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3.

Os anos foram passando. Pedro aprendeu a arte de cavalaria, e tornou-se um dos melhores, sempre com André a seu lado. O menino doce e curioso em busca de aventura, tornou-se um homem aventureiro e corajoso, integro e honesto, tolo também, por se entreter vezes demais em lutas de tabernas. 

Amigos, praticamente irmãos, Pedro e André arranjavam confusão juntos, e resolviam-na juntos. Quando não estavam a praticar ou a estudar, passavam pelos campos a cavalo, sentiam a brisa dos montes, inspiravam o ar verde e húmido das terras do Mondego, admiravam o reflexo e clareza do rio e as sombras das árvores nas tardes de verão. 

Por vezes, em dias como o de hoje, saiam com o rei e os fidalgos para as caçadas, onde D. Afonso, apesar da idade, não se deixava ficar para trás.

- É injusto! Tendes sempre mais peças que nós dois.- Disse André ao reunir com o rei, junto dos outros nobres e lacaios, que tentavam aguentar os cães. Na verdade, falava mais pelo seu amigo Pedro, e o rei sabia-o.

- Miúdo, tem em consideração que ainda não eras concebido e eu já era o melhor nas caçadas.- Troçou o soberano, mas o príncipe não levou a mal e o amigo tampouco. Havia esta competição saudável com o pai.

- Tenho de voltar ao castelo, o dever chama. Até mais logo.

- Vá com Deus.- Respondeu o jovem.

- Vistes?! É sempre o mesmo.- André desfez a montada e sentou-se à sombra, assim que se viram completamente sozinhos do séquito real, ainda no meio da mata.- Consegue sempre mais que nós.

- Não me sentiria bem se fosse ao contrário.- Admitiu o bom Pedro tropeçando nas palavras e sorriu consigo mesmo por ter deixado escapar peças propositadas. 

- Achas que ainda anda com ideias de te arranjar esposa?- Comentou André acerca de um rumor que escutou pela corte há umas semanas.

- Provavelmente.- Revirou os olhos e sentou-se ao lado do amigo a comer uma sandes e a beber uma garrafa de vinho.- Vamos esquecer as coisas más, como vão as coisas?

- Coisas?- André fez-se de desentendido.

- Eu vi como olhas para ela.

- É filha de lavradores. O meu pai nunca aprovará. Além disso... disponibiliza demais a sua castidade.

O príncipe não entendeu onde é que o amigo queria chegar. Não estava satisfeito por estarem envolvidos? Ainda há umas semanas estava impossível de aturar com o mau humor, pois achava que a rapariga lhe dava demasiado trabalho a conquistar.

- Fácil demais.- Esclareceu e Pedro revirou o olhar enquanto bebia mais vinho.

- Falas assim, mas quando uma rapariga se faz rogada desistes.

André riu. Qual era a graça de enganar e magoar uma dama?

- Tens pouco mais de 19 anos, já vai sendo tempo de pensares mais em ti do que nos outros.

- Talvez sim, mas se precisar de serviços carnais pago a alguém que os disponha, ou deixo a situação clara, não magoo donzelas com promessas falsas.

- O que só te torna um total aborrecimento e desperdício de poder, é o que digo.- André abocanhou a marmita de Pedro sem autorização, e o príncipe deu-lhe um pequeno encontrão enquanto resmungava.

Entretanto deitaram-se, estava um dia pacato, uma manhã solarenga. O carvalho tinha uma sombra vasta, que dançava lentamente com a brisa que fazia, como uma canção para os embalar, numa melodia relaxante e natural.

- Falas de mim, mas perdeste a virgindade com a filha do escudeiro do teu pai.

Como é que...

- Ela era bonita, e bondosa... só que depois ficou noiva e...

- Admite Pedro: gostas de mulheres tanto ou mais do que eu. Eu sou apenas menos tímido quanto às minhas conquistas.

- Sempre ouvi dizer que quem come calado, almoça e janta.- Troçou o príncipe e suspirou, pronto para uma soneca.

