A verdade
ATENÇÃO! ESTE CAPÍTULO CONTÉM CONTEÚDO QUE PODE SER GATILHO (ABUSO) PREZE PELA SUA SAÚDE MENTAL.
Celina tentava fazer a filha comer, nem que fosse um mísero grão, pois a desnutrição iria leva-la à morte em breve se não se alimentasse, enquanto nós tomamos um banho e nos trocamos na casa deles.
Ele ofereceu sua cama para que eu dormisse um pouco, antes da próxima sessão (que eu não sabia quando se manifestaria).
O escutei conversando com alguém quando passei da sala até à cozinha, a porta estava entreaberta e pude ver quem era de relance.
— Ana, seu pai já me disse que não quer vê-la perto de mim — O desconforto era nítido em sua voz.
— Esqueça o que meu pai quer, me diga o que você quer — Enfatizou, sem paciência para declínios.
— Fique longe de mim! Por favor, estou implorando! — Alterou o tom, porém se arrependeu só ver que tinha sido grosseiro.
— Por que você me trata assim? O que eu fiz? Só quero entender Miguel! — Persistiu, a voz oscilante.
— Eu já causei muitos problemas, eu sou um problema — disse em voz baixa, sutilmente melancólico.
Ela tirou a sombrinha de renda e babados do punho e a fechou, colocando ao lado dos próprios saltos brancos de fivela sobre o asfalto.
— Por causa do seu jeito? Do seu cabelo ou da maneira de viver diferente dos outros? — indagou, citando com meticulosamente cada razão.
— Meu cabelo grande é uma camuflagem — murmurou, evitando olhá-la diretamente nos olhos.
— Como assim? É verdade o que ouvi dizer? — Perguntou, hesitante por tocar no assunto delicado.
Ele assentiu com a cabeça.
— Mas não... que coisa absurda, inaceitável — Levou as mãos até a boca, horrorizada com o que tinha acabado de descobrir.
— Por que fizeram isso contigo? — balbuciou, os olhos quase saltando de tão arregalados.
— Porque meu pai pensou que eu fosse louco, quando comecei a... ter sonhos, com coisas que aparentemente “não vinham de Deus” — Fez aspas com o dedos no ar, pegando um cigarro em seguida, como se fosse um alívio momentâneo para amenizar o peso das suas lembranças amargas.
— O que faziam lá? — Deslizou um pouco os dedos para o queixo.
— Tratamento de choque... não foi o pior, mas é o que sempre vou lembrar — Revelou, dando um sorriso vazio em seguida.
— Pensei que esse tipo de coisa fosse apenas boato, não acreditei realmente que essa crueldade fosse capaz de ser real — retrucou ela, quase pálida de tão chocada.
— Eu também pensei que o inferno não existia, até vivê-lo na própria pele — exprimiu, tragando o cigarro após mexer coçar o nariz com uma curva grega sutil, diferente de sua irmã.
— Se isso não era o pior, o que era? O que faziam? — As palavras fugiram de sua boca e só depois ela percebeu a profundidade daquela pergunta.
— Me perdoe — pediu, envergonhada por tal insensibilidade. Os olhos azuis não a culparam.
— Tudo bem Ana, não foi você quem me torturou — Deu um sorriso fraco, esfregando o nariz novamente.
— Depois de tanta descarga elétrica no seu corpo, você acaba ficando fraco demais, às vezes eu desmaiava e perdia a consciência, então não sabia o que acontecia ao redor — Explicou, afastando o cigarro dos lábios.
— E das outras vezes, me conte Tuca, a verdade — pediu, pegando na mão dele.
— Eles tentaram me lobotomizar, eu resisti, bati no carniceiro médico, então fui levado para ser castigado — Lágrimas começaram a rolar por sua pele alva.
— Me forçaram a fazer coisas que não consigo dizer, um dos homens que nos levavam até os quartos, foi assim que consegui essa cicatriz — Soltou sua mão e abaixou a calça, mostrando parte da entrada de sua região pélvica a ela.
Ana ficou boquiaberta, incapaz de dizer algo que pudesse expressar seu horror.
— Você nunca foi para Alemanha, sempre esteve aqui... sendo torturado... nunca disse a ninguém? — Moveu os olhos, tentando encontrar maneiras de digerir aquilo.
