Capítulo 15 Eu não mereço um cara como você
Eu estava na copa da casa de Ian conversando com sua mãe enquanto ele se arrumava para ir ao trabalho. Ela havia feito bolachinha de nata com goiabada e bolo de limão, que eu particularmente amava, pois tinham gosto de nostalgia, visto que nos tempos de criança era costume fazermos piquenique na cachoeira, regado a bolos e tortas deliciosas feitas por suas abençoadas mãos.
A casa era simples, mas bem aconchegante cercada por um gramado impecavelmente aparado. A varanda se estendia pelos três lados sendo decorada com redes, cadeiras de área e vasos de plantas. Entrei pelos fundos onde havia a lavanderia e um espaço reservado com churrasqueira, banheiro externo, fogão de lenha, pia e uma mesa grande de madeira maciça com bancos onde sempre se reuniam em seus momentos de lazer.
A cozinha era um cômodo singelo onde havia uma mesa pequena de cerejeira que fazia conjunto com o armário de parede e pia. Fogão, geladeira e acessórios eram brancos, assim como o azulejo da parede contrastando com o piso esverdeado da ardósia. Um ambiente comum se não fosse pelo toque cigano presente no colorido da cortina, toalha de mesa, enfeites e peças bordadas. Passando pela cozinha havia a copa onde faziam suas refeições, e o corredor que dava acessos aos quartos, banheiro, e por fim a sala, que também trazia em sua decoração o colorido da alegria cigana.
Eu cresci brincando ali, descreveria mil vezes se preciso, pois era minha segunda casa, e dependendo de como as coisas acontecessem, talvez seria minha primeira morada com o homem que me escolheu para companheira.
— Eu fiz umas pulseiras novas, estão em cima do armário do corredor, escolhe uma lá para ti — ela disse, atenciosa, indo em direção a cozinha onde a chaleira vermelha com a água para passar o café, já apitava.
Caminhei pelo corredor e logo avistei as peças coloridas dentro de uma caixinha, mas o que me chamou mesmo a atenção, foi a visão que tive pela fresta da porta do quarto do Ian. Era uma suíte bem espaçosa com uma porta de saída para fora e outra que dava para o corredor. Na ocasião estava entreaberta, ele havia acabado de sair do banho e estava apenas com uma toalha enrolada na cintura.
— Valha-me — murmurei tentando me concentrar nas pulseiras.
Ele estava de costas, com os cabelos molhados e soltos, que faziam com que alguns pingos discretos de água percorressem o caminho de seu tronco desenhado por músculos aparentes, que se destacavam em sua pele morena. Não sei em que momento passei a sentir aquelas coisas, mas a visão dele, seminu, falando ao celular, em pé à beira da cama, me causou sentimentos confusos, eu simplesmente não conseguia desviar o olhar.
O Samuel me fazia sentir algo parecido quando me beijava ou tocava, mas ali era diferente, não havia um clima romântico, tampouco foi intencional, o Ian estava relaxado, distraído, e ainda assim mexeu com meu psicológico ao ponto de me fazer querer ver mais do que deveria. Confesso que senti vergonha de meus próprios pensamentos, e quando se virou de perfil e levou a mão até a toalha que caiu no chão, a voz de Soraia acompanhada por um safanão me fez pular e quase cair da cama.
— Natacha!
Abri os olhos para ver uma cigana afobada me sacudindo.
— O que foi? — perguntei revoltada, como ela ousa atrapalhar meu momento?
— A mãe foi para a cidade, ela disse que a dona Virgínea quer te ver, então fique pronta que lá pelas oito Ivan vem te buscar com a Ariane, vão almoçar na fazenda.
— Por que não deixou um bilhete, um recado, sinal de fumaça, eu estava em um sonho tão bom — protestei tapando o rosto com o travesseiro. — Almoçar na fazenda?
— O Samuel vai ficar muito feliz se souber que está tendo "sonhos bons" com o Ian.
— Ei, como sabe?
— Estava chamando o nome dele — disse ela saindo do quarto. — Vigia, cigana!
— Valha-me! — Pulei da cama, apressada.
Aquele sonho foi muito diferente de todos os que já tive, pois mesmo acordada ainda sentia aquela sensação que me formigava o corpo e disparava o coração. Será que todo mundo é assim? Tem sonhos diferentes e acorda mexido? Não sei, mas foi muito bom e confesso que queria muito poder ter visto um pouquinho mais, já que era sonho e ninguém ficaria sabendo. Nem ele.
Cheguei na casa da cigana Carmencita, e pasmem, Ian estava tomando banho e ela havia feito bolo de limão com bolachinhas de nata. Eu ainda estava sob efeito do sonho, sentindo a pele arrepiar causando um frio no estômago a cada momento em que a imagem daquele cigano, enrolado naquela toalha, passava pela minha cabeça. Me sentei atrapalhada já pensando em fugir dali. E se aquele sonho fosse uma visão?
