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8.

- Ele não é lindo?- Constança suspirava ao observar Pedro na oração da manhã, na capela do palácio.

- Sois a mesma que ontem chorava incomodada?- Admirei-me com a rápida mudança de ideias da minha senhora.

O que faz uma boa noite de sono...

- Shh!- Sibilou uma das damas da rainha e estremeci com o susto. 

O capelão prosseguia a missa como se não tivesse de partir muito em breve, e como se Constança não estivesse em pulgas para um tal encontro com o seu noivo. 

- Inês...

Constança murmurou e aproximei mais o meu ouvido de si. O que seria agora? Encarei Constança e notei que havia um sorriso maroto no seu rosto. Endireitou o véu bordado que lhe cobria o cabelo, e fez-me um subtil sinal com o olhar para trás de mim.

Hum?

Girei a cabeça distraidamente, como se apenas admirasse os belos vitrais de cores vivas, com motivos da Via Sacra, e dei com um par de cavalheiros a encarem-me. Desviei o olhar, atrapalhada, incomodada, envergonhada. As pessoas não têm mais o que fazer de manhã? Nunca viram castelhanos?

- Quereis que os mande embora?- Sussurrei a Constança e vi que trincou os lábios com força.

- Porque me perguntas a mim, se é a ti que observam?- Um subtil sorriso atrevido surgiu-lhe no rosto. Estava bonita, de bochechas rosadas.

- Oras...- Fiquei roxa de embaraço.- A casa de Deus não é para estas coisas...

- Sabes, acho que se hesitares muito em noivar, os homens daqui são capazes de formar uma fila.

- Constança!- Repreendi-a admirada e recebi um olhar terrível da rainha. E se olhares matassem...

Baixei o olhar e permaneci em silêncio até ao fim do sermão. Vez ou outra, distraída, calhei a observar o príncipe. Também teria as suas duvidas quanto a Constança? Ou para os homens a vida é tão fácil, que nem lhe faz diferença? Acha-a bonita? Inteligente? Prefere as suas curvas? Ou o sorriso? 

E se olhar de uma outra perspetiva, tombar a cabeça para o lado direito, levantar o cotovelo, saltar ao pé cochinho e contar até dez, no fundo o príncipe até é... bonito.

- Menina de Castro, não quero arruaceiros no meu palácio, muito menos na hora da missa.- D. Beatriz não tardou a repreender-me, guardada pelo seu séquito de aias.

- Tem toda a razão majestade, eu peço imensa desculpa pelo sucedido.- Reverenciei-me perante a rainha, quando me abordou a mim e Constança após o sermão, no corredor.

Eu estava envergonhada pelo puxão de orelhas, não sou uma menina! Repreendida por futilidades, pela própria rainha.

Apesar de séria, abriu um sorriso gentil para Constança:

- Creio que vós e o meu filho tenham compromissos.

- Sim, majestade.- A minha senhora ficou encarnada e olhou para o chão coberto pela tapeçaria.- Voltaremos a tempo de nos juntarmos a todos, não queremos atrasar o cortejo.

- O príncipe gosta de verde.- D. Beatriz declarou altiva, de sorriso no rosto, e partiu sem mais despedidas.

- Pedro já me viu com todos os vestidos verdes que tenho.- Constança entrou em desespero.

- Tu gostas de cor-de-rosa e nunca vi o infante trajado com tal cor.

- Não sejas rabugenta, Inês.- A minha amiga deu-me um revirar de olhos aborrecido e também eu bufei enfadada.

Tirei o lenço que me cobria os cabelos aborrecida e encarei o som que espreitava entre as nuvens, ali em baixo, no pátio tranquilo. Ainda havia algum tumulto e conversas ao nosso redor, no corredor.

- Menina Inês, permita-me apresentar...- Um cavalheiro assustou-me e voltei-me depressa. Estava assim tão distraída?

- Bom dia para si também.- Cerrei o sobrolho e reparei que era um daqueles cavalheiros que me encarava do outro lado da capela, ainda agora, durante a missa.

