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4.

Eram muito estranhos, aqueles portugueses. Desde quando é que escudeiros trajam melhor do que os seus senhores? Estavam a espiar-nos, tenho a certeza. Ouvi cavalos não muito longe dali.

- Ai Inês, o que é que andas aí a pensar? - A Constança cruzou os braços, fazendo uma pausa de secar os pés da água fria do rio.

A carruagem tinha recomeçado o caminho, desta vez sem mais nenhuma paragem, e balouçava muito. Foi uma longa, dura e desconfortável viagem até Coimbra e o corpo já cobrava. Nem mesmo esta curta pausa, já tão perto, aliviava as dores.

- Não me digas que foi o moreno com a barba por fazer...- Desdenhou para me provocar.

- Quereis à força que me case com um fidalgo daqui, como vós?

- Fidalgo, não! Príncipe, e futuro rei de Portugal!- Corrigiu firmemente com o dedinho indicador levantado.

- Não tereis muito para reinar...- Olhei pela janela as casas que começavam a surgir à medida que entrávamos na cidade.- Só se veem ovelhas, vacas e erva.

Atirou-me uma almofada, furiosa.

- Eu achei os cavalheiros prestáveis, o conde pareceu-me um bom partido.

- Ele tinha cara de quem não é bom partido para ninguém.- Cruzei os braços e toquei no tecido translucido e suave do véu do meu que colocaria em breve a cobrir o cabelo.

Aquele homem tinha o sorriso de quem levava sempre a melhor, e homens arrogantes demais não fazem falta a ninguém.

- Eu estou nervosa, Inês.- Constança pousou a mão sobre a barriga e pressionou.- Eu quero tanto que Pedro goste de mim.

- Claro que vai gostar.- Apertei-lhe a mão com um sorriso caloroso para a encorajar.- Sois filha de Constança de Aragão.

- A situação está tão tensa, Inês...

Eu entendia os seus nervos e preocupações. Constança casou o ano passado com Pedro, em Évora, por procuração. O rei de Castela não permitiu que Constança estivesse presente e adiou o encontro por meses, até o rei de Portugal exigir o cumprimento do contrato.

Então aqui estamos, enfim. Em Coimbra, para encontrar suas majestades e o infante, embora o casamento esteja marcado para daqui a umas duas semanas, em Lisboa.

- Achas que me vai fazer mal, para vingar a irmã?- Preocupou-se sem necessidade e perdeu até um pouco da cor.

- D. Pedro é sem dúvidas um homem honrado, um príncipe e um cavaleiro. Jamais faria convosco a desonra que o nosso soberano fez com a princesa de Portugal.

Constança procurou a verdade no meu olhar e encontrou-a. Estávamos nisto juntas!

- Agora recompõe-te e levanta a cabeça. Estamos quase no palácio.- Beijei a sua testa e suspirou.

Respirou fundo e esperou que a carruagem parasse finalmente, frente aos sogros. Espreitei pela janela, afastando ligeiramente o véu do vidro e notei um sem-número de cavaleiros, pajens, damas, e cortesãos lá fora, e no topo da escadaria, a família real, vigiada de perto pelos grandes senhores do reino.

- Eu sabia!- Rosnei quando reconheci o suposto escudeiro de hoje mais cedo junto do rei.

- O quê?- Constança afastou-me para também ela admirar todo este aparato em sua honra. 

- Olha.- Apontei discretamente lá para cima, para a escadaria.

- Os cavaleiros de há pouco... eles são bem bonitos, vá. Tens de admitir, Inês.

- Não penses em idiotices! Estás aqui para casar com o príncipe... pela segunda vez.- Retifiquei.

Não estava um dia bonito, na verdade. Não se via o sol e passava uma aragem fria, normal de janeiro, só que Constança foi a primeira a senti-la, pois um homem ao lado do rei desceu a escadaria com uma certa impaciência, após uma curta conversa com o soberano. 

De repente, a portinhola da carruagem abriu, e Constança parou de bisbilhotar pela janela, para tomar coragem, endireitar o toucado e sair, esbanjando toda a sua simpatia e felicidade, desta vez, talvez um pouco ensaiadas.