— Eu fiz umas pulseiras novas, estão em cima do armário do corredor, escolhe uma lá para ti.
— E-eu? — Engoli em seco já me abanando.
— Sim, um mimo para minha futura nora — ela sorriu, enquanto passava um café fresco na cozinha.
— Agora?
— Sim, vai lá, os meninos ainda estão se arrumando, daqui a pouco tomaremos café juntos.
— Ah, sim — sorri sentindo o rosto esquentar.
Caminhei pelo corredor tentando espantar aquela lembrança, mas era tão difícil com tudo acontecendo exatamente igual. A diferença é que agora não teria a Soraia para me sacudir.
— Valha-me — murmurei ao ver a porta de seu quarto entreaberta.
Juro que tentei não olhar, mas foi mais forte do que eu, pois lá estava ele falando ao telefone com aquela toalha branca enrolada na cintura. Poderia ter sonhado com um cachorrinho buscando a bola, um peixe nadando no rio, até mesmo com o Jubileu devorando uma mariposa, mas não, eu tinha que sonhar com um homem de quase dois metros de pura masculinidade saindo do banho. Tinha que haver um propósito para isso, não é possível.
"Você não é assim", me repreendi em pensamento. " É o Ian, seu amigo, vocês cresceram juntos, quer dizer, ele cresceu, você não, mas... caramba, ele tá lindo, mas é o... foco Natacha!"
Respirei profundamente tentando me concentrar nas pulseiras, mas minha cabeça virava em modo automático para a direção daquela porta. Fechava um olho, abria o outro, mordia os lábios, fazia biquinho, nunca me vi em uma situação tão vergonhosa, eu realmente estava desejando que aquela toalha caísse?
"Vigia, cigana!", a voz da razão, digo, da Soraia veio a minha mente me fazendo retomar o foco, mas ainda assim arrisquei uma última olhada.
Meu queixo caiu quando Ian se virou de perfil e levou a mão até a toalha que rapidamente deixou seu corpo todo à mostra. Foi automático, tapei o rosto com a mão, mas já era tarde, fui pega em flagrante.
— Nat? — o cigano percebeu minha presença, e foi nesse momento que coloquei a pulseira no braço e bati em retirada.
— Eu não vi nada! — menti, mesmo que por alguns segundos pude ver toda a sua silhueta de perfil... e que perfil!
Cheguei na copa onde a cigana Carmencita terminava de servir a mesa e me sentei completamente desnorteada, se tivesse um buraco no chão com certeza teria pulado dentro, o que deu em mim?
— Gostou? — ela perguntou com um sorriso.
— É a perdição — falei distraída. Eu nunca tinha visto um homem nu assim tão de perto, é claro que por imagens ou até mesmo vídeos que as meninas do colégio me mostravam eu já havia visto, mas é muito diferente quando se está ao vivo e a cores, com cheiros e emoções.
— O quê? — Carmencita perguntou com as sobrancelhas elevadas.
— Perdão, qual era a pergunta mesmo?
— A pulseira — disse ela. — Eu perguntei se gostou.
— Ah, sim, obrigada, ela é linda — sorri ajeitando pulseira de pedras azuis mescladas com branco, no pulso.
— Você sempre gostou da cor azul e combina muito contigo, vou fazer uma colcha de retalhos nessa cor para a cama de vocês.
— A ca-cama?
— Ficou vermelha, que gracinha, está ansiosa?
"Em que momento esse assunto veio para a mesa?, pensei envergonhada.
— Droboito — disse Ian, nos cumprimentando com um bom dia, e me livrando daquela saia justa.
— Droboito — falamos em um uníssono.
Ele me olhou por um instante e não consegui manter o contato visual, estava vestido, mas era como se ainda estivesse nu a minha frente, eu sequer conseguia respirar direito.
— Ela escolheu a que eu disse que escolheria — ele comentou, olhando para a pulseira em meu braço.
— Sim, você realmente conhece os gostos dela — a mãe respondeu sem desfazer aquele sorriso bobo.
Ian ainda estava com o cabelo úmido, solto, caindo pelos ombros, o cheiro era muito bom. Sua camisa de uniforme como sempre impecavelmente limpa e passada, enfiada dentro da calça, que diferente do habitual, estava um pouco colada no corpo, bota, fivela e relógio completavam o look, que era padrão dos funcionários da fazenda. Ele sempre foi vaidoso, cuidava da aparência e a genética também ajudou muito, Ian era a imagem e semelhança do pai.
— Eu vou olhar o pão, e estender umas peças de roupa para aproveitar o sol, tudo bem vocês conversarem sozinhos?