- Inês! Perdoai, a minha aia acabou de levar uma bronca de sua majestade.

Encarei Constança boquiaberta. Eu estava furiosa!!! Ela estava a falar de mim como se eu não estivesse aqui, como se eu fosse uma menina imbecil, e a contar os meus podres e embaraçosos a estranhos!

- Também não gosto muito das manhãs.- O cavalheiro tentou seduzir-me pelo humor e empatia, mas muito sinceramente, eu não estava interessada e não estava com humor.

- Tenho os baús para arrumar, com licença.- Dei meia volta e respirei fundo para conter toda a fúria em mim.

- Geralmente as damas deleitam-se com cavalheiros corteses dispostos a dar-lhes atenção.

Cruzei-me com aquele amigo esquisito do príncipe no corredor seguinte. 

- Deixai-me adivinhar, foi uma das vossas amigas que vos confessou isso?- Cruzei os braços e senti-me mais tranquila. Provocações e bom humor melhoravam sempre o dia de alguém.

O abusado estendeu-me uma carta com um sorriso humorado.

- Eu não quero ser vossa amiga.- Estreitei o olhar e cerrei os punhos com a ofensa.

- Não sois o meu género. Sois engraçadinha demais.- Virou costas de mau humor, mal segurei o papel.

O que seria? Porquê tanto secretismo? André estava à minha espera, isso é óbvio.

Guardei o envelope na manga do vestido e aguardei até chegar aos meus aposentos para o ler.

Doce donzela,

Encontra-me daqui a duas noites, em Lisboa, sob a torre sul do Paço da Alcáçova.

Teu;
P.

Meu? Eu tinha um admirador? "Doce donzela"? Só pode ser engano, eu não tenho sido agradável com ninguém.

Seria aquele rapaz moreno de olhos verdes que também estava na competição de arco e flecha? Ele era bonito...

- Inês?- Escutei Matilde atrás de mim e tentei recompor-me apesar de atrapalhada.

- Sim?- Sorri e rezei para que não fizesse perguntas.

- D. Constança quer vossa ajuda... está tudo bem?- Tombou levemente a cabeça e analisou-me.

- Mas claro, porque não estaria?- Entalei mais a carta na manga do vestido, bem para dentro.

- Estás vermelha. Ainda é pela situação com a rainha? Ignorai, sua majestade é muito mal-humorada, pelo que percebi.- Confessou baixinho e abraçou-me.- São todos muito calorosos, vamos ficar bem.

- Oh Matilde... Obrigada.- Retribui o seu aperto com força e ficamos assim por um momento, a preparar-nos para enfrentar o mundo lá fora.

Certo, Constança queria ajuda. Saímos as duas juntas dos meus aposentos e estremeci quando ouvi o sussurrar quase impercetível do bilhete contra a minha pele. Matilde não pareceu reparar, felizmente.

Os empregados já corriam cá e lá a embalar as tapeçarias e alguns candelabros. Há porta de alguns aposentos, já haviam baús à espera de serem carregados. O palácio estava o autentico corrupio.

- Inês! Finalmente! Pareço franzina neste vestido?- Constança perguntou enquanto Maria lhe apertava o vestido verde esmeralda com detalhes dourados no cinto e no decote. Um capuz branco cobria os cabelos e o decote da minha senhora.

- Não, ficas muito bem.- Suspirei e endireitei-lhe as mangas justas, para depois dobrar as mangas exteriores e largas, tão largas que quase arrojavam no chão.

- Achas mesmo?

- Acho.- Assegurei-lhe com um sorriso.- Agora é altura de ir, sua alteza não deve esperar.

Ajudei Constança a descer do pedestal e endireitei a manga direita do seu vestido. A minha senhora estava linda, uma verdadeira graça.

- Acompanhas-me?

Neguei em silêncio com um sorriso subtil:

- Tenho de ajudar Maria a arrumar as coisas. Tenho a certeza que Matilde adorará acompanhar-vos.

- Eu?!- Corou surpresa e anui. Constança também não se opôs e despediu-se com um rápido acenar.