- És príncipe, um dia serás rei. Não precisas de ser poupado, algo me diz que não te vão faltar refeições.

André silenciou-se por fim, apenas por breves instantes, para desagrado de Pedro: 

- Não vos envolvestes também com uma das criadas? E com a filha do Senhor de Aljubarrota? E com a...

- Já entendi, André! Eu sei bem em quem enfiei a espada!- Enervou-se.

- Orgulhoso de ti, é o que digo. Com as tuas conversas em pequenos, quase pensei que fosses eunuco. - Riu, baixando o chapéu e preparando-se para uma sesta.

- Não tendes juízo.- Cuspiu o infante perante a clara provocação do amigo.

- Nem vós.- Respondeu a verdade e acabaram por rir juntos. 

Era por isso que Pedro gostava tanto de André. Com o amigo podia ser ele mesmo, demorar-se nas palavras e gaguejar sem que André o julgasse, o amigo tinha a paciência de o ouvir sem fazer o príncipe sentir-se um anormal, como todos os outros faziam. Além disso André sabia ser engraçado quando era o momento, e sensato também quando era requerido. 

Silêncio finalmente. Só o tranquilo som do rio a percorrer o seu caminho infinito, o vento a brincar com as folhas das árvores, as cócegas das ervas, as ovelhas que barregavam lá mais longe, a pastar, com um pastor a tomar conta. Aquilo sim, era qualidade de vida.

- Estou a ouvir mulheres.- André comentou sem se incomodar em mover.

Pedro também não se mexeu, porém pôs-se à escuta com mais atenção.

- O que é que fazem aqui?- O amigo ergueu-se e Pedro aborreceu-se. Por vezes André podia parecer um cachorro no cio.

- Constança, ten cuidado!

- No hay nadie aquí, Inês!- Risinhos ecoaram pelo monte.

- Vejamos... podem precisar de ajuda, somos cavaleiros. - André levantou-se rapidamente, endireitando o chapéu, pronto para se dirigir às estranhas.- Não as assustes, não queremos que fujam.

Pedro revirou o olhar, mas não pôde deixar de achar graça ao amigo. As castelhanas pareciam bonitas dali, e sem ninguém por perto... talvez se tivessem perdido.

Pedro foi o primeiro a sair de trás da árvore, e André seguiu-o. As raparigas corriam e riam divertidas com as bainhas dos vestidos molhadas do rio. Chapinhavam e sentiam a água fria nos pés, tendo o cuidado de erguer um pouco os vestidos para não se molharem, gesto tardio demais. Uma era loira, usava um vestido da cor vermelho-acastanhado com detalhes dourados, a outra era morena e usava um vestido azul claro, com nuances a azul escuro e detalhes a prateado.

- São bonitas.

- Não fales assim de donzelas, mal as conheceis.- Arreliou-se Pedro.

- Há uma primeira vez para tudo.- André acelerou o passo, e passou à frente de Pedro.

- André!- Chamou.- André, onde vais?! Ficai aqui é uma ordem! Eu ordeno seu... seu...

- Boas tardes!- O amigo abordou as duas raparigas, que desfizeram os sorriso de imediato e ficaram tensas. Ambas muito reticentes quanto às intensões do português.- Sou André, filho do Conde de Mortágua, este é o meu melhor amigo, Sua...

- O escudeiro.- Pedro interrompeu o seu discurso e quase o matou com o olhar.

- Ham...

- Nós somos...

- Constança!- A rapariga loira tentou impedi-la com um olhar admirado.

Pelos seus trajes, eram fidalgas. Falaram em castelhano, depressa demais para que o príncipe entendesse:

- Que estão a dizer?

- Não faço a mínima ideia.- André deu de ombros.

- Frei Guilherme, disse que eras muito bom em castelhano!- Resmungou Pedro.

- Copiei as perguntas que me fez.

- Charlatão!

- Soy Constança y esta es Inês, damas de Castilla.

Castilha... Castela.

- Que fazeis por terras de Portugal?- Perguntou André, após um rápido olhar inquisitivo de Pedro.