— Tudo bem para você, Natacha? — Ian me perguntou, antes de se acomodar na mesa à minha frente.
— Se estiver para você.
— É bom que conversem, cresceram juntos, mas passaram anos afastados daqui a pouco estarão dividindo o mesmo teto e é mais fácil quando se tem essa aproximação — disse ela indo em direção a porta. — Eu te ensinei o quão respeitoso precisa ser com sua noiva, não é filho?
— Claro, mãe, não se preocupe — Ian posicionou o cotovelo esquerdo sobre a mesa apoiando a testa na mão, enquanto ria balançando a cabeça negativamente. — Se ela me atacar eu grito.
Carmencita lhe lançou um olhar de aviso e saiu nos deixando a sós, se soubesse que acabara de ver seu filho, nu, mesmo que por relance, arrancaria os próprios cabelos. Abaixei a cabeça na tentativa de evitar um contato visual, enquanto pensava em algo aleatório para espantar aquela imagem que insistia em perturbar a minha mente, mas ainda assim, era possível sentir os seus olhos presos em mim.
— Nat, eu...
— Tudo bem, eu não vi nada, só... droga isso é constrangedor.
— Não costumo deixar a porta do quarto aberta, foi um descuido, realmente não te vi ali.
— Tudo bem, Ian, eu já vi um homem nu antes.
Sabe aquele filtro que existe entre o cérebro e a boca? Pois é, eu nunca tive, e isso sempre me botava em apuros.
— Não precisava me lembrar disso.
— Ah, droga, não desse jeito que está pensando, é que...
— Não precisa se explicar, Natacha — Ian franziu o cenho visivelmente incomodado.
— Tá, eu vi — gesticulei nervosa com as mãos. — Mas não o que acha que vi, do jeito que pensa que vi, e... — tentei explicar, mas atrapalhada soltei os ombros com cara de choro. — Podemos mudar de assunto?
— Melhor — ele concordou, mas isso não foi o suficiente para me fazer relaxar.
— Acho melhor eu ir embora — falei me levantando.
— Espera — ele segurou a minha mão. — Já que está aqui, tome café comigo, a minha mãe tem razão, precisamos conversar.
— Tudo bem — me sentei novamente, apoiando as mãos sobre os joelhos, que tremiam.
— Não precisa ficar nervosa, Nat, não vou contar a ninguém sobre isso.
— Deve estar me achando uma boba infantil — murmurei chateada.
— Não, é claro que não, eu só estranhei esse seu jeito tão tímido em relação a mim.
— É que, tem algumas coisas aqui na minha cabeça, e...
— Ei, sou eu, o Ian lembra? Sempre conversamos abertamente, você sabe que não precisa ter receio de mim.
— Você já sonhou comigo alguma vez? — arrisquei a perguntar.
— Como?
— Sonhos, você já teve algum comigo?
— Sim, inclusive aconteceu essa noite.
— E... foi bom?
— Talvez um dia eu te conte — Ian me olhou de soslaio, bebericando um pouco de seu café. — E você já teve algum comigo?
— E-eu?
— Sonhou — ele balançou a cabeça aos risos. — Foi bom?
— Mas olha que convencido, eu nem disse que tinha sonhado!
— Só estou tentando quebrar o gelo, Nat. Eu gosto de te ver sorrindo.
— Eu sonhei com aquela cena que... acho que foi uma visão, só não entendo o motivo disso.
— Que estranho — suas sobrancelhas se elevaram.
— Já teve algum sonho diferente comigo?
— Vários, mas o que mais me marcou foi o que eu que te dava um banho.
— Estou falando sério — eu ri, ficando corada.
— Eu também.
Não me dignei a perguntar como aquele sonho terminou.
— Você já esteve com uma garota?
— Que pergunta é essa agora?
— Sua mãe disse que temos que conversar — dei de ombros.
— Já estive sim, mais de uma vez.
— A mais recente?
— Ontem, mas foi consensual e os dois tinham consciência de que era apenas por uma noite.
— Sério? — engoli em seco sentindo um calafrio estranho percorrer meu corpo.
— Não — Ian soltou uma risada nasal. — Mas também não vou falar sobre isso contigo, não acho que seja algo relevante.
"Ele já foi tocado por mais de uma garota, por isso não se importa por eu ter sido também" , pensei.
— Tem mais alguma coisa sobre mim que queira saber?
— A Vívian me disse que conhece mais de uma cigana que daria tudo para ter uma chance contigo, você sabe quem são?
— Talvez, mas não acho que tenha que se preocupar com isso.
— Eu não estou preocupada, só quero saber quem são minhas rivais.
— Quase acreditei que estava com ciúmes — sua boca se curvou num sorriso. — Você não tem rivais, não da minha parte, e pelo que me consta não é comigo que deve se preocupar.
— Pois é — falei desviando o olhar.