Havia um silêncio ensurdecedor à espera de Constança. Saí atrás dela e atrás dela me deixei ficar, sem saber o que fazer, ou como a ajudar.

Até que de repente a música começou a tocar, trombetas, tambores e salvas de palmas e vivas à  esposa do príncipe.

Só nesse instante é que Constança, apesar das costas direitas, se permitiu relaxar um pouco, e quase pude ver a tonelada que expirou quando o fidalgo, que lhe abriu a porta da carruagem, lhe estendeu o braço.

- Alteza.- Reverenciou-se o cavalheiro de meia idade, de trajes negros, e Constança sorriu.

Quando começaram a subir as escadas, endireitei a cauda do vestido da minha senhora e admirei com ternura quando duas meninas de cabelos entrançados com fitas rosadas, lhe estenderam um bonito ramo de boas-vindas. Entretanto Matilda e Maria, as minhas companheiras e aias de Constança, acenaram-me levemente com a cabeça e sorriram-me, quando endireitaram a postura para subir as escadas.

Só após o que pareceu uma eternidade, é que Constança conseguiu alcançar a família real, e nesse instante, os seus olhos não conseguiram deixar o príncipe de Portugal. Eu aproveitei para olhar ao redor, todas aquelas pessoas lá em baixo... tanta gente e nem um banquete? Será que são modos de receber a futura rainha?

Constança nem por isso, mas eu ando sempre com fome, podiam ter-se dado à gentileza.

- Vossa majestade.- Constança reverenciou-se diante do sogro, radiante, e imitámo-la em silêncio. - É uma honra poder ser recebida em sua casa.

O rei usava uma coroa pesada na cabeça, com um gibão preto e lustroso, tão lustroso que brilhava, no mesmo material que as calças, e notavam-se que as botas de montaria, também em couro, tinham sido bem engraxadas. Poderoso, elegante, mas casual. O que vestirá para ir à missa de domingo então, se para receber a nora vem casual?

- Até que enfim, a vossa casa também.- D. Afonso beijou-lhe ambas as bochechas, apesar de Constança ter corado de embaraço com as suas palavras. Ela tinha de entender que os desentendimentos do rei de Castela e do rei de Portugal estavam acima de si, D. Afonso não tinha nada contra ela.

- Bem vinda a Coimbra, D. Constança.- D. Beatriz, apesar de palavras não muito elaboradas, encarava Constança com gentileza e doçura. Talvez por ter uma nova filha, talvez por se rever na nora, que tal como ela, tinha abandonado o seu palácio, deixado para trás Castela. Tudo em nome de um matrimónio com um estranho estrangeiro.

- Vossa majestade.- Constança vergou-se novamente e beijou-lhe as mãos, o que fez o sorriso da rainha enternecer-se mais ainda.

D. Beatriz usava um vestido de veludo verde escuro, que parecia brilhar com os poucos raios de sol, enfeitado com com um cinto dourado, a condizer com o pesado colar de ouro com uma cruz e um anel na mão direita. A rainha usava também uma capa vermelha escura em veludo, quentinha, com capuz, forrada a pelo de raposa. 

- Alteza.- Mordi o lábio, para esconder o sorriso provocado pelo tom irónico que Constança usou para abordar o esposo, e pude ver o príncipe piscar-lhe o olho.

D. Pedro pareceu ponderar bem as palavras. Ah sim... o príncipe era gago. Constança nunca o mencionou, será que já se deu conta?

- Esposa.- Retribuiu sem muitas delongas. 

E Pedro não precisou de mais nada para desarmar a sua mulher. As bochechas de Constança estavam encarnadas de vergonha pelo que eu consegui apurar. Era um bocado ousado ser tão frontal num primeiro-segundo encontro, mas ninguém pode acusar o infante de mentir, não é verdade?

A minha senhora vai ter de lidar com um marido que sai por aí em plena luz do dia para "passear", e quem sabe, ocasionalmente "encontrar" damas perdidas à beira rio. Já se está mesmo a ver o tipo de peça que lhe calhou!

