O despertar
Após rezarmos, retornamos à igreja, quase no fim da tarde. Fui direto para o quarto e tomei um banho, precisava dormir para esquecer aquele dia.
Será que Tadeu imaginava o que tinha acontecido horas antes? Quando haviam noivado?
Por que ela não mencionou ele? Será que sabia da situação dela?
Aquelas perguntas já estavam me consumindo por dentro.
Mal fui capaz de dormir, então coloquei o pijama e decidi dar uma volta no jardim lá embaixo, aproveitando que o calor já não era tanto.
Fiquei até pouco antes do sol raiar, apesar da falta de sono, meu corpo precisava de descanso, então retornei e me deitei, esperando dar o horário para
descer e ir rezar, depois abrir a igreja.
Enquanto eu arrumava a mesa para as próximas missas sozinho e com o barulho da minha mente causando turbulências, pensava em como seria a vida de Isadora longe daquela camada de sarcasmo e cinismo.
Senti que está a sendo observado, me virei e dei de cara com aquela criatura de 1,57 com um vestido rendado azul-céu, entrando por aquele longo corredor com o nariz empinado e vindo até mim.
— Aonde está o padre? — Olhou ao redor à procura dele.
Sentei na cadeira próxima à mesa e segui organizando as velas.
— Não acordou ainda — murmurei, indiferente.
Dorinha examinou cada centímetro do meu rosto com os olhos e torceu o nariz quase imperceptivelmente.
— Está comendo bem? Parece um pouco anêmico — Perguntou Isadora.
— Não, estou numa dieta especial — falei.
— Que dieta? — indagou, curiosa.
— Estou comendo o pão que o diabo amassou! E o diabo é você! — Respondi sem paciência.
Logo cedo essa filha de Satanás vem me provocar!
Isadora ergueu as sobrancelhas, um sorrisinho querendo tomar o rosto.
— Depois me diga se o pão está bom — Inclinou-se sutilmente, colocando a mão esquerda sobre a mesa de madeira antiga.
A encarei, sem saber como reagir diante do seu descaramento.
Após um longo silêncio, apenas nos encarando, um dos dois teve que ceder naquela guerra tola e constrangedora de quem falaria primeira.
Pensei no que havia dito no dia anterior, no quanto fui tolo e grosseiro, acabei fazendo por impulso e a ofendi.
Oscilei entre um pedido de desculpas e me afastar, evitando outra discussão.
Ela também deveria me pedir desculpas, mesmo que seu orgulho falasse mais alto.
— Desculpa — Falamos em uníssono, causando eco com nossas vozes. Foi uma surpresa não só para mim, mas também para ela.
— Não quis te ofender ontem — disse, sendo sincero em cada letra.
Isadora mexia na vela sobre a mesa, pensando em algo.
— Eu estava cega de raiva — Começou, ainda hesitando se podia continuar.
— Eu não contei nada a ninguém — disse, olhando nos seus olhos da cor da terra.
— Eu sei, descobri quem contou...
— O padre — dissemos outra vez juntos.
Eu estava quase tão boquiaberto quando ela. Não esperava que Cícero fosse capaz disso.
— Eu não faria nada deste tipo, detesto falsos rumores — disse, indo rumo à cozinha e chamando-a para me acompanhar.
— Por que? Todos nesta cidade... você sabe, gostam de fuxico — Ajustou as bordas das luvas.
— Meus pais não puderam me criar, então quando o padre me adotou, inventaram que minha mãe era uma mulher adúltera que foi viver num prostíbulo e me teve com um amante, por isso não pôde me criar — Revelei, sentindo algo prender na garganta a cada palavra.
— Você os conheceu? Sabe quem são? — indagou, seu rosto se transformou conforme contei.
— Não, não exatamente, eu os vi uma vez aos dez anos, mas desde então, nunca mais os vi — retruquei, abrindo o cadeado da porta ao tira-lo do bolso da batina.
Dei espaço a ela que entrasse na frente.
— Você e Tadeu...
Ela me encarou, apoiando na prateleira onde estavam os pães pré-prontos que o padre e eu iríamos pôr no forno.
— Veio aqui para pedir ao padre que marque o casamento na igreja, não foi?
— Fui vasculhar o armário, pois não tive coragem de perguntar olhando nos seus olhos.
— Também — respondeu, quase num sussurro.
Por algum motivo, aquilo me embrulhou o estômago.
— Por que vai se casar com ele? — A pergunta saiu quase automaticamente.
— Porque todas as pessoas se casam... tenho vinte anos, estou na idade de casar e ter uma família — Sua resposta saiu sem muito ânimo.
— Meu pai quer alguém que possa ser seu braço direito quando abrir a vinícola, obviamente uma mulher com um cérebro e alfabetizada não serve para desempenhar este papel tão bem quanto um homem inteiramente igual a ela — Soltou um sorrisinho irônico.