- Bom, por onde começamos?- Suspirei ao ver os baús que desfizemos há poucos dias completamente vazios.

- Não me parece que a menina Matilde consiga lidar com o assunto sozinha.

- Matilde é responsável e gentil.- Respondi a Maria enquanto dobrava as camisas interiores de Constança, uma por uma.

Chegaram mais duas empregadas para nos ajudar, mas nem por isso o trabalho pareceu mais rápido.

💕👑💕

- Bons dias.- A minha noiva... esposa, aproximou-se com graça e leveza.

Onde está Inês?

Havia outra rapariga roliça atrás dela, muito coradinha e de bochechas rechonchudas. Tinha um ar simpático, mas não era ela que eu esperava.

- Bom dia.- Reprimi o grunhido aborrecido. Nem Inês, nem tranquilidade. Que inferno que seria!

- Meu senhor, permita-me apresentar Matilde, a minha acompanhante de hoje.

- Vossa alteza.- A rapariga vergou-se numa vénia respeitável e pareceu-me sinceramente uma pessoa gentil.

- Nem daremos por ela, garanto-vos.- Constança anunciou entusiasmada e isso pareceu constranger Matilde.

- A vossa outra aia... aquela da missa de hoje...

- Inês?

- Ah essa mesmo.- Apontei como se fosse um nome que não repetia para mim incontáveis vezes.- O que aconteceu com ela?

- Ham... a rainha não ficou muito satisfeita com... o comportamento dela hoje mais cedo.- A castelhana deu de ombros e evitou olhar para mim.

- Bom, vinde.- Apontei o cavalo ao lado do meu e o escudeiro apressou-se a colocar um pequeno banco para que Constança montasse.

Do outro lado do pátio reparei que André nos observava, de braços cruzados encostado a um pilar, e quando os nossos olhares de cruzaram abriu um sorriso matreiro e assentiu.

Como ele, anui, e o que para qualquer um seria um cumprimento educado, para mim era uma confirmação. A missiva estava entregue, os dados estavam lançados. Resta-me apenas esperar.

A aia de Constança também já estava em cima do cavalo... não por muito tempo, ao que parecia. A rapariga parecia muito atrapalhada.

- Quereis ajuda?

- Na... não meu senhor.- Corou a castelhana até ao pescoço.- Faz alguns anos que não monto, só isso.

Certo, se ela o diz, quem sou eu para discordar.

- Não nos afastaremos do palácio, a comitiva partirá em breve.- Informei Constança e desejei que já estivéssemos de regresso.

- Para mim só este momento já é especial.- Admitiu e notei que as suas bochechas ficaram rosadas.- Acho que passaremos menos tempo sozinhos daqui para a frente.

- Não necessariamente.

- Sois um príncipe dedicado, sois ocupado, e Lisboa é a capital. De certeza que haverá muito a fazer.

- Não me agrada ir para Lisboa.- Respondi preocupado e determinado ao mesmo tempo.- A Peste está a alastrar-se como fogo.

Vi que Constança engoliu em seco e olhei de soslaio para a rapariga atrás dela, que ainda se atrapalhava com o cavalo.

- Passaremos esta noite em Leiria.

- É bonito?

- É.- O meu pai ficaria insuportável. D. Afonso não gostava de ser exatamente confrontado com os feitos do pai, ainda que fosse um pinhal de meio crescimento.

Como é que alguém pode guardar tanto rancor de um pai?

- Aqui.- Parei o cavalo junto do rio e desmontei. Como um bom cavaleiro, ajudei a minha senhora a descer também.

- Ai!- Voltamo-nos os dois para Matilde que tinha ficado com o pé prezo no estribo.- Peço desculpa.- Soltou-se com uma certa falta de jeito.

Seria um longo piquenique...

Servi Constança com pão, queijo, compota e frutas que me tinham prendido na sela numa cesta de verga.

- O vosso cavalo é muito bonito.- Admirou o meu parceiro de pelo castanho escuro e sorri comigo mesmo. Eu tinha o maior orgulho pelo meu cavalo, nunca me deixou mal.