- É uma honra D. Constança, há meses que ansiávamos poder vê-la.- O dito conde declarou pelo amigo, e vi que também Constança se divertiu com o exagero de ambos, uma brincadeira pelo encontro de hoje. Eu não entendi a piada ao certo, mas creio que piadinhas internas sejam parte da magia do matrimónio, não é verdade?

- A vontade é mutua.- Respondeu a castelhana e o príncipe encostou os lábios na sua mão estendida.

Oh bem... isto vai demorar por aqui. Olhei por cima do ombro de Constança e notei o suposto conde, que hoje acompanhava o dito escudeiro, a sorrir-me como se estivesse a assistir ao melhor dos espetáculos de comédia. Idiota! Para porta-voz do infante, era um bocado ousado.

Será possível que ainda ninguém tenha ido preparar uma refeiçãozinha? 

- Como vos disse esta é Inês, a minha aia de maior confiança e melhor amiga, praticamente uma irmã para mim. Espero, sinceramente, que a trates com a mesma estima e respeito que lhe tenho.- Escutei Constança e voltei-me para o teatro de apresentações ali na minha frente.

- Alteza.- Fiz mais uma vénia, desta vez para o príncipe. 

- Faremos o nosso melhor para não vos importunar, donzela.- O príncipe beijou a minha mão com a maior das delicadezas, mas foi o amigo que falou. Eu nem lhe estendi a mão, tinha-a ao lado do corpo!! 

- O vosso melhor não é suficiente.- Murmurei e Constança deu-me uma cotovelada com um sorriso forjado.

Reparei então verdadeiramente no príncipe, já que se chegou tão perto. Os seus olhos eram castanho-escuros e brilhantes, tal como o seu cabelo que estava cuidadosamente penteado. Agora, até a barba estava feita. Tão diferente do homem desarrumado de há bocado, tão... 

Senti a mão formigar, e nervosa, afastei-a depressa e tentei recuperar o fôlego. Ainda estávamos a tocar-nos?

Nunca antes a minha mão foi beijada por um homem. Os seus lábios são afinal um pouco ásperos devido ao clima, mas parecem delicados.

- Em que pensas?! Anda!- Constança enlaçou o braço no meu e seguiu comigo, com Maria e com Matilde atrás do esposo.

- Vinde.- O rei decidiu dar tréguas à apresentação sem sentido. 

Estavam casados! Se queriam conhecê-la, atravessassem a fronteira!

- Em honra da chegada de D. Constança, anuncio que o reino está em 7 dias de festividades!- D. Afonso declarou e entrou enfim para o palácio.

D. Pedro arqueou o braço e Constança aceitou o mesmo sem hesitar muito, porém quase pude jurar que antes de entrar, o príncipe olhou de soslaio para mim. 

Após percorrer alguns corredores adornados com flores silvestres, não muito coloridas por ainda ser inverno, e longas tapeçarias, entrámos enfim num salão de jantar com um cheiro delicioso a carne estufada e porco assado. Que delicia!

O rei sentou-se e depois a rainha também. D. Pedro aguardou com Constança até que o pai os autorizasse a sentar, e com eles, toda a corte. Os príncipes sentaram-se confortáveis, e eu fiquei atenta a qualquer comportamento mais ousado do infante, na mesa da comitiva de D. Constança.

A Matilde conversava com o irmão acerca das roupas e do comportamento dos portugueses, já Maria encarava aborrecida a família real. A pobre senhora foi ama de leite de Constança, deve ser-lhe estranho ver a sua menina entregue a estrangeiros desconhecidos.

- Ai, até que enfim.- Murmurei ao sentir água na boca, à medida que via as enormes travessas de javali e veado assado serem servidas.

Primeiro a mesa de honra, depois os outros.

O prior fez a oração, e então o banquete foi atacado ao som de risadas, conversas, brincadeiras e música. Estava delicioso, e a conversa aqui na zona castelhana ia cada vez melhor... com um leve empurrãozinho do vinho. Conviviam e embebedavam-se com os fidalgos portugueses enquanto faziam imenso barulho. Nem parece que quase andaram à chapada há uns meses.

