O segredo
Na cidade aonde eu morava, era comum muitos garotos estudarem na escola dominicana, quando saíam de lá, iam direto para o exército ou escolhiam seguir a vida como eu, sendo um frei e futuramente um padre, devoto.
Entretanto, alguns tinham suas habilidades, foi lá que aprendi a tocar flauta e várias outras coisas, escondido é claro, pois não permitiam.
Alguns viraram batedores de carteira, outros se tornaram pais de família com seus empregos comuns nas quais eram muito cobiçados naquela época, por exemplo, numa das maiores fábricas da cidade, a Fábrica dos Vilar, para maior produtora de sapatos de toda São Paulo.
Apesar de viver uma vida muito limitada financeiramente, sempre fui feliz e tive tudo o quanto era necessário.
Até começar a crescer e sentir que algo faltava em mim, eu não conseguia explicar, só sentir.
— Com a cabeça nas nuvens outra vez, menino? — Surgiu de repente e me fez frear bruscamente a bicicleta, resultando na minha queda desastrosa.
Depois de freiar para não atingi-lo, tudo que vi foi um borrão preto abaixo do sol escaldante no céu invadir minha visão.
— Vai uma aí padre? — Ofereceu Geraldo, o dono do bar ao lado.
— Olha o atrevimento desse herege! — Rangeu os dentes, ofendido com a provocação.
— Levanta daí, o que está esperando?
— Me leva embora! — Me apressou, furioso.
Levantei ainda dolorido e ralado pelas pedras da rua de terra seca e subi na bicicleta, o padre sentou no banco de trás e segurou na parte posterior, segui pedalando.
Ao chegarmos, ele disse que havia esquecido de buscar leite na casa de uma das senhoras que nos fazia doação, portanto voltaria e pegaria, eu não quis ir junto, por ter me ralado todo e estar dolorido, então fiquei esperando seu retorno.
Aproveitei para limpar a parte de baixo da igreja, aonde ficava o confessionário, ligado ao centro onde ocorriam as missas por um corredor longo de paredes brancas e de vitrais coloridos e compridos.
Comecei limpando tudo, enquanto cantarolava uma música em latim, o padre havia me ensinado quando eu era muito pequeno com a intenção de me preparar para caso eu fosse para o
Vaticano um dia.
O mais engraçado, é que ele havia esquecido a maior parte do que me ensinou durante os anos.
Após limpar os vitrais, segui para o confessionário, varri o minúsculo espaço e deixei a vassoura do lado de fora, até escutar o som inconfundível de saltos entrando na igreja, chegando cada vez mais perto.
Me tranquei dentro do cubículo e sentei no banco de madeira sem encosto, enquanto observa o par de luvas brancas de renda e sapatos de boneca pretos vindo em minha direção.
Eu conhecia aquela delicada e pequena bolsa nas mãos enluvadas, conhecia aquele chapéu caro sobre aqueles cabelos longos e distintos.
— O senhor disse que eu poderia vir mais tarde, mas não aguentei esperar — disse, afobada. Mantive silêncio, a única reação possível.
Ela se ajoelhou do outro lado.
— Padre, como eu afasto o mal sem machucar quem eu amo? Como afasto quem está ligado ao mal, se está ligado diretamente à mim? — Questionou a voz presa em tensão.
— Meu pai cometeu um erro terrível e não sei como posso evitar que uma desgraça aconteça, talvez seja tarde...
— Então é tudo verdade — murmurei somente para mim, incrédulo.
— Padre? O senhor está me escutando?
— indagou, inquieta por respostas.
Resmunguei em confirmação, se ela escutasse minha voz, seria o fim da confissão outra vez.
Os boatos eram verdadeiros então.
— Na noite passada, eu o vi... falando com o diabo, quer dizer... o diabo da garrafa — explicou, se enroscando nas próprias palavras.
— Se o senhor puder me ajudar, eu estou com medo de que ele nos faça mal, se puder nos ajudar de alguma maneira, conter esse mal... estarei aguardando lá fora — Soltou um profundo suspiro e se levantou, levando consigo a esperança de ter ajuda de quem acreditava estar ali lhe escutando.
Talvez eu pudesse ajudá-la.
