7.
- Inês, meu bom Deus! - Constança irrompeu pelos meus aposentos como um furacão.
A Matilde estava comigo, estávamos a conversar. A aia da rainha, Brísida, foi muito gentil em encaminhar-me até Matilde. Foi um susto tão grande, que eu ainda não estava bem.
Matilde mandou servirem-me um copo de vinho quente com mel, como eu tanto gostava, e junto da lareira, recuperei a compostura depressa.
- Soube o que aconteceu, tu estás bem? Ainda bem que Pedro lá estava, Nosso Senhor Jesus Cristo.- Benzeu-se algumas vezes seguidas e não soube o que responder-lhe.
Estava a sentir-me assoberbada pela rapidez das palavras da minha senhora. Eu estava bem, queria dizer-lhe, porém toda a sua aflição, deixou-me aflita de novo. Não era nada tão grave para tanto pranto. Eu estava bem, sem um único arranhão.
- Quero os responsáveis punidos!
- Constança!- Elevei o tom, consternada. Só queria sossego, ficar sozinha.
- Eu vou andando.- Matilde deu-me duas chapadinhas calorosas e amigáveis nas costas da mão e sorri-lhe antes de sair.
- Desculpa.- Admiti por ter gritado com ela e enrolei-me mais na manta de lã.- Por favor, eu estou bem. Só quero silêncio, Constança.
- Tudo bem. Não te quero incomodar. Só queria ter a certeza de que estavas bem.- Pressionou os lábios numa linha fina e entristeci-me por lhe causar tamanha preocupação.
- Estou. Obrigada.
E Constança entendeu, contrariada, no entanto. Mais logo falaria com ela, quando a fosse ajudar a deitar. Estaria de certeza nervosa por amanhã e eu já estaria melhor. Não me sinto prestes a desmaiar de susto e tudo mais... mas estou estranha. Tenho uma sensação estranha.
💛💚💙💜
- Foi um dia grande.- Constança comentou, enquanto lhe escovava os cabelos castanhos ondulados com cuidado, frente ao pequeno espelho que empunhava e usava para me encarar numa inquietação silenciosa.
- Sim.- Concordei.- Grande demais.- Murmurei e dei de ombros, concentrada nas suas madeixas castanhas.
- Pedro é boa pessoa, sinto até um remorso por tê-lo achado retardado.- Segredou-me, numa confissão que não teria nem com o capelão.
Parei de escovar o seu cabelo por meros instantes e então prossegui. Pedro era inteligente e ágil, gaguejava e parecia desautorizado pelo rei, mas isso não fazia de si parvo.
- Quer exagero, Constança.- Pousei a escova.- A gaguez, talvez não o faça o mais atraente dos homens, até porque não pode declarar-te poemas ou cantigas de amor...
A minha amiga corou e baixou o olhar, ao mesmo tempo que pousou o espelho:
- O problema dele incomoda-me.- Assumiu pela primeira vez e escondeu o rosto entre as mãos.
- Constança.- Lamentei a sua desilusão e acarinhei-lhe o ombro.
Ela tinha todo o direito em incomodar-se, em revoltar-se com a sina que lhe calhou. É terrível partir rumo ao desconhecido para aterrar nos braços de um estranho que viverá connosco pelo resto da nossa vida. Ainda para mais, quando não foram francos com Constança; eu não fazia ideia de que não lhe tinham falado sobre a gaguez do infante.
- Ele é gentil e corajoso e tem sentido de humor e é tão vivo, mas...- Chorou com a culpa que lhe pesava no peito.- Ele não é o que eu esperava.- Voltou-se para mim, envergonhada, à procura de uma repreensão, de um castigo que a obrigasse a amá-lo.
- O príncipe não é o que tu esperavas.- Sorri para a minha senhora com compreensão e evoquei em voz alta, o que atormentava os seus pensamentos.
Com um acenar de cabeça, concordou com as minhas palavras.
- Ele está a fazer um esforço por mim, eu devia...- Os seus olhos inchados metiam dó e o impasse porque passava fazia-me dar graças por não ter nascido princesa.
Quer dizer... eu podia ter vivido verdadeiramente como uma, no entanto o futuro sogro de Constança decidiu expulsar o meu pai adotivo deste lado da fronteira.
- Tu estás longe de tudo o que conheces e pronta a casar com um estranho.- Segurei o seu rosto com doçura, enquanto lhe limpava as lágrimas, e me baixei à sua altura.- Tudo o que estiveres a sentir é legitimo, e perceberes que tens um homem bom a teu lado é meio caminho andado. Dá-te tempo, e deixa-o mostrar-se um pouco mais também.
- Eu só espero apaixonar-me depressa. Pedro é cortês.
- É... - Concordei e tombei ligeiramente a cabeça, mas nos olhos de Constança vi apenas os do principe.- Humpft! Vá, vai dormir, amanhã é um dia longo.
- Inês, já alguma vez estiveste apaixonada?- Indagou Constança quando lhe abri os lençóis.
Estanquei ao ouvi-la e neguei para mim mesma.
- Mulheres como nós não se podem dar a esse luxo. Só piora situações, por si só já complicadas.
Mulheres como nós ou têm casamentos arranjados com velhos tolos, ou homens tiranos, como tal, mulheres como nós tinham de ser audazes: enganar os parvos e manipular os soberbos.
E sentir qualquer tipo de atração por Pedro, ainda que pequena... é pecado. Ele será o marido de Constança.
- Tu mereces alguém bom, Inês. Alguém que saiba cuidar de ti e de todo o amor e gentileza, que estás disposta a oferecer ao homem a quem entregares o teu coração.
- Homens não querem essas coisas Constança.- Suspirei com ironia e divertimento. Quer dizer... eles querem, mas não sabem dar de volta.
- Um dia... um dia Inês, eu vou rir-me enquanto um fidalgo de boa família te põe uma aliança no dedo.
- Quem ri por último, ri melhor.- Aceitei o seu desafio. Constança jamais me veria casar, pelo menos apaixonada, quero dizer.
Deixei o sorriso jocoso de lado com um abanar de cabeça, e abri a cama da minha senhora. Notei que havia uma botija de ferro perto da lareira e enchi-a com algumas brasas para aquecer a cama fria.
Dentro de algumas noites, Constança deixaria de precisar de botijas quentes para os pés.
- Vamos, amanhã será um dia longo. - Andireitei os lençóis bordados com esmero.
- Sim.- Levantou-se do seu torpor momentanio e entrou na cama confortável.- Boa noite, Inês.
Aconcheguei Constança para ter a certeza de que não sentia frio e apaguei as velas. Mal fechei a porta do seu quarto, suspirei e notei o ranger das armas, dos seus guardas atentos.
- Boa noite, cavalheiros.- Sorri-lhes com cortesia e segui para o meu quarto, com duas velas a iluminarem-me o caminho pelos corredores de pedra ensombrada pelos cadelabros que havia pelos corredores.
A grande maioria das damas já havia recolhido, e os fidalgos terminavam por esta hora os copos de vinho e as conversas, que retomariam na manhã seguinte. Ainda assim, passei pelo salão de festas, em busca de rostos conhecidos.
Notei que Maria olhava por Matilde enquanto a via conversar entusiasmada com uma rapariga portuguesa. Era bom de ver que já nos estávamos a adaptar a este lugar estranho, que já tinhamos amigos do nosso lado. Maria parecia impaciente, no entanto.
Há mais damas de companhia no séquito de D. Constança, porém a minha senhora requeriu-lhes espaço. Em momentos oficiais, juntam-se a nós, contudo andam geralmente com as damas da rainha ou a tentar ambientar à cultura daqui. Nenhuma pelo salão, ao que parece.
Acenei e sorri a Maria antes de deixar o salão pra trás. Precisava de descançar, apanhei um susto imenso, hoje. Sinto que já passou, mas deixou uma impressão estranha no peito, sem nem sequer a seta me ter acertado.
A um lance de escadas de distância e dois corredores dos meus aposentos, notei a silhueta de um homem e de uma dama nas sombras. Dei o meu melhor para não os encarar, seria um vexame para eles e para mim. Era o total escandalo aquela mulher estar ali sozinha a fazer sabe-se lá o quê, na companhia de um homem, e não seria eu a denunciá-los.
Até ouvir os gaguejos sussurrados dele...
- É preciso um tremendo desrespeito pela mulher que vai passar a vida a vosso lado!- Atirei, ofendida com o comportamento do principe.
- Inês... boas noites. Vejo que já rescuperastes do pequeno incidente de hoje mais cedo.- O seu tom era leve e jocoso, como se não o tivesse apanhado em flagrante.
