6 - Prata líquida
— Isso não é justo — Alana contra-argumentou, indignada.
Sentado à mesa de seu escritório improvisado, o dono do pub a olhou de cima a baixo.
— Justiça seria eu descontar do seu último pagamento o que aqueles caras não pagaram. Sabia que eles foram embora sem pagar a conta?
— São uns idiotas.
— E o idiota aqui vai ter que ficar com o prejuízo — bufou. — Não vou voltar atrás. Não quero meus funcionários no meio de confusão com clientes. Está demitida, Alana. Passe aqui amanhã para acertar o que falta do seu salário.
Alana inspirou fundo, um tremor atravessando sua garganta. Ajeitou os ombros. A última coisa que queria era chorar diante de um homem estúpido como o seu chefe.
Resignada, apanhou sua bolsa, virou sem se despedir e deixou o escritório, atravessando o pub com passos rápidos. Não olhou para nenhum colega, para nenhum cliente. Não queria piedade. Não queria cochichos.
Aquilo não era justo.
Mas o que era justo na vida?
Só tinha que ver o que faria agora com a dívida da maldita clínica de reabilitação. De jeito nenhum deixaria sua irmã sem tratamento.
Talvez Pablo e Renato conhecessem algum lugar que estava contratando gente sem experiência. Mas o trabalho teria que ser no período noturno. Não queria trancar nenhuma matéria, tampouco abandonar o estágio.
Você encontrará uma solução. Você encontrará uma solução.
Enquanto deixava o pub, olhou para o braço que ardia. Esperava que a queimadura não fizesse bolhas. E aquele maldito que tentara tocá-la havia piorado sua dor ao segurá-la com força. Teria o socado bem no meio da cara se Alex não houvesse se colocado no meio.
Alex...
A forma como ele se levantara da mesa, seu andar imponente, a força demonstrada ao segurar a mão daquele sujeito bêbado... Alana soltou o ar. Ela jamais imaginara ver seu ex-professor e atual orientador em uma situação como aquela.
Por ela.
Alana agitou a cabeça, a pele ligeiramente vibrante.
E então, sob o beijo da brisa fresca da noite, todo o corpo dela retesou ao ver Alex encostado em carro luxuoso, mantendo os braços cruzados, o olhar vagando no movimento da rua.
— Professor Alex... — ela balbuciou, a velocidade dos passos diminuindo, a pulsação acelerando.
Ele virou o rosto em sua direção quando percebeu sua presença.
Alana não sabia o que deveria dizer ou sentir; não sabia nem porque ele estava ali; mas sentia alguma fagulha de esperança querendo fazer seu coração bater mais rápido.
— O quê...
— Queria ver como você estava, Alana.
— Você ficou me esperando?
Alex assentiu. Com os braços cruzados, o olhar se demorando nela, Alana o achou muito diferente da imagem do professor universitário que tinha consigo. Os músculos dele se contraíam embaixo da camisa social, harmonizando as feições marcantes, os ombros largos, a altura.
— O que seu chefe falou para você?
— Ele me demitiu — disse conformada, assoprando uma mecha castanha que caía sobre seus olhos.
— Que filho da puta.
Alana encolheu os ombros.
— Já estou acostumada. Não se preocupe. Darei um jeito. E... — Ela soltou a respiração que não percebia que prendia, magnetizada pelo olhar dele. — Obrigada por ter me defendido lá dentro.
— Você sempre tem que lidar com babacas assim?
— Ossos do ofício.
Algo lampejou pelo rosto de Alex, algo que a fez se arrepiar.
— Como você vai voltar para sua casa?
— Tem um ponto de ônibus na outra rua.
— Nem pensar. Eu te levo até sua casa.
Alana o fitou; ali, sob as luzes noturnas, os olhos claros dele pareciam prata líquida, tomados por uma ferocidade silenciosa, domada pelo porte elegante das roupas caras.
— Venha. Eu te dou uma carona — Alex ofereceu outra vez, abrindo a porta do carro para ela; um gesto tão gentil que fez Alana se perguntar quando tinha sido a última vez que alguém a tratara com gentileza genuína.
E ela estava tão cansada...
— Tá bom. Obrigada.
Entrou no Tesla e, ao se sentar no banco confortável, inspirou fundo e soltou o ar demoradamente.
— O que foi? — Alex perguntou, uma nota de preocupação na voz.
Ela lhe deu um sorriso cansado.
— Eu adoro cheiro de carro novo.
*******************
— Professor Alex, esse não é o caminho que eu te falei.
— Eu sei.
Alex manobrou o carro, parando no estacionamento de uma farmácia. Alana observou saltar do Tesla e atravessar as portas de vidro automáticas; em poucos minutos, estava de volta com uma pequena sacola em mãos.
— Aquele sujeito te machucou quando você me defendeu? — Alana perguntou, o sangue bombeando em preocupação.
— Isso não é para mim. É para você. Estenda o braço.
Ela ergueu o rosto, fitando-o sob a meia luz.
— Não precisava, é sério...
— O braço, Alana.
O tom imperativo da voz dele fez um arrepio lento subir pela espinha dela.
Quase como se movesse em câmera lenta, Alana estendeu o braço queimado. Alex apanhou a pomada para queimadura e passou a pasta sobre sua pele, em uma quietude absoluta e concentrada.
Os cantos da boca dela permaneciam contraídos, observando-o em silêncio. Os cabelos de Alex estavam bagunçados por conta do vento que entrava pela janela do carro, formigando involuntariamente pelas mãos dela uma vontade de tocá-los.
Os dedos dele espalharam a pasta refrescante por sua pele, deixando um dissonante rastro quente por onde passavam. Sua respiração pesou, assim como a de Alex.
— Está melhor?
— Sim — ela sussurrou muito baixo. — Obrigada.
— Fique com a pomada, caso volte a arder.
— Obrigada.
Merda; aquela parecia ser a única palavra que seu cérebro confuso conseguia encontrar no emaranhado da mente. E ela não era assim.
Em silêncio, Alex voltou a colocar as mãos no volante e deu partida. Não trocaram mais nenhuma palavra até que estivessem em frente ao conjunto de quitinetes onde ela morava.
Ele desligou o motor, mas nenhum dos dois se mexeu.
— Tem certeza de que não precisa de mais nada? — Alex perguntou após um longo momento.
— Você já fez muito, professor Alex. — Ela lhe deu um sorriso fraco. — E tudo o que você queria era só tomar uma cerveja gelada.
— É que estou preocupado por você ter perdido o emprego.
— Eu arranjo outro.
— Você precisa tanto assim de mais um emprego? Já não fica corrido demais com a faculdade, nosso artigo e o estágio?
Alana soltou o ar. Céus, como estava cansada.
— Eu uso o dinheiro do estágio para pagar o aluguel e minhas contas. Daí não sobra quase nada. Por isso preciso trabalhar mais um turno. Uso uma parte do salário para ajudar meus pais. Eles não moram aqui em Belo Horizonte, e sim em Ibirité. Meu pai é aposentado, mas recebe uma mixaria. E desde que teve trombose, não consegue mais trabalhar. O plano de saúde é uma fortuna. Minha mãe faz pães para vender e complementar a renda. Daí me sinto no dever de ajudá-los com o que eu puder.
Os lábios de Alex se entreabriram, os olhos claros ainda mais pratas ao luar, e ela se perguntou o que estava passando na mente do seu professor naquele exato momento.
— Você disse que dá uma parte do pagamento para seus pais. E a outra parte?
Alana entrelaçou os dedos da mão. Não comentava sobre aquilo com ninguém. Mas a noite já havia sido tão estranha, tão diferente.
— É para pagar a clínica de reabilitação da minha irmã mais velha.
Percebeu que Alex prendera a respiração.
— Ela é dependente química?
— Sim. O quadro é grave. A internação está ajudando, só que a clínica não é das mais baratas. Mas darei um jeito. Sempre dou um jeito. Principalmente por Sandra. — Alana puxou o ar, batendo as mãos nas coxas. Era hora de sacudir a poeira e parar de lamuriar. — Mais uma vez, obrigada pela carona e por todo resto, professor Alex. Não vou ocupar mais o seu tempo. Ah, e também não vou te convidar para subir. Algo me diz que é assim que as garotas caem na sua armadilha.