Afinal, um dia seria padre e poderia começar de maneira eficaz, lidando com o mal de forma direta. Sai andando e desci as curtas escadas que davam acesso ao jardim quase abandonado dos fundos da igreja, onde havia uma mini capela sem uso ao ar livre, parte da estrutura que a cobria havia desabado num temporal.
A jovem mulher estava de costas, cutucando algo das ruínas da parede que havia restado da capela quando eu me aproximei, silenciosamente.
— Quem está esperando, senhora? — Perguntei, como se não soubesse de nada. Ela se virou, quase num pulo.
— Senhora está no céu — Respondeu, ríspida.
— E educação na terra — retruquei, da mesma forma.
— Como é? — Estreitou as sobrancelhas claras, mas não tanto quanto os fios brancos e raros.
— O padre não está, acaba de sair — Menti, só para vê-la se frustrar.
— Quem é você? — Semicerrou os olhos redondos, me analisando meticulosamente.
— Roberto, sou o frei que o ajuda, e a senhorita? — Me apresentei.
— Isadora Vilar — Se apresentou com o tom de arrogância mesclado que eu imaginava.
A famosa filha dos Vilar, ou melhor, a herdeira de Antônio Vilar, o homem mais rico da cidade e também alvo de vários rumores mirabolantes.
— Sabe que horas ele volta? Preciso muito falar com ele — Quis saber, ignorando minha existência que poderia ser útil a sua necessidade.
— Não sei, mas posso ajudá-la — Propus, gentilmente. Ela soltou uma risadinha esnobe.
— É bem confiante, Roberto — Fez pouco caso, desviando olhar para as plantas ao redor.
— E a senhorita bem presunçosa — murmurei, impaciente.
— O que você disse? — Estreitou o cenho.
— O padre vai demorar a voltar, se eu não puder ajudá-la, aguarde na igreja — falei, me virando para retornar à parte interna da igreja.
— É assunto que não pode esperar — Se apressou em me manter ali, surgindo na minha frente, quase me fazendo colidir com seu corpo.
— Pode sair daqui? Preciso que venha comigo — Sua respiração estava descompassada.
— Sim, mas...
— Você fala demais! — Pegou minha mão e me puxou rumo à parte interna, mas quando chegamos nos corredores, demos de cara com o padre.
— Roberto, aonde você vai? — Me lançou um olhar rígido.
— Senhorita Vilar? O que faz aqui? Beto está te incomodando? — Viu nossa questionável proximidade e não aprovou nada.
— Não, estávamos procurando o senhor
— Mentiu, desviando o olhar e soltando meu pulso.
Eu incomodando? Por que não ao contrário? Ela que saiu me puxando!
— Roberto, nos deixe a sós — Me dispensou, como sempre fazia.
— Ainda estou limpando aqui — Menti, pois assim ele seria obrigado a me deixar ali.
Isadora me lançou um olhar estranho.
— Roberto — Enfatizou, mais ríspido.
Ele não discutiria comigo na frente dela, portanto permaneci ali.
— Ele pode ficar, não me importo, todos já sabem mesmo — falou Isadora, com pressa para ser escutada.
Cícero fez uma cara que mostrava o quão gostaria de me dar uma surra ali e se conteve, sendo obrigado a concordar.
— Padre, como o senhor sabe, meu pai tem tido um grande crescimento nas empresas dele, e agora vai abrir a vinícola — Apertou a bolsa com os dedos enluvados.
— Sim, seu pai é um homem abençoado por Deus, fico muito surpreso o quanto ele tem crescido financeiramente — retrucou, sorrindo.
— Não padre, esse é o problema... não é Deus que o abençoa, ele não está prosperando de maneira pura... é o diabo que está lhe dando tudo isso — Revelou, exprimindo os lábios.
Neste momento, quase cai para trás.
Os olhos do padre quase saltaram para fora.
— Santa Maria mãe de Deus! — Foi tudo que conseguiu expressar.
— Em Março, ele estava quase falindo, mesmo que ninguém soubesse, os negócios na fábrica não estavam mais dando lucro quanto antes, foi aí que tudo começou, ele fez um pacto com o diabo, eu descobri há poucos dias — Começou, constrangida.