- É o Ezequiel. O meu pai deu-mo há uns anos.- Atirei o caroço da minha maçã ao guloso e abanou a crina satisfeito.

Fez-se um momento de silêncio em que só o vento de fez ouvir e senti o olhar de Constança sobre mim, enquanto cortava outra maçã.

- Dizei.- Convidei a castelhana a partilhar os seus pensamentos.

- Não sois de muitas palavras.- Abanicou os pés, distraída e comi os meus pedaços de maçã. 

Matilde tinha caminhado até mais adiante, à beira rio.

- As pessoas não gostam de me ouvir falar, não posso censurá-las.- Dei de ombros e voltei a atirar o caroço da maçã ao Ezequiel.

Escutei um suspiro pesado. Carregava tanta desilusão que já não me era novidade.

- Eu já estive noivo uma vez.

- Ouvi dizer.- Oras, agora quem era de poucas palavras era ela.- Lamento muito.

- Gostavas de alguém, lá na tua terra?- Perguntei com descontração e um sorriso leve surgiu no rosto da minha futura esposa, que negou com um abanar de cabeça. Quer dizer, éramos casados, mas por procuração.- E vós?

- Não é uma pergunta que se faça a um cavalheiro.

- Tonto.- Revirou-me o olhar e ri comigo mesmo.

E a conversa morreu ali. Iria ser uma eternidade interessante, claramente preenchida a gargalhadas e piadas, e temas super interessantes. 

- Ouvi dizer que vão fazer torneios em Lisboa, em nossa honra. Ireis participar?

- Sim, ganhei das ultimas vezes, este ano não será exceção, principalmente quando é em honra da minha mulher. Não quero deixar-vos mal.

Constança sentou-se de rompante e ficou a encarar-me com uma certa doçura.

- Sinto-me honrada por vós e pelo nosso casamento, não há como me deixar mal.

- Sois gentil, Constança.- Beijei a testa da minha esposa com carinho e respeito. Depois, com cuidado, voltei a esconder os seus caracóis castanhos no capuz alvo que trazia bem justo e notei como corou.

- Meu senhor, minha senhora, está na hora de ir, o cortejo sairá em breve.- Matilde confidenciou-nos e assentimos em silêncio.

💕👑💕

- As minhas costas!- Maria sentou-se em cima da cama depois de acartarmos o ultimo baú para o pátio. Estavam todos tão ocupados, que não conseguimos fisgar um empregado para o fazer por nós.

- Lamento.- Recuperei o fôlego a seu lado.- Céus, eles já deviam ter chegado.- Notei a demora de Constança e do príncipe.

O quarto estava tão estranho e vazio... como tínhamos deixado para trás aquele em Castela, que nunca mais veríamos. Estaríamos fadadas a isto? Andar sempre com a casa às costas, sempre com receio de criar raízes para não mais voltar?

- Eu vou... vou ver dos meus aposentos.- Despedi-me da velha ama e prometi encontrá-la, daqui a pouco no pátio.

No meu quarto só restava a cama e o colchão despido. Estava estranhamente frio e abandonado. Foram apenas duas noites, não tive tempo para grandes sentimentalismos aqui, mas foi o meu primeiro cantinho em Portugal.

Engraçado, toda a minha vida fui próxima de Portugal, mas nunca cá tinha vindo. Este país deu-me e tirou-me tanto...

Deixei o aposentos para trás e vesti a capa de agasalho azul escura que tinha deixado de lado. Seria um longo caminho até Lisboa.

Os cavalheiros alinhavam-se em conversas dispersas, já de cavalo ao lado. A maioria dos mais jovens, ao que parece, iriam a cavalo, era menos aborrecido sim, mas seria confortável para uma viagem tão longa?

- Ei!- Senti um encontrão e desequilibrei-me. Sem ter a que me agarrar, caí de joelhos no chão lamacento do pátio do palácio. 

Ali. Frente a toda a corte, estava eu prostrada de joelhos, toda suja. Que humilhação!

- Eu... eu peço... peço imensas...

- Eu não aceito as vossas desculpas.- Pus-me de pé, com o que restava da minha dignidade e enfrentei o príncipe, enquanto sacudia o que podia dos joelhos e das mãos, com um lencinho que bordei.

- Vamos embora!- Alguém anunciou e começaram a recolher todos às suas carruagens.

Eu nem tempo para me limpar tenho!

- Por favor.- Insistiu e tirou a sua capa de agasalho verde escura. Parecia bem quentinha, na verdade.- Eu vinha distraído, não tinha intenção de a...

- Arremessar ao chão.- Terminei por ele, quando o vi tão atrapalhado. Não sabia se corria para o palácio e me escondia no armário das vassouras ou se encarava a corte, neste estado ridículo.

- Lamento- Estendeu a capa na minha direção e quando vi que queria colocá-la nas minhas mãos sujas recuei.

- Não!- Seria uma vergonha maior ainda sujar a capa do príncipe.

- Por favor. Tenho de vos compensar de alguma maneira.- Voltou a estender a capa e percebi que nem a minha capa se escapou da lama.

Que desastrada!

- Pronto, está aqui água.- André apareceu ao lado de Pedro e estendeu-me o cantil, o qual usei para lavar as mãos do excesso de terra. 

- Obrigada.- Sacudi para tirar o excesso e voltei-lhes costas, ofendida e zangada, para entrar na simples carruagem de Constança.

- Espera.

- O que foi agora?!- Sibilei furiosa. Eu só queria sair dali.

- Para a vossa senhora.- O príncipe entregou-me um montinho de livros que André lhe estendia.

São muitos livros para uma Constança que não liga assim tanto à leitura.

- Podeis ler também.- Informou.- Se for do vosso agrado, posso ir escolher mais uns para vós.

Sorri comigo mesma e devo até ter corado um pouco, vindo de qualquer outro cavalheiro teria considerado que se tratava de um convite mais intimo. É algum pedido de casamento?

- Inês?

Abanei a cabeça para dispersar aquela nuvem idiota de pensamentos.

- É menina de Castro para vós, alteza.- Segurei nos livros e pude ir embora dali finalmente... com o vestido arruinado.

- Inês, o que é que...

- Nem perguntes.- Bufei e fechei a portinhola com força, tanta força, que até Matilde estremeceu.- Do vosso noivo.- Estendi-lhe os livros e Constança sorriu com entusiamo.

Desfolhou um por um, os quatro livros com capas de couro rijas, e depois deixou-os de lado, enfadada, ou até desiludida.

- O que foi?- Estranhei.

Ainda estávamos em Coimbra, mas o paço ficou para trás há muito.

- Não há um único bilhete, ou uma carta, ou... sei lá!

Atirou o livro furiosa para onde os outros estavam, já analisados página a página.

- Oh meu Deus, tens um marido que te dá livros, e nem se atreveu a deixar um bilhete?! Que horror, que nojo, que Inferno!

- Nem te atrevas a falar-me assim, Inês de Castro!- Constança estava mesmo aborrecida, mas pelo menos a minha ironia tinha feito Matilde rir. Até a Maria, sempre séria, abriu um subtil sorriso entre os fios do bordado.

- Com licença.- Peguei num livro aleatório.- Isto vai demorar algum tempo, mesmo.

💕👑💕

Só quando me fecharam a portinhola da carruagem é que me apercebi de como estava rígido, e tudo se esvaiu com um profundo suspiro.

O caos, só a mim.

Aquele silêncio tenso, foi no entanto desfeito por uma gargalhada alta do André, que seguia ao lado, a cavalo.

- Sai daqui idiota!- Resmunguei e foi-se embora, contudo aquela gargalhada desnecessária ficou a ecoar como um grito numa gruta.

A humilhação.

- Como foi com D. Constança?- A rainha indagou e reparei que alcançou a mão do rei que pendia no colo.

Havia ali um respeito mutuo que eu invejava, e que eu sabia que não teria com Constança.

- Foi bom.

- É atinada?- D. Beatriz procurou saber mais; como de costume insatisfeita com as palavras.

