.
— Você está ferrado, Ian — o primo respondeu aos risos.
— Nat?
— O que é!
— Ei, tá brava?
— Desculpa, Ivan, eu me irritei com aquela..., esquece.
— Achei que fosse me bater, eu hein!
— O teu irmão me estressa.
— O que o Ian aprontou?
— Até agora nada, espero que nem apronte!
— Eita, mulher brava! É sinal de que está se recuperando.
— Pelo contrário, acho que estou surtando — me encostei à parede, olhando para cima.
— Ei, Nat, fica assim não.
— Sei que tem horas que acabo sendo infantil, não me orgulho disso. Me sinto perdida, queria tomar as rédeas da minha vida, mas sequer sei para qual direção seguir.
— Vai passar, Nat.
— Será, Ivan? Tudo o que aprendi, entra em conflito com que quero, mas, ao mesmo tempo, o que quero, entra em conflito o que sinto. Eu já não sei mais que rumo tomar. E ainda tem essa sensação de estar em perigo o tempo todo. Essa noite eu dormi bem, mas é como se sentisse a presença dele o tempo todo me sondando.
— Quando penso que ele levou minha irmã, sinto raiva de saber que tinha passe livre entre nós, que ia e vinha durante todos esses anos sem que ninguém desconfiasse — Ivan se encostou ao meu lado. — O Ian bateu pouco, eu teria matado ali mesmo.
— Foi ele mesmo que levou a Pérola?
— Ele era o motorista; confessou ao Caio.
— Valha-me!
— Nat?
— Oi, Alê, eu vim te ver — falei ao ver meu irmão se aproximar.
— Estou indo separar uns animais, quer ir comigo?
— Não vou te atrapalhar?
— Você nunca atrapalha — disse ele saindo comigo ao seu lado.
***
O restante do dia fiquei com a patroa que podava suas plantas e trocava algumas de vaso. Ela tinha uma estufa com várias qualidades de orquídeas, algumas raras que eu nem chegava perto. Aprendi sobre adubação, floração e cuidados, até que foi legal passar esse tempo juntas, dona Virgínea era uma companhia muito agradável.
Minha mãe e meu pai também passaram por lá, juntamente com meu avô, a cigana Carmencita também passou para fazer uma massagem com ervas e me levar um chá anti-inflamatório para ajudar na recuperação. Achei fofo ela dizer que ficou com ciúmes, queria que eu ficasse em sua casa, mas não me sentiria à vontade no quarto de Pérola, e também não seria bem-vista minha estadia em sua residência por motivos óbvios.
Quando a noite caiu, tomei um banho e me juntei à família de Samuel para o jantar. O clima estava descontraído, rimos bastante com as histórias das travessuras dos rapazes, confesso que pela primeira vez me senti à vontade ali. Eu observava a interação da família e imaginava como seria se eu e Soraia, pudéssemos ficar ali oficialmente como membros. Por um instante criei um roteiro romântico em cabeça, e quando Samuel segurou minha mão por baixo da mesa entendi que ele também pensava o mesmo.
Depois do jantar brincamos com seu Geraldo, dona Virgínea, e os filhos, de mímica, e eu ria do patrão tentando fazer as imitações que saíam para ele. Até que me saí bem, mas quando brincamos de stop, fui um verdadeiro fiasco; no fim, foi muito divertido. Em minha casa havia muito amor, carinho, alegria, mas era diferente, meu pai não brincava de joguinhos com a gente, nossa rotina era outra. Foi uma experiência incrível.
— Eu trouxe seu sorvete — disse Cristian, enquanto Samuel e Soraia escolhiam um filme.
— Não acredito! — sorri animada.
— Eu sempre cumpro com minhas promessa, Nat.
— Ei, quem trouxe fui eu! — Samuel protestou.
— Mas, olha que ciúme — Cristian riu nasalado.
Eu estava deitava em minha cama, Samuel se ajeitou do lado, assim como Cristian se deitou com minha irmã. Usei o Jubileu de pelúcia como apoio para o pescoço enquanto recebia sorvete na boca, ele estava muito romântico aquela noite. Quando o filme começou, me aconcheguei em seu peito e por várias vezes beijava meu rosto, acariciando meu cabelo. A sensação era muito boa.
— Queimei a língua — disse o Cristian.
— Ué, amor, por quê? — Soraia perguntou.
— Zoei tanto você, por ficar assistindo filme clichê da moça estranha que pega o bonitão e estou aqui agora torcendo pelo casal.
— Ah, eles são fofos — disse Soraia.
— Ela gosta de observar as estrelas — falei com um sorriso. — Meu sonho poder ver o céu por meio de um telescópio.
— Já fiz uma nota mental para colocar um desses em casa — Samuel sussurrou em meu ouvido, me apertando em seu abraço.
— Eu só quero ver como ele vai realizar o sonho dela de estar em dois estados ao mesmo tempo — disse Soraia.
— Que linda história de amor, quem dera poder viver algo assim — comentei.
— Podemos escrever a nossa — disse Samuel. — Não posso realizar todos os seus sonhos, mas nada me impede de tentar. Tudo para ver o teu sorriso, minha linda.
— É tão bom estar assim contigo — murmurei. — Essa noite marcou a minha vida.
— A minha também, não tenha dúvidas.
Quando o filme terminou eu estava em lágrimas, já sabia que ela morria no final, mas quando assisti foi diferente, sei lá, me emocionei. Samuel estava muito atencioso, uma mudança gritante do cara que me pediu em noivado em seu quarto da outra vez, para esse que estava deitado ao meu lado agora.
Ele me beijava, abraçava, mas não me tocava, disse que respeitaria o meu tempo e cumpriu. Estávamos vivendo um verdadeiro conto de fadas, que começou com o filme, e terminou com dois casais dormindo abraçados. Era bom ter alguém ali do meu lado demonstrando que me queria, fazendo planos de uma vida juntos, para o futuro. Poderia ser Ian ali, mas depois de ouvir o relato da Bruna sobre sua conversa com ele, tive certeza de que não estava realmente interessado em ficar comigo.
Ian não me escolheu porque me queria, e, sim, por querer me ajudar, agora que Venâncio morreu, ele não precisava mais se preocupar com isso. Cheguei a questionar se ele era o amor da vida que não é para a vida, só não entendia o porquê de ter se referido a mim como, "sua mulher".
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro