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6.

- Senhora.- Sua majestade, a rainha Beatriz, pegou na minha mão com toda a delicadeza e mostrou-me o meu lugar, quando nos encontramos no salão.- Sentis-vos confortável?

A minha cadeira era bastante cómoda, e isso só aumentou com as peles quentes de animais que tinha a cobri-la.

- Estou muito bem, majestade, obrigada pela hospitalidade.- Agradeci e a rainha tomou o lugar a meu lado. Ainda haviam grinaldas de flores, mais verdes do que coloridas pelo Inverno, a decorar o salão.

Inês estava sentada numa outra cadeira, um pouco mais pequena do que a minha, à minha frente, de costas para mim e junto das damas de companhia da rainha. Estava ali toda a corte reunida, menos o meu noivo e o seu amigo.

- Porque estamos aqui?- Ousei perguntar à minha sogra. O rei não estava presente, apesar de estarem ali todos.

D. Beatriz sorriu e com um ligeiro acenar, apareceu um trovador a entoar belas cantigas, contudo nem sinal do príncipe. Entristeci-me um pouco. As festividades são faziam sentido sem ele presente. Nem o meu sogro se tinha dado ao trabalho de aqui estar.

- Apanhei mais do que tu!- Endireitei-me imediatamente quando ouvi gargalhadas altas ao meio da música. Eram Pedro e o amigo que tinham acabado de chegar.

- A minha lebre é muito maior que a tua!- Gabou-se Pedro a André, dando-lhe até um encontrão.

- Quantidade, meu amigo, eu tenho muito mais quanti...

O rei, que tinha chegado com eles, interrompeu a conversa dos dois com uma tosse grossa.

- Reparo que ainda não acabamos os festejos...- Pedro sorriu de forma traquina, ao notar a corte inteira a observá-los, maioritariamente as damas, visto que os cavalheiros saíram para caçar com o rei e o infante. Até a música se silenciara.

Sorri ao admirar os traços do meu príncipe, ele era bonito. Muito bonito.

- Desculpem o atraso, apanhamos chuva pelo caminho e os campos estavam terríveis para a caça.- O rei entregou as luvas de couro sujas de lama, e a capa a um valete, e ainda molhado da chuva, sentou-se ao lado da esposa com um sorriso.

Notei que D. Beatriz lhe lançou um olhar de repreensão muito sério, o que me fez sorrir comigo mesma.

- Talvez, majestade, deva de se ir trocar. Não nos é útil doente.- A rainha sugeriu.

- Não é uma chuva que quebra esta saúde de ferro, esposa.- Declarou  rei, e mordi a língua para não sorrir. Eles estavam claramente a tentar ser discretos e silenciosos, apesar de a conversa ser ao meu lado e escutar tudo, não parecia educado escutar.

- Cheiras a cavalo molhado!- Consegui ouvir baixinho o sermão da rainha e só não ri porque Inês me beliscou o pé com muita força.

D. Afonso gargalhou alto com o comentário, ao que parece, comedido da esposa, e retirou-se para se trocar.

- Homens!- Resmungou zangada.

O espetáculo continuou e só mais tarde é que os homens se juntaram a nós.

- Que frio!- Inês arrepiou-se quando bebeu uma taça de vinho quente.

O espetáculo havia terminado há pouco, e a maioria da corte já dispersara, excetuando aqueles que queriam dirigir-se ao rei.

- Cantam bem.- Comentei com Inês, sem saber o que mais dizer-lhe.

- São trovadores, são pagos para isso.

- Que simpática, Inês.- Aborreci-me com a sua frontalidade e provei uns doces que me serviram. As peles de lobo mantinham-me quente.

- D. Constança... posso chamar-vos Concha?

- Iue, não!- Inês respondeu prontamente ao meu marido. Tão prontamente que me fez rir, até pela cara de surpresa que Pedro fez.

- Pensei, que... nos daria mais intimidade.- Murmurou com um sorriso galante e lembrei-me do episódio desta manhã, corando.

- Aham... se pretende intimidade, poderia começar por ter conversas privadas em privado.- Inês olhou satisfeita o salão com dezenas de pessoas em nosso redor.

- As suas damas castelhanas são assim sempre tão intrometidas, minha senhora?- Pedro perguntou-me, impaciente com os modos de Inês, gaguejando não sei se pela surpresa com os modos de Inês, ou pelo seu real problema. O que lhe deu?

- Pelo menos não cheiro a cavalo e sangue.- Cantarolou Inês bebericando o resto do vinho.

Notei que Pedro tentou sentir o cheiro da axila discretamente, e dei uma cotovelada a Inês, que entendeu o recado e silenciou-se no mesmo instante com um discreto revirar de olhos. Ela ousa revirar os olhos ao meu marido?!

- Não dê importância. Inês está só com saudades de casa.- Desculpei a minha amiga, que se afastou alguns passos, para nos proporcionar alguma privacidade no salão esgotado.

- Vossa aia está muito boa no português.- Pedro admirou-se com a fluência de Inês.

- Sim, ela foi educada por fidalgos daqui.- Sorri orgulhosa da minha Inês, que tanto me ajudava com as traduções e ensinava-me ainda este dialeto estranho.

- Quem?- A rainha intrometeu-se na conversa.

- Não me lembro bem dos nomes.- Sorri angustiada e reparei que a rainha encarou a minha aia como uma presa. Inês pareceu incomodada com o olhar de D. Beatriz sobre si, porém apenas sorriu e vergou-se respeitosamente numa vénia. Estava claro que não escutara a nossa conversa.

Inês disse-me diversas vezes que a família que a acolheu e tomou como filha foi expulsa daqui... pelas mãos de D. Afonso.

- Pronto para Lisboa?- Mudei de assunto para espantar a atmosfera pesada que se instalara.

A rainha decidiu ausentar-se no mesmo instance, com a desculpa de estar cansada.

- Já me carregaram alguns baús, inclusive.- Pedro pareceu entusiasmado com o nosso casamento na cidade mais importante do reino.

Ouvi que haveria um desafio de cavalaria, com cavaleiros de todos os reinos em nossa honra. Lisboa estaria ao rubro.

- Amanhã tendes tempo antes de partirmos?- Indagou num ronronar, que seria um pouco mais galante se não tivesse gaguejos pelo meio.

- Não sei. Ainda me falta arrumar alguns bens.- Afastei-me do principe e das suas intenções. Não me esqueci desta manhã.

Se tinha a ousadia de me beijar frente a toda a corte, o que faria se nos vissemos sozinhos?! Oh mas Inês tem razão, somos casados e quero muito saber como é um beijo!

💕👑💕

A rainha não podia descobrir quem eu era, caso contrário, ou era expulsa ou era morta! Se somos familia, ou não, isso não é relevante para D. Beatriz.

Eu não nasci aqui, o que me deve fazer ganhar uns meses antes que descubra. Embora D. Beatriz seja traiçoeira, a mulher está no trono sem abalos ou ameaças, tem a total fidelidade do rei, ou seja, basta uma palavra e manda homens saber de mim e donde venho. É uma questão de tempo permanecer anónima.

Fiz de conta que não compreendi aquele olhar desconfiado e atentei-me de novo na conversa do casal à minha frente, quando escutei D. Pedro falar sobre um suposto encontro.

Constança Manuel deseja um piquenique com o seu marido e é isso que terá. Aproveitei que a minha senhora estava de costas viradas, para chamar a atenção do principe, discretamente, e então gesticular o plano:

Levantei os dois dedos da mão direita e simulei que estavam a andar sobre a palma esquerda.

- Talvez possamos... caminhar?- Sugeriu de olhos semicerrados para mim. Que discreto, alteza!

Neguei depressa e levantei novamente dois dedos.

- Juntos?- Tentou de novo com alguma hesitação. Constança, se reparou na estranhesa de Pedro, não comentou.

Acenei afirmativamente e fingi estar a andar a cavalo.

- Aos saltinhos?!- Indagou completamente perdido. 

Não!!! Que tonto!!

- O quê?- Constança virou-se de repente e eu disfarcei um olhar curioso, aquele de "Precisas de alguma coisa, Constança?"

Quando se voltou para o noivo, sem encontrar razão alguma para o comportamento estranho do principe, repeti mais devagar a minha montada.

- Cavalo!- Exclamou entusiasmado.

Finalmente! Ele era muito lento.

- Parece-me muito bem esta ideia de passearmos juntos, amanhã talvez, num passeio a cavalo, e depois...- Fingi que estava a comer, com um sorriso entusiasmado. Vamos lá Pedro, esta é fácil!- Um... Piquenique seja do seu agrado, talvez?

- Seria agradável, sim.- Constança aceitou, contendo toda a sua excitação.- Mas amanhã já tenho compromissos com vossa mãe.- Entristeceu-se.

- Falarei com ela, de certeza que a rainha não se incomodará se vos roubar por umas horas.- Segredou D. Pedro para a esposa, devagar pra tentar gaguejar o menos possivél.

- Então fica combinado.

- Sim.- Confirmou e sem qualquer aviso prévio... Pedro beijou a sua bochecha.

E... senti-me levemente incomodada. Quer dizer, ele tinha a lata de fazer isso frente a todas estas pessoas?

- Eu... eu... vou andando.- Desta vez foi Constança quem gaguejou, tal o embaraço após o beijo do principe. 

Fiz questão de segui-la, mas fez-me sinal para a deixar só. Ficaria preocupada noytra ocasião, no entanto o seu sorriso e o tom rosado, diziam-me que queria alguma privacidade para poder guinchar de entusiasmo sem magoar os ouvidos de ninguém.

- Obrigado pela ajuda.- O principe sorria satisfeito consigo mesmo.

- Tende respeito por D. Constança!- Repreendi, ainda sobre o que a minha amiga me tinha contado.- Não confio em vós para estar sozinho com ela.

- Pois então vinde também.- Sugeriu com um sorriso presunçoso.

- Jamais o faria.- Respondi obstinada. Na verdade eu iria, sim; alguém tem de manter olho nestes dois antes que façam um grande disparate antes das núpcias.- É vossa oportunidade de remissão para com D. Constança.

- Eu apenas me redimo com Deus, senhora.- Cruzou os braços divertido.

Criatura insuportável!!

- Amanhã de manhã não tenho muito o que fazer. Podia mostrar-vos a cidade.- Predispôs-se com demasiada simpatia.

- Tenho muitos afazeres.- Respondi o mais irónica que consegui.

Eu não iria dar a este tarado o que ele tanto queria. Como é que se atrevia a uma tentativa de cortejo se vai casar com outra?! E aquele seu tom irónico irremediável para comigo tiravam-me do sério.

- Inês, o que aconteceu?- Constança perguntou quando entrei no seu quarto. Ainda parecia abalada.

- Isso quero eu saber.- Sorri-lhe e afastei o meu temor.- Conta-me tudo, que só vi metade.

💕👑💕

Aquela castelhana de cabelos loiros e olhos azuis eloquecia-me. Tão protectora e obstinada, tão difícil de conquistar a confiança.

- Vou chamar os serviçais, ainda escorrego nessa poça de baba.- O André implicou comigo e dei-lhe um encontrão.

Aproveitamos para petiscar carne seca e alguns doces, pois o meu pai impôs uma pausa nos festejos para que se pudesse lavar e trocar, devido à competição de arco e flecha que haveria em breve.

- Pedro, focai-vos. Não me envergonhai.- D. Afonso recomendou receoso do meu desempenho.

- Como se isso tivesse acontecido alguma vez.- Refutei sarcástico, certo das minhas qualidades como cavaleiro. Eu era bom a cavalo, com a espada, com o arco... um guerreiro pronto a defender o seu reito e o seu rei.

Avancei pelo pátio, rodeado de outros tantos fidalgos. Patricavamos tiro ao alvo por equipa, e pessoa como eu não perde o alvo.