No puedo decirles. No es de vuestra incumbencia.- A tal Constança falou. Tinha cabelos castanhos claros entrançados num toucado com pérolas. Os seus olhos eram castanhos escuros e o sorriso afável. O retrato fiel de uma dama ibérica. Nem bonita, nem feia e pelos vistos, arisca.

- Compreendo, peço perdão pelos meus modos.

Pedro analisou por fim a rapariga loira, um pouco atrás de Constança... era... era a rapariga mais bela que alguma vez vira. Cabelos tão loiros e brilhantes como ouro, a pele pálida, marcada pelas bochechas avermelhadas do calor e das gargalhadas, e os seus lábios eram rosa-avermelhados, embora não se curvassem num sorriso, nem mesmo irónico, como Constança. Os olhos eram duas pedras preciosas azuis, tão claros e límpidos como uma ribeira de água fresca no verão. E tão formosa...

- Inês...- Murmurou baixinho, apesar do olhar hostil e desconfiado da rapariga, que os olhava do mesmo modo, como ambos fizeram mais cedo com a caça. Era um nome tão puro e suave como o vento, lembrava a Primavera.

- Que dizeis?- André perguntou e Pedro acordou do transe.

- Nada.- Sorriu desviando o olhar da bela castelhana.- Precisais de algo? Alguma indicação? Proteção?

As damas encaram-se mutuamente, até Constança perguntar onde ficava o palácio.

- É ali, no topo daquele monte, vedes?- Apontou André com um sorriso divertido.

- Gracias. Tenemos que ir, os quedais con Dios.

- Igualmente.- Suspirou o príncipe, vendo-as sair da beira rio e pegar nos sapatos sobre a erva acalcada. 

Não muito longe dali havia várias carruagens. Quando repararam, os amigos viram uma grande comitiva de pajens, aias, criados e cavalos a descansar. Quem eram estas donzelas? 

Ela era tão linda, como é que nunca se encontraram antes?

- Pedro, estás a ouvir-me?- André já abanava o príncipe delirante.- Estou há horas a chamar-te. Algo me diz que estas castelhanas vieram para ficar.

O rapaz abanou então a cabeça e pareceu entender o que o amigo dizia. Uma longa comitiva e duas castelhanas que procuravam o palácio do seu pai.

- Vamos.

💕👑💕

- Pedro!

- Mãe!- Abracei D. Beatriz, entregando o meu cavalo a um criado.

Estava com os trajes de festa. Era verdade. Algo grande vinha aí.

- Vai preparar-te. A tua noiva está perto.- Declarou com um sorriso triunfante e orgulhoso. 

- Noiva?!- Estranhei o termo. Por que é que ninguém me tinha dito nada?- Como se chama  a minha futura esposa.- Segurei o fôlego expectante. Seria Inês? Só poderia ser ela!

- D. Constança Manuel. Agora vai lá!- Apressou-me e fui trocar-me, empurrado pelo André.

A morena de há pouco? Então e Inês? Essa que é o Sol nesta terra de pecadores? O porto seguro no mar sombrio?

- Veste lá qualquer coisa catita, vamos.- Pressionou-me o André e deixou-me no meu quarto, sozinho, para também ele se ir trocar. Manchas de lama e sangue não são bem vistas pelas damas.

- Alteza, suas majestades requerem a vossa presença.- Escutei o mordomo do meu pai chamar-me do lado de lá da porta. 

O camareiro apressou-se a endireitar-me as lapelas da camisa e afastou-se com uma vénia. Parece que vou casar, não é verdade? 

Olhei pela janela, a tarde de verão quente e preguiçosa. É uma partida terrível de Deus, esta. Um dia, encontro por fim a mulher que amo, que me endoidece e me seduz, e nesse mesmo dia, dizem-me que é com outra que devo casar.

Aquela maldita Inês fez o ar faltar-me apenas com um olhar. Fez-se dona do meu coração, sem convite e um eterno cativo da sua beleza, tudo apenas em breves momentos.

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