Por um breve instante o silêncio se fez presente, Ian fazia seu desjejum tão pensativo quanto eu, e não saber o que se passava em sua cabeça me deixou intrigada. A lembrança do meu sonho era tão viva que ainda sentia aquela sensação que mexia não só com minha mente, mas com todo o meu ser. E quando sujou o canto da boca com cobertura de bolo, e limpou os lábios com a própria língua, fez a temperatura ao meu redor aumentar consideravelmente. Como pode um gesto tão simples causar tantos pensamentos impuros? Não, definitivamente havia algo errado comigo, aquilo não foi sonho, foi um gatilho acionado pelo inimigo para confundir a minha cabeça.
— Era trote? — A voz da mãe de Ian ecoou pela cozinha quando ela atendeu ao celular. — Porque fazem isso Ozório, eu não suporto mais essa tortura, são sete anos sem notícias da minha filha, porque ela não aparece? — Tentei me levantar ao ouvir aquele lamento choroso, mas Ian segurou meu braço, então se levantou e foi ao encontro da mãe a abraçando.
— Calma, mãe.
— Quem levou a minha filha? Eu preciso encontrar minha Pérola, sequer tenho uma lápide para visitar, onde está sua irmã, filho!
Não contive as lágrimas diante daquela cena. Ian com rosto molhado abraçado a mãe no meio da cozinha, Ivan logo se juntou a eles.
— Que tristeza, eu não mereço esse castigo!
Pérola e Soraia tinham a mesma idade, nasceram com diferença de um dia uma da outra, tanto que todo ano comemoravam juntas essa data. Ela tinha quinze anos quando sumiu na saída do colégio, estava cheia de planos, prestes a se casar, mas se envolveu com um gadjô e segundo testemunhas, inclusive uma delas era minha irmã, que conseguiu correr, foi forçada a entrar em um carro preto.
Esse foi mais um dos motivos de as regras de nossa comunidade serem reforçadas, o tempo passou, ninguém comentava mais sobre o assunto, mas uma mãe jamais esquece a falta de um filho. Soraia também ficou traumatizada, por muito tempo não andava sozinha, foi uma luta terminar a oitava série e nunca mais quis se aproximar de nenhuma moça para servir de amiga. Ela simplesmente se fechou para amizades.
— Eu vou colocar ela na cama — disse Ivan a acompanhando.
Eu ainda chorava em silêncio quando vi o filho levar a mãe pelo corredor, não sabia o que fazer, apenas segui meus instintos e abracei o Ian que estava em pé no meio da cozinha olhando para o nada.
— Desculpa, Nat — ele murmurou limpando o rosto.
— Não tem que se desculpar — respondi em seu abraço. — Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— Só me abraça um pouquinho.
Ele me apertou em seus braços, e com a cabeça enterrada em meu pescoço desabou em um choro abafado. Eu só fiquei ali, calada, inerte, em lágrimas assim como ele, era só o que tinha a oferecer naquele momento, o meu ombro amigo.
— Obrigado — disse ele quando se acalmou. — Eu estava falando com o Caio, ele investiga o desaparecimento dela, disse que surgiram novas pistas sobre uma quadrilha que pratica tráfico humano e tudo indica que ela tenha sido uma vítima.
— Valha-me!
— Se realmente foi, deve estar muito longe, ou até...
— Não Ian, não pense assim, ela pode estar por aí em algum lugar sem conseguir voltar.
— São sete anos, Nat, muito tempo, nos dias de hoje com tanta tecnologia não é possível que não encontrem um rastro sequer.
— Esse Caio, ele disse que tem novas pistas, pode ser que encontrem ela — falei na tentativa de aliviar a tensão.
— Eu acho que está morta, e fico com raiva desses trotes, toda vez surge uma esperança e depois é esse sofrimento.
— O ser humano é desprezível às vezes — lamentei.
— Foi por isso que adiei tanto a escolha de uma noiva, Nat. Eu queria que minha esposa fosse como uma filha para ela, sei que nenhuma garota vai substituir a Pérola, mas se ela ao menos tiver uma presença feminina que a trate com carinho, já é alguma coisa.
— Não coloque essa responsabilidade em meus ombros, Ian.
— Não é nada disso, Natacha, eu só quero uma companheira que abrace não só a mim como a minha família como pretendo fazer com a dela. Vejo noras se desentendendo com as sogras, famílias separadas, a minha já está tão quebrada para colocar uma pessoa aqui dentro que possa piorar essa situação.
— Você é um cara incrível, Ian, é nobre, fiel aos costumes, merece uma companheira digna de seu tamanho valor e eu não posso ser essa pessoa.
— Só decida o que quer da vida, Nat, não se preocupe comigo, eu sobrevivo.
— Eu não mereço um cara como você, Ian.
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