A seta acertou no segundo circulo interior, podia ser pior...

- Podíamos ir conhecer a cidade!- Ouvi um tal entusiasmo que desviei a atenção da prova por um segundo apenas.- Ou a Sé, até mesmo o resto do palácio... estou tão aborrecida, Constança!

- Inês não podemos... prometo que amanhã será diferente.

- Tudo bem.- Respondeu Inês, não muito certa das palavras da minha senhora.- Vou ficar por aqui mesmo.

Sentou-se tranquilamente, perto de outras damas que observavam a prova da tribuna superior, a que dava para o pátio. O mesmo lugar onde ontem viu a minha tentativa de beijo com Constança.

- Tende cuidado.- Constança beijou a testa de Inês antes de tomar o seu próprio caminho.

O aborrecimento da loira castelhana era quase palpável, e claramente nem o desempenho e exibicionismo dos fidalgos, seduziam a sua atenção. Este entretém era apenas ostentação para os rapazes: havia damas novas na corte, damas estrangeiras que vieram escoltar a minha mulher e sem dúvidas que Inês era a mais bela e disputada.

Que André me tivesse reportado, ninguém tentou ainda uma aproximação mais séria, apenas meros pedidos para dançar. Esta prova e a espectadora de honra, entre todas as outras, era uma oportunidade de ouro para fisgar aquela castelhana.

Pouco depois foi embora, enfadada. Reprimi a gargalhada, ao reparar com André, a frutração dos concorrentes. Trocas de olhares entre amigos e vassalos... havia um prémio a disputar.

Na verdade, Inês desceu cá para baixo, para o pátio, entre algumas das damas da rainha que não quiseram permanecer no salão a escutar os trovadores.

A surpresa dos cavaleiros e uma súbita melhoria de resultados, foram uma resposta clara à sua presença.

- As coisas de mulheres estão assim tão aborrecidas lá em cima?- Aproximei-me de Inês para a espicaçar um pouco, enquanto aguardava a minha vez.

- Não me lembro de ter metido conversa convosco.- Sorriu friamente de braços cruzados, observando a prova. 

Uma mulher tão bela sempre de expressões tão sérias e carrancudas... 

- Que sorriso é esse?- Questionou obstinada e incomodada.

- É o meu.- Dei de ombros e sorri satisfeito. Ela tinha notado o meu sorriso...

Quanta beleza. Devia de ser uma santa ou... uma bruxa profana, com tanto talento e sedução; não. É impossível uma criatura tão bela ser maligna.

Ela é tão bonita, céus!

- Pedro!!!- Ouvi um berro do meu pai e ergui o escudo à minha altura por mero instinto.

Senti o impacto de uma seta no escudo de madeira, porém não o baixei. Estava incrédulo, o que aconteceu?

Escutei os guinchos das damas da minha mãe, embora a rainha não estivesse presente. Não entendi ao certo o que aconteceu.

Inês estava ofegante. Encarei-a quando me recompus, e reparei que a seta tinha atravessado parte do escudo, demasiado perto do seu peito branco e volumoso.

- Vocês os dois vão levar cem acoites cada um!- Um dos nobres da corte puxou as orelhas a dois miúdos, que não deviam ter mais de 8 anos.

- Não, foi sem querer. Foi um acidente!- Imploraram aflitos.

- Está tudo bem?- Baixei enfim o escudo e preocupei-me com o seu tom tão branco quanto a cal. Ignorei os miúdos por um instante, depois falaria com eles.

Inês anuiu e engoliu em seco.

- Que susto.- Levou as mãos ao peito, tal a aflição.

- Venha, vamos beber um pouco de água.- Umas das senhoras da minha mãe, enlaçou o braço no seu, encaminhando Inês para dentro. 

A ninfa castelhana tinha ficado claramente abalada.

- Venham cá vocês dois!- Ordenei aos miúdos, furioso com o cidente que provocaram. A situação podia ter sido muito feia.

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