— Talvez a loucura fosse hereditária, a bisavó do meu pai foi internada em Barbacena também e segundo o médico que ele procurou, eu poderia ter herdado, coincidência não?— Acrescentou, dando de ombros ironicamente.
— Ele não cogitou que talvez ele poderia ter herdado? Pois só assim para justificar tamanha atrocidade contigo... isso foi desumano — Se aproximou, tentando oferecer conforto com um olhar acolhedor.
— Eu não me deitei com sua prima, na verdade, não permiti ninguém me tocar ou chegar perto, a única pessoa quem tive contato foi a minha irmã e Beto — Confessou, cabisbaixo.
Ele tinha confiado em mim àquele ponto, tinha me dado um abraço, algo que significava vencer suas próprias barreiras. Enfrentado o diabo dos seus pesadelos reais.
— Por que não me disse a verdade? Me deixou acreditar que... ah! Eu sinto muito, o culpei injustamente! — Tentou se aproximar, no entanto hesitou, contendo os impulsos por lembrar do que ele havia contado.
Tuca abaixou a cabeça, balanço em negação e fazendo os cabelos caírem sobre o rosto, o cobrindo, como se estivesse envergonhado.
— Tive vergonha, me sentir impotente, talvez mentindo, eu poderia ser mais que apenas um esquisito, um louco de quem as mulheres passariam longe, já sou motivo de zombaria o bastante — Ergueu por segundos o rosto, espremendo os lábios entre si, enquanto olhava para o lado e as lágrimas não paravam.
— Você foi forçado a fazer coisas que não queria, não deveria se sentir culpado ou envergonhado por terem te machucado... eu... — Mal conseguiu expressar algo além de um suspiro profundo de pena e uma dose de culpa.
— Pedi a ela que mentisse, sabia que chegaria até você e assim, talvez conseguisse te manter longe, quando eu disse que não merecia você, era por isso — declarou, secando o rosto e tragando o cigarro outra vez.
Filomena havia mentido para manter a reputação e o tabu de que um homem tem que ser apenas como o mundo impõe, um corpo sujeitado a satisfazer caprichos. Nem era capaz de imaginar o quão profunda era a ferida dele.
— Miguel, meu amor por você vai muito além de uma mera relação sexual, eu estou aqui, podia e ainda pode confiar em mim — Se aproximou cautelosamente.
— Irão falar de você, Água Azul inteira Ana, não vou permitir que te difamarem, não posso lidar com isso, não quando Isa está nesta situação — Balançou a cabeça sutilmente, espalhando os fios negros que escorriam feito fios de seda.
— Não me importo, esses futriqueiros são insignificantes, me importo com nós, entenda de uma vez por todas, eu me importo com ti — Apontou-lhe com o indicador.
— Sua irmã tem os cabelos brancos, ela parece um anjo... os dois, na verdade... não merecem passar por isso, seu pai é um cretino que destruiu a vida de vocês — disse, com um sorriso acalentador.
— Quando ela nasceu, os médicos disseram que poderia ser alguma doença rara, não sabemos até hoje, mas não é uma doença, ela tem a saúde perfeita... ou tinha — rebateu, entre soluços.
— Ela vai conseguir Miguel... você também — Assegurou de maneira carinhosa, seus olhos demonstravam que realmente acreditava nele.
De repente ele olhou de soslaio, senti que alguém me observava também, me virei e não vi ninguém.
Após ambos terminarem aquela conversa complexa, saí para tomar um pouco de ar puro, caminhei um pouco até o outro lado da rua.
Fui surpreendido por um cutucão no ombro direito que quase atingiu meu osso de tão forte.
— Estou aqui Roberto, não me viu? — A voz aguda de Filomena me fez quase pular.
— Imagine Filomena, você tem a delicadeza de um elefante — Respondi, sem a menor paciência.
— Já sabe da notícia? Água Azul não fala sobre outra coisa — Empinou o queixo, com alguma pretensão por trás para me contar tal notícia.
— E você não podia perder a chance de vir até aqui espalhar fuxico né — Revirei os olhos, bocejando graças ao sono acumulado.
— Achei que gostaria de saber que o seu sogro se matou ontem, se enforcou para ser mais exata — Contou, um sorriso de satisfação grotesco surgiu nos seus lábios.
Perdi o grão de instabilidade que já tinha. Como eu diria isso a Isa? A Miguel? Se ele já não soubesse...
