Os santos
Três dias depois.
Passava das três da madrugada quando senti um vento frio atingir meu corpo, levantei e peguei a vela sobre o candelabro, indo até à janela para fechá-la, embora eu tivesse a certeza de que tinha fechado, pois a noite era fria e o sereno tomava conta dos ares.
Prestes a retornar à cama, senti meus pés descalços molharem em algo, os melando, apesar do piso gélido.
Encarei os pés, afastando-os. Iluminei o piso, sentindo uma sensação inexplicavelmente ruim tomar conta de mim.
Fiquei gélido quando vi claramente o que estava distante de mim.
Era sangue sobre o piso. Estava escrito com sangue morno no piso; Você não pode salvá-la.
Neste momento um vulto assoprou a chama da vela, apagando.
Gritei, derrubando o candelabro das mãos.
Acabei escorregando e caindo sobre o sangue.
Ao abrir os olhos, estava de dia, minha cabeça rodava como um carrossel e meus olhos ardiam. Levantei imediatamente, desesperado por estar ali tanto tempo.
Mas não havia nada, absolutamente nada, era como se tivesse sido um delírio, mas foi real, eu sei que foi real.
— Roberto! Roberto! — Alguém batia à porta, freneticamente.
Calcei os sapatos rapidamente e fui até à porta, tropeçando, mal sustentando o peso do próprio corpo.
Os olhos apavorados de Miguel estavam diante dos meus.
— O que foi? É algo com a Isadora? — Perguntei, vendo sua inquietação.
— Sim! Ela está há três dias sem comer, tem alucinações durante a noite toda, todos os dias e...
— O que? Diga Miguel! — pedi, agoniado, ajeitando meu hábito todo amassado.
— Ela disse que está sendo atormentada, que está com medo do que ele pode fazer, não dormiu a noite toda, mal saiu do quarto — disse com nervosismo.
Aquilo me deixou pior do que eu já estava. Todavia reuni forças, pois sabia o que teria que enfrentar e a quem ele se referia.
— Não sei o que fazer, se tornará pior Tuca — Relutei contra o fraquejar do corpo em reação à minha mente que se revirava.
— Ela precisa de nós, de você — Pôs a mão em meu ombro com firmeza, num pedido de ajuda aflito, a angústia ofuscando o brilho dos olhos.
— Me espere lá embaixo, irei pegar as minhas coisas — Respondi, decidido a enfrentar o mal.
Peguei as coisas necessárias e fui ao banheiro, quando me olhei no espelho, não vi alguém capaz de fazer o que eu pretendia, mas alguém que não seria vencido tão facilmente. Não pude lutar pela minha mãe, a deixei partir, não falharia com Isadora também.
Foi a minha promessa.
Na casa dos Vilar.
Ao entrarmos, fomos recepcionados por Celina, tão abatida que mal trocou meia dúzia de palavras comigo. Miguel perguntou aonde estava seu pai e ela lhe disse que o esposo havia ido até à vinícola bem cedo, apesar da noite insuportável que a filha havia passado.
O dinheiro tinha um lugar inestimável no mundo de Antônio Vilar, acima da própria filha e de seu sofrimento.
— Por favor, ajude a minha filha Roberto — pediu, tão baixo que quase não escutei.
Subi as escadas rumo ao quarto de Isadora. Bati na porta, Miguel girou a maçaneta, sem a permissão.
Quando entramos, nos deparamos com ela encostada no parapeito da janela, de costas para nós.
Havia uma cruz de madeira pendurada na parede, tinha sido colocada, pois não estava na noite em que estive lá.
— Isa, trouxe Miguel para ajudar — disse, anunciando nossa entrada.
Ela não se moveu.
— Fique longe de mim — disse, friamente.
— Ele só quer te ajudar — retrucou, hesitando em se aproximar.
— Eu não quero que cheguem perto— rebateu, a voz embargada.
— Eu não vou sair daqui, sabendo que está sendo atormentada — Impus, firmemente. Ela suspirou, e quando se virou, a cruel realidade que contemplei me despedaçou de dentro para fora.
Ela não era a mesma.
Seus olhos... havia algo neles, algo muito sombrio. Senti que algo dentro de mim não a reconheceu.
Ali não havia mais a Isadora que eu conhecia, era o mesmo rosto angelical, os mesmos olhos castanhos tão lindos, mas algo havia os dominado no oculto.