Encarei a mulher que se escondeu atrás dele, depois de um guincho. Portuguesa sem dúvida alguma. D. Pedro fez questão de cobrir mais o corpo da mulher e reparei que estava roxa de vergonha.
- Sai daqui.- Declarei impassivél, num tom baixo, que prometia o suficiente caso a lusitana não obedecesse.
A mulher afirmou em silêncio, frenética e assustada, porém encarou o amante uma ultima vez antes de ir embora em passo rápido e atrapalhado.
- Ser a dama de companhia favorita de Constança, não vos dá...
Revirei os olhos perante a sua gaguez irriante e pouca vergonha.
- Ser casado com D. Constança dá-vos o direito a uma vida digna e de respeito. A minha senhora deixou dezenas de partidos em terras de Leão, Aragão e Castela, para vir casar convosco e atreveis-vos a desrespeitá-la assim?!
Enquanto Constança dormia, o noivo dela andava enrolado com outras pelos cantos. Que bonito!
- O que fazeis a pé ainda a esta hora?
- Ainda não sois meu principe, para que vos deva satisfações.
Caramba, eles tinham combinado de se encontrar os dois dentro de poucas horas...
- Uma questão de tempo.- Cruzou os braços, num claro desafio.- Ireis contar a Constança?
- Não serei eu a causar discórdia no casamento da minha senhora.- Endireitei as costas.
- Para que conste estavamos só a conversar...
- Ah, é isso que lhe chamam hoje em dia? Interessante...
- Eu não sou mentiroso, Inês. Aquela dama queria saber mais sobre André e sabe que nos damos bem, portanto...
- Eu não pedi explicações.- Comecei a aborrecer-me, eu queria muito ir descansar e este pacóvio não estava a entender o ponto.
Pedro finalmente silenciou-se.
- Pensei que tinhamos feito alguns progressos esta tarde...
- Evitar que eu morra trespassada é senso comum.- Neguei sem saber a que progressos se referia.
- Na verdade...
- Eu não quero saber.- Fui honesta e ergui mais a luz para o caminho.- Ah e por amor de Deus, aquela maldita portuguesa não era assim tão tentadora para comprometer os vossos votos. Tende tino.
Para além de traidor era um péssimo mentioso... Deus guarde Constança desta terra de disparates.
💛💚💙💜
- O que queres? Vai dormir.- Resmunguei com o André enquanto descalçava as botas.- Castelhana estupida.
- Vim apenas fazer o levantamento do dia.- Sorriu animado cheio de entusiasmo. Eu era ama deste desgraçado, é mais fácil cuidar de um criança irrequieta!- Mas agora fiquei curioso. A qual delas vos referis?
- Esquece começa.- Incitei, despindo-me ali mesmo e vestindo a minha roupa de dormir. Não valia a pena chatear-me.
- Primeiramente o banquete.- Começou.- Estava uma delicia de outro mundo, mas continuamos sem a minha sobremesa favorita.
- Estamos em plena primavera. Frutos secos só aparecem no Outono.- Respondi-lhe o óbvio.
Aquela Filipa tinha-me feito a noite. Se queria saber do André, perguntava-lhe em pessoa. Tonta. Agora é que Inês não me quer ver, nem pintado de ouro.
- Ainda assim é imperdoável, a seguir o teu desempenho nas actividades de hoje... não foi mau, mas podia ter sido melhor Pedro, muito melhor.
- Ficaste muito aquém de mim!- Respondi ofendido, quando o valete me vestiu a camisa de dormir.
- Não estou aqui para apontar o dedo, meu bom amigo.- Desviou o assunto e continuou.- Falemos sobre o feitio do vosso pai...
- Vai logo ao ponto.- Sorri ao entender onde queria chegar.
- Castelhanas do caneco! Não via mulheres assim há anos! Aquilo sim são prazeres para a vista!
E a Filipa veio falar comigo ainda? Será que estava assim tão cega, que não entendia que o André era do mundo? Conheço-a desde menino, crescemos juntos. É filha de uma das damas de companhia da minha mãe, mas é timida, não gosta de falar muito... e gosta muito do tarado do André.
Sinto até pena. Ela merece um cavalheiro de verdade, daqueles que montam corséis brancos e estendem a melhor e mais cara capa sobre poças de lama... e o André não é desse tipo.