- Defina atinada.- Sorri, mas os olhares de suas majestades eram temíveis. Certo, o assunto era sério.- D. Constança é extremamente educada, e deseja com fervor ser mãe e...

Passou-me pela cabeça uma Constança endoidecida a correr atrás de mim, nu, enquanto grita "Bebés! Bebés!". Iue, até senti um arrepio!

- Isso é bom, eu quero muitos netos.

- Muitos herdeiros podem ser um problema um dia...- Tentei desviar-me dos planos da minha mãe.

- É obstinada?- O meu pai pronunciou-se pela primeira vez, sem me prestar muita atenção, na verdade.

- Não me pareceu.- Encostei-me e senti a cabeça tombar com o caminho irregular.- Sente saudades de casa.

- Tenho a certeza que amenizará com o teu apoio.

- Acho que vocês as duas deviam encontrar-se mais vezes.- Falei honestamente para a rainha. Eram espelhos: para Constança, a minha mãe era o retrato do futuro, e para D. Beatriz, Constança é a juventude, é a rapariga estrangeira que chegou a um país e criou uma vida do nada.

- Depois do casamento teremos muito tempo para... Ham, quem sabe tenhamos um tempinho antes da cerimónia.- Para quem começou a conversa, a minha mãe tinha ficado bem desconfortável.

- O que é que acontece antes da cerimónia?

Haveria alguma surpresa desagradável?

- Nada.

Começou a conversa, termina!

- Não me olhes assim, meu menino.

- Ao contrário de vós, meu filho, a vossa esposa não está a par do que acontece na noite de núpcias.- O rei informou com tanta diversão e informalidade que a rainha lhe deu um pequeno encontrão e um olhar reprovador.

- Quem assistirá?- Esfreguei os olhos, embaraçado e aborrecido com o protocolo, de cotovelos apoiados nos joelhos.

- Eu, o bispo e o meu conselheiro de maior confiança.

- É um costume que podemos passar à frente.- Tentei abrir uma discussão que sabia que iria perder.

- Não.

O tom do rei não era questionável, e esta carruagem era apertada demais para uma discussão mal acabada. O clima ficaria insuportável e ainda temos longas horas para fazer em família. 

Não sei quanto tempo se passou, mas dormi uma sesta, consegui elaborar uma longa lista de tarefas a cumprir mal chegasse a Lisboa e dormi um pouco mais.

- Porque paramos?- D. Afonso perguntou e acordei atarantado.

Aproximei a mão casualmente da bota, onde tinha uma faca pequena. Pus a cabeça do lado de fora do transporte e vi que o André vinha aí a galope.

- O que é que aconteceu?- O rei exigiu saber naquele tom autoritário habitual. 

- Uma das rodas dos Monforte partiram. Vai demorar a substituir, majestade.

- Raios!- Esmurrou o teto e um empregado veio abrir a portinhola. 

O rei foi verificar a situação por si mesmo e fiquei a encarar a minha mãe sem saber o que fazer.

- Vamos sair, esticar as pernas.- Assumi o controlo quando reparei que tanto a rainha quanto André me encaravam.

Desci da carruagem num salto e estendi o cotovelo à minha mãe para a ajudar.

- Deem de comer e beber aos cavalos.- Instrui os cocheiros e os criados, que começaram a desamarrar os animais. Chegaríamos tarde a Leiria, isso não era nada bom.- E façam umas fogueiras que está frio, caramba.

💕👑💕

- Porque paramos?- Constança empertigou-se imediatamente.

- Devem ter tido problemas com uma das carruagens.- Respondi-lhe sem prestar grande atenção. O livro estava na melhor parte: a personagem principal estava prestes a descobrir que se andava a corresponder com o padre!

Eu não sabia que podiam existir livros tão... remotamente divertidos e caricatos numa biblioteca real. Chegava a ser engraçado, se as personagens não estivessem tão apaixonadas.

- Senhoras, podem sair para esticar as pernas, vamos ficar por aqui algum tempo.- André, o amigo tosco do príncipe, veio informar-nos no momento exato.