— Nós vamos te ajudar, não vamos deixar nada te acontecer — Miguel avançou uma passo, hesitante, como se pudesse pisar no fio de uma dinamite.
— Ajudar? Ajudar a quem? — Soltou uma gargalhada de escárnio, irreconhecível.
— Nem sequer é capaz de ajudar a si próprio, está se corroendo de culpa, nós dois sabemos o que aconteceu aqui — Seu tom acusatório me fez ter a certeza de que não era ela quem falava ali.
Miguel me lançou um olhar confuso.
Provavelmente imaginou o que havia acontecido entre eu e sua irmã. Soltei um grunhido, tomando coragem o suficiente.
— Não me sinto culpado o bastante para me atormentar por isso — disse, não o deixando me amedrontar.
Ela sorriu, se divertindo com aquele momento sendo exposto.
— Sua mãe também não se sentiu, é por isso que acabou como está, morta, esquecida, lembrada somente pelo pecado que a condenou — Riu com escárnio outra vez, como se contasse uma piada.
Seus olhos castanhos se ergueram de novo, me lançando um olhar tenebroso.
— Deixa a minha irmã! Para de controlar ela! — Vociferou Miguel, atraindo a atenção dos olhos que estavam estranhamente avermelhados dela.
Retirei a cruz de dentro do bolso, junto com a bíblia.
— Seja lá quem for, não tenho medo de você! — Confrontei, erguendo a cruz em sua direção.
O que controlava Isadora se enfureceu, a cruz pregada na parede voou, sendo arremessada contra mim, desviei por algum impulso inexplicável.
— Eu vim buscar o que é meu! Você não vai me impedir! O pacto foi feito e tem um preço a pagar! — retrucou, a voz ainda era a dela, embora o comando do mal fosse evidente.
— O QUE VOCÊ QUER? — O obrigaria a me dizer, para assim poder pensar em como fazê-lo deixá-la.
— A alma dela — Uma voz grotesca e endemoniada foi quem nos respondeu.
A verdadeira face do mal surgindo.
Miguel empalideceu vendo aquilo.
— Foi o que ele me prometeu! — Revelou, retornando a voz dela. Peguei um pouco de água benta dentro do bolso e abri. Isadora não se intimidou.
Eu não demonstrava o quão inseguro estava, o medo de falhar.
Aquilo era uma amostra de como o diabo tinha força para agir.
— Acha que pode salvar a sua amada? Você não pode, pode tentar seu tolo! Mas vai falhar, nem sequer é um padre, apenas um mero ajudante, desprezado por todos! — Me atacou com desdém explícito, se aproximando alguns passos.
— Aqui não é o seu lugar! — O enfrentei.
“O demônio usa suas fraquezas para atacá-lo"
"Não ceda as provocações sujas”, disse Cícero uma vez.
Abri a água do pequeno vidro e arremassei contra seu rosto, arrancando gritos dela como se estivesse ferindo.
— Roberto, temos que tira-la daqui! — Sugeriu Tuca, sem saber como ajudar.
Fraco.
Eu sou fraco para isso.
Você não pode salvá-la.
Estremeci por dentro, sentindo que o pior ainda por vir.
— Não! — bradou ela, erguendo o rosto que retraiu pela água jogada e movendo alguns passos até à cômoda.
Notei que havia uma lâmina sobre o móvel, e consequentemente no que deveria estar planejando. Larguei a cruz imediatamente.
— A lâmina! — Apontei agilmente para Miguel que tentou agarrar primeiro, no entanto foi arremessado contra a parede do outro lado do quarto.
Avancei na direção do móvel, agarrando os punhos dela e a impedindo de pegá-la.
— Me solta! Me solta seu maldito órfão!
— Esbravejou, tentando arduamente se desvencilhar de mim.
Resisti com todas as forças, graças a sua força que parecia ter se triplicado, ela me empurrou contra o móvel que acabou quebrando no meio, caímos no chão, rolamos pelo piso até que ela conseguiu de soltar.
A lâmina estava alguns metros, tentei levantar a tempo, no entanto, Isadora foi mais ágil e alcançou o metal, subindo em cima de mim e retendo meu corpo com violência.
— Você não vai tirar o que é meu, aprendiz de padre! — A máscara fria da morte cobriu seu rosto quando ergueu o punho para me acertar.
Meu coração disparou de medo, não pode escondê-lo.