— Tentei encontrar Miguel para contar, mas não o vi...
Segurei seu braço com firmeza, sem apertar.
— Não se atreva a fazer isso, sua cobra venenosa! — As palavras saíram feito um raio da minha boca quando me dei conta.
— Por que? A sua querida Isadora está nesta situação por causa dele, não acha que ficariam felizes e aliviados em saber...
De repente alguém lhe acertou um tapa bruscamente, me fazendo afastar para não ser atingido.
— Sua rameira! Imoral! Se abrir essa boca imunda outra vez, eu mesma vou fazer questão de dar um jeito em você! — Era Anastácia, furiosa.
Filomena mostrou os dentes, recebendo um olhar da prima que até o diabo teria medo.
— Eu, imoral? Deveria me agradecer por ter mentido pelo seu namorado! — Vociferou, arrumando os fios pretos espalhados por seu rosto sardento, bem menos que o da prima.
— Agradecer? Está perturbando Roberto e quer contar algo que não te diz respeito só para machucar Isadora, você não tem esse direito! — Esbravejou com desprezo frio a ela.
Peguei Ana pelo braço, na intenção de impedir que a briga ficasse pior em poucos segundos.
— Não vou bater nela Beto, pode me soltar, não sou tão baixa quanto essa cobra venenosa, fique longe de mim e deles, é a única vez que vou avisar — Avisou, quase engasgando nas próprias palavras.
— Ainda vai se arrepender de tê-la escolhido Roberto! Tomara que seja excomungado! Vou dizer a todos que o padre é um tremendo mentiroso que se deitou com uma mulher comprometida! — Disparou, balançando as mãos para o alto, querendo atrair atenção de quem passava.
O escândalo já tinha atraído atenção de alguns.
— Fique à vontade — Abri espaço para ela passar e ir livre fazer o que pretendia.
A ira tomou seus olhos quando me encarou, antes de dar as contas e sair andando a passos bruscos.
— Sinto muito por isso Ana — Me desculpei, genuinamente.
— Não foi sua culpa padre, já está lidando com tanta coisa, tentando ajudar a família Vilar, e essa víbora se atreve a ofendê-lo a afrontar — Xingou a prima, observando-a sumir de nossas vistas.
Suspirei, exausto.
— Se precisar se alimentar ou de algo, peça ao Miguel, ficarei feliz em ajudá-los — Ofereceu gentilmente. Havia bondade naqueles olhos cor de cobre.
— É claro — Assenti, ela se despediu e se foi.
Quando pensei que teria segundos de sossego naqueles dias conturbados para recuperar parte das forças (pelo menos físicas) tive outra surpresa, ou melhor... outra emoção para fazer meu coração desestabilizar novamente.
— Roberto, preciso que veja isso, encontrei nas coisas da sua mãe, eu vou sair para resolver alguns problemas e já retorno — Cícero estendeu um bolo de papéis, os peguei e sentei no banco da praça para analisar.
— A sua mãe não... é melhor que leia por si só, veja — Apontou o emaranhado de arquivos.
Nem precisou dizer muito, seu rosto já me dizia tudo.
Peguei os papéis em mãos. Preparado para o pior. Nada mais podia ser bom àquela altura. Contar com a sorte e misericórdia do destino era tolice.
— Acha que ela gostaria da Dorinha? — indaguei, imaginando como seria a relação das duas.
Ele parou e soltou um suspiro reflexivo.
— Desde a primeira vez que você a viu, eu já sabia de vocês dois — respondeu.
— Sabia... como? — exprimi, mexendo na correntinha dela que havia ficado no bolso da calça.
Ela parecia tão longe... perdida.
— Os olhos, eles nunca mentem, eu vi a maneira como você pôs os seus sobre ela, fascinado — Esboçou o que parecia um sorriso.
— Sua mãe apoiaria a sua felicidade, tenho certeza de que a alma dela está feliz por ter encontrado seu amor, embora tudo esteja difícil agora — disse, soltando uma lufada de ar profundamente e saiu.
Quando retornou após uma demora incomum dele, não quis falar comigo, apenas seguiu ao quarto em um silêncio esquisito.
Oii galera, como estão? Espero que bem! Espero que estejam gostando da leitura, vem muita coisa tensa por aí ainda, preparados? 👀
Na mídia tem como eu imagino a Celina❤️
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