- Quer dizer... a castelhana quase morreu...- Comentou com a maior naturalidade do mundo, como se estivessemos a falar do tempo.
- Obrigada por recordares.- Dei-lhe uma pancada na cabeça e encolheu-se depois de resmungar.- Inês é terrivelmente bonita.
Como é que podia ser tão insuportável e deslumbrante ao mesmo tempo?!
- As loiras são sempre as piores, porque achas que são poucas por cá? Poupam-nos dores de cabeça.
- Inês... Inês é a visão de um anjo, uma alucinação do paraíso.- Suspirei ao atirar-me para cima da cama.
- Podes ter todas as amantes que desejares, mas se eu fosse a ti, nem cheguaria perto de Inês. Sabes como são as mulheres! E depois é aia da tua noiva, não julgas que irá desconfiar? Escolhe outra.
- Eu não quero outra.- Deixei claro. Nunca uns olhos azuis e uns cabelos loiros me enfeitiçaram assim. Nunca uma mulher me pareceu tão espectacular.
- Essa mulher vai dar-teproblemas, essa mulher cheira a problemas...- Levou as mãos à testa.
- Se os problemas chegarem, lidarei com eles.- Sentei-me na cama. O valete tinha hido embora há tempo.
- Precisas de tempo com ela...- Pensou alto. André era um dos melhores a encontrar boas estratégias para os namoricos.
- Sim. Preciso de todo o tempo que puder.- Acrescentei.- Principalmente depois de há bocado...- Suspirei e cocei o pescoço, frustrado e em busca de uma desculpa para nos voltarmos a cruzar.
- Olhos...- Pareceu lembrar-se de algo.- As pessoas vêem porque há luz, mas na bruma da noite ninguém consegue ver!
- Isso, isso... continua!- Pulei da cama para próximo dele.
- Eu já disse que à noite era o melhor. Agora é contigo.
Amanhã passaremos a noite em Leiria antes de continuar rumo a Lisboa. Era arriscado combinar algo. Por outro lado, tenho mais tempo para organizar o que fazer.
- Na nossa primeira noite em Lisboa, quando a lua já for alta... nós os dois escaparemos do palácio.
- Fugir? Para onde? O teu pai vai chacinar-te! Tens um reino para cuidar!
- Não é definitivo, idiota! É por umas horas! Voltaremos ainda antes da madrugada.
- As mulheres gostam dessas coisas.- Confirmou.- Deliram com esses pensamentos!
Amanha escreveria uma carta ou um bilhete, logo depois de terminar o passeio com Constança.
- O que foi? Porque é que me estás a olhar assim?- O meu amigo André perguntou enquanto se debruçava na minha cama e alcançava a garrafa de vinho sob o colchão de penas.
- Não vai sendo tempo de assentares, como eu?
- Como tu? Sabendo como és, não é um casamento que te põe quieto.- Gargalhou e apalpou o colchão atrapalhado.
Parvo.
- O que achas da Filipa?- Suspirei com pouca vontade de ter esta conversa a esta hora tão alta da noite.
- Que Filipa? Abriu a rolha da garrafa com os dentes e bebeu como se estivesse há seca por dias.
- A Filipa, aquela, a filha da aia da rainha.
- A Filipa Muda?- Fez uma careta desgostosa e acho que não foi pelo vinho.- Nem pensar, Deus me livre de tal destino.
- Ela não é muda... e é muito gentil.
- A Filipa tem olhos de peixe e venera a mãe como uma santa. Se me meto com ela, que só de pensar nisso sinto um enjoo, obrigam-me a passar o resto da vida com aquela mosquinha morta.
- Certo, vou tentar dissuadir a minha mãe dessa ideia.
- A rainha odeia-me, e detesta a nossa amizade, jamais me poria com a filhinha da aia mais querida.- Um sorriso presunçoso e irritante surgiu na boca do André e quis bater-lhe.
- Não lhe digas nada, por favor. Prometi que ficava só entre nós.- Mordi o lábio, quando me referi à rapariga. É verdade, Filipa não era a dama mais bonita da corte, e pior ficou agora com a chegada das castelhanas... mas tinha os seus atributos. As mulheres mais virtuosas da corte tinham-lhe grande estima.
- Como é que havia de lhe dizer algo? Nunca passamos da confiança do "bom dia", nem sei como é que deu para se apaixonar.
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