Fechei os olhos, esperando pelo golpe certeiro que acabaria com tudo, pelas mãos da mulher que amava. Contudo, algo dez com que a lâmina atravessasse o piso, ao invés do meu peito.
— Filha! — Gritou Celina, a retirando de cima de mim com certo sacrifício.
Ainda no chão, a encarei, distante de mim, Isa me olhou como se não reconhecesse aonde estava, perdida.
O vazio de seus olhos se esvaiu, assim como a força de todo resto do corpo. Ela desmaiou.
Miguel recuperava a consciência após o impacto bruto, erguendo-se com dificuldade, enquanto Celina segurava a filha nos braços, ajoelhada ao chão, em prantos.
No fundo, ele tinha razão, eu não estava pronto. Não tinha forças, ainda tremia de medo diante do mal.
Precisava tomar uma decisão, precisava agir, me preparar, pois sabia que só ficaria pior, o tormento a cada dia, o diabo não ia descansar, não ia parar. Eu só queria protegê-la.
— Eu nunca pensei que viveria isso — Confessei baixinho, acariciando o cabelos bagunçados sobre o travesseiro, sentado à beira da cama.
Isa parecia uma donzela de um conto de fadas, era impossível imaginar o terror que passava, vendo-a tão serena sobre a cama.
— É tão injusto... pessoas boas pagam pela ganância das almas corrompidas... deveria ser eu no lugar dela, eu trocaria sem pensar duas vezes — Apoiou o punho na entrada da porta.
— Ela é tão boa, sempre foi tão carinhosa, é impossível fazer mal a minha irmã... como ele pôde — Fungou, a revolta era nítida na sua voz chorosa, em seguida acendeu um cigarro, colocando entre os lábios finos.
— Não consigo suportar isso, preciso
— Não consigo suportar isso, preciso de ar, com licença — Manifestou Celina, saindo do quarto cambaleando, sem poder suportar ver a filha naquele estado.
— Já volto, se ela acordar nos chame Beto — pediu Miguel, acompanhando a mãe.
Em poucos segundos, Isadora despertou.
— Beto, você está aqui — Voltou-se para mim.
— O que houve? Não me lembro... apenas... — As palavras morreram em sua boca.
Não quis contar, dizer que quase havia me matado só piorar ia tudo. Sai da beira da cama, indo mais à frente e sentando ao seu lado, na direção contrária.
Toquei suas bochechas que estavam vermelhas e quentes.
— Eu... sua mãe disse que não tinha passado essas noites bem, me perdoe por não ter vindo antes — pedi, acariciando seu rosto suavemente.
— Não é sua culpa meu pai ser um lunático... estou feliz que esteja aqui — Esticou a mão e entrelaçou os dedos nos meus.
Depositei um beijo em seus lábios, sentindo que tinha o privilégio de ter a verdade Isadora ali... A minha Isadora.
— Senti sua falta — sussurrou, e me puxou para ficar sobre si.
— Sabe que nem por segundo, quis ficar longe de você — sibilei, me deixando envolver por suas carícias.
— Eu sei... senti falta do seu cheiro, do seu beijo, do seu toque — sussurrou, me beijando vorazmente, retribui, minhas mãos deslizavam por seu quadril, até chegarem à coxa.
Eu não podia.
— Isadora... não posso, você está frágil
— Tentei relutar e convencê-la.
Ela subiu meu hábito com os pés.
— Me faz feliz, talvez o tempo não seja piedoso com a gente, me dê isso Beto, por favor — ofegou, quase suplicando.
Aquilo me pareceu quase uma despedida.
Respirei fundo.
Eu e ela precisávamos daquele momento. Por nós, por ela.
Como um último pedido. Eu não podia negar.
Precisávamos um do outro.
Ergui seu vestido, deixando suas coxas à mostra e afundei os dedos contra sua pele ao penetra-la. Isa gemeu, me beijando em meio a nosso ato.
A melancolia gritou no fundo das nossas almas e transpareceu em lágrimas.
— Nunca se esqueça que eu amo você — relembrou ela, com lágrimas nos olhos e um sorriso tristonho. Aquelas palavras me despedaçaram inteiro.
Naquele momento senti que nada mais seria igual e que era nossa última vez juntos como eu sonhava que fosse.
Que ironia do destino, os santos chorarem por culpa dos demônios.
Uma despedida.
Oii galera, estão gostando do que acompanharam até aqui? Espero que sim, porque o que vem por aí é muito mais emocionante! Se preparem! Até o próximo cap♡
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