— Encontrei o Cramunhão a qual ele pediu, desde então, ele voltou a crescer, dinheiro não para de surgir e com isso pôde comprar a vinícola, mas isso tudo terá um preço, ele vai querer algo em troca e temo pelo que será — Explicou Isadora, perdida nas próprias suposições.
— O diabo é enganoso filha, ele dá e depois toma, seu pai está condenado... eu não sei como isso pode ser desfeito, toda essa ambição o levou a pôr tudo nas mãos do maligno... oh céus! — Passou a mão pelos cabelos já grisalhos.
— Eu e minha mãe não sabíamos disso, nós estamos desesperadas e não sabemos a quem pedir ajuda, somente o senhor pode nos ajudar a desfazer isso padre...
— Isso não pode ser desfeito filha! Um pacto com Satanás somente quem quebra é o próprio Deus, seu pai está perdido, não posso prometer que consiga fazer muito para ajudar — Interrompeu-a, elevando as mãos para o céu em referência.
— Se o senhor não puder, contate o Vaticano, eles poderão fazer algo... por favor padre — Suplicou, a voz embargada, atordoada.
O Vaticano. Há muito tempo tinha escutados coisas sobre o famoso centro da igreja católica.
Cícero balançou a cabeça negativamente, perdido.
— Farei o possível filha, enquanto isso, se proteja de todas as formas que puder, pois o diabo é astuto — Aconselhou, tocando a cabeça da moça antes de sair.
Os boatos eram verdadeiros pela primeira vez, Antônio Vilar realmente tinha feito um pacto com o diabo para conseguir tanta fortuna em tão pouco tempo, além do que já possuía.
O estranho foi ter conseguido a façanha de esconder das pessoas de Água Azul que a sua fábrica estava quebrando, admirável.
— Satisfeito? — A voz chorosa quebrou meus pensamentos, enquanto eu ainda tentava digerir aquilo.
— O que? — Dirigi meu olhar a ela.
Isadora se aproximou, quase me encurralando na parede. Aqueles olhos inebriantes encontraram os meus feito duas adagas envenenadas.
— Agora não precisa escutar mais nada escondido feito um rato por aí — Sua voz se tornou um chiado até sumir diante do meu rosto. Ela estava me comparando a um rato e me chamando de futriqueiro?
— Está supondo que eu sou bisbilhoteiro com que prova? — indaguei, me negando a aceitar tal ofensa.
Ela deu me volta e se aproximou de novo, abaixou-se e tocou meu joelho devagar por cima da saia do hábito. Senti meu corpo se arrepiar por inteiro.
— Isso diz ao contrário — Puxou o tecido, mostrando um rasgo que o prego causou.
Mal consegui me mexer quando ela se levantou e me encarou diretamente.
— Eu brincava nessa escada quando era criança, seja mais discreto da próxima vez — Proferiu contra meu rosto quente.
— Você é tão amador — falou, ajeitando o chapéu lilás com um sorrisinho de canto. Mal sabia o que significava aquilo.
Quando Isadora saiu na direção contrária, sem olhar para trás, soltei o ar que prendia sem perceber.
— Roberto! — Gritou ele, me cutucando, fui forçado a sair dos devaneios.
— Cadê a senhorita Vilar? — Procurou ao redor.
— Bem longe daqui, graças a Deus — murmurei, saindo dali a passos rápidos.
— Não é adequado um rapaz da sua idade ficar sozinho com uma moça — Começou o sermão.
— Estávamos indo procura-lo — Menti, e continue andando rumo à escada do confessionário.
— Você já é um homem Roberto, precisa tomar cuidado com as suas atitudes, precisa vigiar...
O mesmo sermão de sempre.
— Sou um devoto fiel padre, jamais pensaria em uma mulher com outros olhos — Sentei em minha cama, mal sabendo o que dizer.
— Você é um bom rapaz Beto, apenas não se deixa levar pelo mal, não há nada demais em admirar uma moça bonita, porém... deve ter muito cuidado com a malícia — Deu dois tapinhas no meu ombro e se retirou.
Do ponto de vista masculino, Cícero havia me explicado pouquíssimas coisas sobre como um homem e uma mulher se relacionavam, eu apenas sabia que o toque levava ao pecado, tudo que passasse de um aperto de mãos e que um rapaz deveria evitar ficar sozinho com uma moça.
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