Eles os dois ficavam muito bem juntos, Pedro e Constança, tenho a certeza que trarão muita prosperidade a Portugal. Além disso Constança sempre disse que gostava de ter 3 filhos, agora tem a sua oportunidade.

- Oras, se não é a dama castelhana que andava perdida esta manhã.- Aquele idiota que acompanhava o infante ousou sentar-se a meu lado, dando um empurrão mal educado a um fidalgo dos nossos.

- Olha um conde mentiroso. O que posso fazer por si?- Lambi os dedos molhadinhos do tempero do javali assado e bebi mais um copo de cerveja. Com certeza que não se importaria com os modos...

- Mentiroso é uma palavra tão feia...- Tentou aproximar-se mais e fiz-lhe um olhar que dizia o suficiente.

- Quereis dançar, donzela de Castela?- Tentou a sua sorte com um sorriso presunçoso e não vi razões para recusar. 

Espero que seja respeitoso.

- Por que não?

- Deixa-me profundamente honrado.- Levou a mão ao peito num drama exagerado e levantou-se, estendendo-me a mão para que me pudesse levantar também.

- Não tente nada engraçado.- Sorri o menos amigável que consegui.

💕👑💕

- Os meus pés!- Descalcei-me quando me sentei finalmente no meu lugar, a rir tanto que me engasguei com o hidromel.

Não me divertia assim há anos! Estes portugueses podiam ter imensos defeitos, mas sabem como dar uma festa.

- Ai Inês.- Matilde riu comigo provando o pudim e reparei que já fazia noite.

Parte do salão parecia vazio e a rainha já se tinha retirado há algum tempo. Que horas seriam? Céus, daqui a pouco o sol deve de nascer.

- Eu vou deitar-me.

- Fazes bem Inês.- Divertiu-se com o meu estado cambaleante pelos pés doridos. Não era hábito meu beber muito.

Acenei a alguns dos rostos castelhanos, quando tentei desenvencilhar-me dos pares que ainda bailavam. Primeiro dancei com aquele tal de André, depois com mais um par de portugueses e então começaram as quadrilhas. 

- Ai.- Suspirei e sorri quando me sentei na varanda do corredor e deixei os sapatos caírem-me no colo. Tinha uma vista linda sobre a cidade.

Não se viam estrelas, não havia lua. Só escuridão. E então uma brisa fria tão sóbria.

- Boa noite.

Sobressaltei-me ao ouvir uma voz atrás de mim e voltei-me vagarosamente.

- Alteza.- Tombei levemente a cabeça em sinal de respeito.- É uma festa e tanto.

- Nada se compa...parará à de Lisboa.- Sentou-se frente a mim e só então estranhei a situação.  Por que falava comigo?

A subtil interrupção tinha-o deixado envergonhado, conseguia ver como estava vermelho.

- Onde está a minha senhora?- Perguntei sem hesitar, demonstrando-lhe que não me importava com o sucedido.

- Foi deita..tar-se há horas.- Sorriu e aproveitei o escuro para tentar adivinhar os traços do seu rosto, os seus olhos... e o sorriso, o corpo de um cavaleiro sem duvidas, e em boa forma.

- A admirar-me?

- Pft!- Apanhada em flagrante.- A analisar. Antecipo as dores de D. Constança.- Levantei-me e esperei que não visse como estava corada. Efeitos da bebida!

Esta situação só fazia de mim uma pessoa horrível e uma amiga desprezível.

- Não é de bom tom ofender um príncipe de Portugal e virar costas sem pedir perdão.

Parei e segurei o folego, para quem era gago ainda há pouco, esta era uma declaração bem certeira.

- Ou se não o quê?- Estremeci com a minha própria pergunta.

- Não é...é uma pergunta...ta prudente, doce Inês.- Sorriu-me cativante como um gato, e senti um arrepio que não soube distinguir como bom ou mau.

E da mesma maneira como chegou, o príncipe levantou-se com elegância da varanda e foi embora com um sorriso arrogante. Fiquei sozinha de novo, admirada e sem saber como reagir, aconchegada no vento de janeiro.

Ele lembrava-se do meu nome...


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