— Estamos em mil novecentos e trinta e sete, ou na era medieval? Se eu tivesse um gato preto, iam me chamar de bruxa — Revirou os olhos.
Dei risada.
— Adoro seu senso de humor — disse, enquanto procurava um pote no armário.
Só por isso ela se casaria com ele?
Porque o pai queria pôr alguém para ajudá-la a administrar mais um cerne da sua ganância sem limites?
Quanto egoísmo.
— Sua família é egoísta — murmurei,
com receio de que ficasse mal.
— Mas... eu não tenho outra escolha, me tornarei professora e ficarei solteira ou estou fadada a um casamento na onde não me interesso nenhum pouco pelo...
Ela reteve as palavras antes que me deixasse escutar algo que seria comprometedor de algum modo.
Derrubei o pote acidentalmente pelo impacto daquela informação.
A farinha se espalhou por todo o piso e também pela minha roupa e rosto, me causando espirros.
Isadora veio até mim, na intenção de recolher e colocar novamente no pote.
— Ah não! Cícero vai me matar se ver isto! — Já comecei a imaginar o quanto ele reclamaria.
Ela riu, se inclinando para mais perto e erguendo a mão. A doçura de sua risada me fez esquecer da realidade por segundos.
— Eu digo que fui eu — Deu um sorrisinho.
— Aí que ele me mata mesmo! Não posso trazer ninguém aqui, se eles no visse agora, com certeza me daria tantas penitências que meus joelhos grudariam no piso da igreja de tanto rezar — Tentei não entrar em desespero só de imaginar.
Dorinha caiu na gargalhada. Não era
engraçado, era apavorante.
— Você é tão dramático Roberto — disse entre risadas, assoprando a farinha dos meus olhos.
— Ele é tão rígido com você — Mudou drasticamente, ficando séria. Tocando meu rosto para limpar da farinha.
— Talvez, mas ele quer o meu bem, diz as coisas porque não sei de nada — Segurei o espirro que queria sair, enquanto ela dava batidinhas nas minhas bochechas para tirar.
— O dono do passarinho também diz isso quando o coloca numa gaiola, "ele não sabe voar'' — Sua palma direita deslizou sobre minha bochecha deliberadamente, até chegar no queixo.
Estremeci por dentro, quase deixando Isadora perceber como eu tremia sob um simples toque seu.
— Ele é minha única família, preciso respeitá-lo — sibilei, sem perceber o quão perto estávamos.
— Você não o respeita, tem medo dele — sussurrou, tão perto que pude sentir seu hálito atingir meus lábios. Seu dedão pousou meu lábio inferior numa carícia lenta.
Fechei os olhos, desejando sufocar os pensamentos que vinham.
— Não seja ingênuo, a vida é muito mais do que isso — Suspirou profundamente, quase encostando o nariz no meu.
Senti o corpo queimar como se tivesse sido engolido por brasas.
— Do está falando? — Minha respiração oscilava e eu não queria deixá-la perceber.
Ela retirou o dedo do meu lábio e pôs a palma sobre meu peito, se não fosse a roupa, poderia sentir meu coração quase arrebentando o peito.
Isa poderia facilmente tirar alguém de si, apenas utilizando seus olhos inebriantes como arma.
— Tem uma venda nos seus olhos, liberte-se dela — Respondeu baixinho, quando seus olhos encontraram os meus novamente.
Coloquei minha mão sobre a sua no meu peito, sentindo que entraria em colapso a qualquer momento.
— Não faça isso... não me faça entrar em guerra comigo mesmo de novo — Pedi, ofegante.
Queria me afastar, porém também queria sentir aquilo. Uma excitação inexplicável no estômago.
— Algo está despertando aqui dentro e você não quer admitir Roberto, mas eu não quero ser a culpada por não saber lidar com seus próprios sentimentos — Afastou-se, me deixando com o vazio do seu calor.
Ela se levantou e tirou as luvas brancas de renda.
— Preciso falar com o padre, volto mais tarde — Se despediu, deixando o peso daquela conversa entre nós ficou comigo após sair.
Ter que lidar com aquilo sozinho era injusto, ela quem tinha plantado aquele tipo de coisa em mim.
Não iria aceitar que me fizesse questionar tanto, me questionar sobre meus sentimentos, sobre minha vida e até à maneira que havia sido criado.
Ela não tinha esse direito, de bagunçar tudo, ainda mais estando noiva de outro.
Algo está despertando.
Quanta presunção em acreditar que sabia do meus sentimentos e que envolviam ela.
Talvez... talvez envolvessem.
Sai correndo atrás dela, querendo discutir aquilo, porém não consegui alcançá-la.
Não esqueça de votar! Até o próximo cap!
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