Constança não precisava nem de um decreto real - já tinha pulado os degraus da carruagem para ir ver o que aconteceu, ou para ir ver do esposo. Segurava a bainha do vestido com um cuidado extremoso, para não o sujar de lama.

- Queres ajuda a trocar-te?- Matilde aproveitou para me perguntar quando nos vimos sozinhas e sorri-lhe envergonhada.

- Por favor.

Após alguns momentos, e com toda a discrição, a minha amiga ajudou-me a trocar o vestido lamacento por um outro limpo e macio.

Quando pude, também eu saí do transporte. Havia cavalos por todo o lado, a comer ou a beber água, cavalheiros em grupo a conversar e a praticar a arte da espada e algumas damas juntavam-se em conversas animadas, segundo os seus risos.

Decidi sentar-me junto de uma fogueira improvisada a ler o livro do padre. Prometia!

Vez ou outra escutava gargalhadas, delas ou deles, e relinchares de cavalos. Por vezes o ladrar dos cães e os passos empoçados das botas dos cavalheiros. Também os observava, via em quem apostavam a sorte, e via-as a elas, em quem queriam que lhes falasse.

A rapariga da outra noite não estava nos grupos das mulheres, vi-a junto dos cavalos e dos homens com um cântaro e copos de ferro. A maioria dos homens não a inspecionava com a habitual malicia e arrogância, mas com simpatia e agradecimento.

Será que aquela portuguesa era mesmo próxima da rainha?

Desviei os olhos de novo para as linhas quando vi que me apanhou em flagrante delito na minha verificação de carácter.

 - Vamos chegar tarde a Leiria.

- Parece que sim. - Mudei de página sem me dar ao trabalho de encarar o príncipe, quando se sentou a meu lado, no tronco, junto da fogueira onde fervia um pote de água.

- Já me desculpei quanto ao vestido.- Aborreceu-se, como se isso fosse da minha conta.

- E eu não perdoei. Simples.

- Constança gostou dos livros?- Olhou por cima do meu ombro e fechei a obra abruptamente.

- Sim.

- A sério? Qual foi o que mais gostou?- Indagou o príncipe.

- Trouxestes algum sobre bordados?- Encarei-o com divertimento.

- Acho... que não.

- Então não gostou de nenhum.- Respondi a sua alteza com o meu melhor sorriso sarcástico. Constança não gostava muito de ler, gostava mais de ficar junto da lareira a desenhar.

Ela era muito boa nos desenhos, e nos bordados claro.

Reparei que o cavaleiro de olhos verdes, moreno e de cabelo castanho caramelo passou frente à fogueira, e ousou lançar-me um sorriso, bem como um baixar de cabeça perante o seu príncipe. Céus, como era bonito! Seria ele o "P" do bilhete? Tinha de ser ele! Aquela cara de anjo caído não engana ninguém.

- Imagino que nunca estivestes no Paço da Alcáçova.

Perspicaz este príncipe.

-  Há uma primeira vez para tudo.- Desafiei-o e havia um sorriso humorado no seu rosto, ao invés de uma resposta aborrecida.

Quão longa era a paciência deste tolo?! Foi mesmo feito à medida para Constança!

- A vista mais bonita sobre a cidade, fica na torre Sul.- Recostou-se e esticou as pernas.

- Como se eu...- parei o revirar de olhos quando percebi o que me estava a dizer. Não é possível.- ...quisesse saber.- Balbuciei.

Pedro ergueu uma sobrancelha petulante e fiquei sem saber o que fazer: se lhe atirava o livro, ou se o expunha, ou se me ia embora perante o porco que era.

- Vou ver se encontro livros do interesse de Constança. Com a vossa licença, dama de Castro.

E eu segui-o com os meus próprios olhos, embasbacada, com a sua ousadia e arrogância. Quem é que Pedro pensava que era?!



💕👑💕

Desculpem, desculpem, desculpemmm a demora!

É que comecei a trabalhar e ainda estudo, então está tudo uma embrulhada, mas espero ter-vos compensado!

Até já!

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