Alex ergueu as mãos em um gesto de rendição, não segurando o riso travesso. Alana sorriu, percebendo que o riso dele havia sido a única coisa verdadeiramente boa do seu dia estressante.
— Boa noite, professor Alex — ela disse, abrindo a porta do carro.
— Pode me chamar só de Alex. Se você ficar toda hora me chamando com tanta formalidade, vou me sentir como...
— O dinossauro do professor Orlando? — Alana sugeriu, arqueando as sobrancelhas. — Sério, quantos anos ele tem? Cento e nove?
Alex jogou a cabeça para trás, rindo baixo.
— Provavelmente.
— Certo. — Ela se viu sorrindo de novo. Um sorriso natural, não forçado. — Boa noite, Alex.
— Boa noite, Alana.
Com um aceno de despedida, ela apanhou a sacola com a pomada e desceu do carro. Apesar das merdas daquele dia, seu coração estava estranhamente leve. Caminhou para o portão de entrada do conjunto de quitinetes e, enquanto sacava as chaves do meio da bagunça da bolsa, arriscou um olhar por cima do ombro.
Alex ainda estava lá. Esperando que ela entrasse. Nem ligara o carro.
Seu coração esquentou.
Que gentil.
Aquele Alex era bem diferente do sério professor de Engenharia da Computação que, mesmo com trinta e poucos anos, já conquistara tanta coisa em sua carreira universitária.
Alana acenou mais uma vez. Ele acenou de volta.
E, virando-se, ela abriu o portão e atravessou a portaria. Quando entrou em sua quitinete, ainda sentia aquela quentura silenciosa formigando toda sua pele.
********************
Depois que Alana atravessou a portaria, imersa no manto da noite, Alex ficou ainda mais quinze minutos encarando o conjunto de quitinetes.
Que noite peculiar.
Fora atrás de uma cerveja para esfriar a cabeça dos problemas universitários e da ideia idiota que seu irmão lhe dera de forjar um relacionamento falso ou achar uma "esposa de fachada", e se deparara com sua orientanda em uma situação muito mais problemática que qualquer uma das suas questões. Uma situação que ela tentava lidar com o máximo de maestria possível para alguém com apenas vinte e três anos.
Talvez fosse seu destino tê-la colidindo com ele sempre como um furacão, como acontecera meses atrás.
Ele se lembrava daquele dia.
Era um domingo calmo e tranquilo. Tinha planejado passar o dia sossegado; inclusive recusara um convite de um churrasco. E então, seu interfone tocara. Estranhou, pois não estava esperando ninguém, tampouco nenhuma entrega.
Quando o interfone tocou outra vez, ele o atendera.
Ainda podia ouvir as notas cálidas da voz dela.
"Professor Alex?", a moça perguntara pelo interfone.
"Sim, sou eu. Quem está aí?", ele indagou de volta, orando para que não fosse nenhuma garota com quem tivesse saído. Sempre deixava claro que não queria nenhum relacionamento sério.
"Alana. Alana Ramos. Sei que hoje é domingo, mas... Não sei se você vai se lembrar de mim, mas fui sua aluna no semestre passado, na matéria de jornalismo e tecnologia. E... Bom, preciso da sua ajuda. É urgente. Na verdade, é uma questão de vida ou morte".
Sozinho no carro, ele exprimiu um riso baixo, lembrando-se da forma como ela o abordara.
Alana sempre fora espontânea, exagerada e impulsiva; eram características que, às vezes, viravam defeitos em outras pessoas, mas nela, apenas nela, eram como uma marca eterna feita com fogo, detalhes esculpidos em pedras, que aumentavam seu brilho.
E, tudo bem; uma amiga dela estava com problemas com um dispositivo de vigilância. Alana tentara desativá-lo na época e, como não conseguira, fora até ele. Alex não negava que havia se surpreendido com o fato de uma simples aluna de jornalismo ser tão boa com tecnologia.
"Não era um dos pontos da sua tese?", ela ainda tivera a ousadia de argumentar. "Instruir jovens jornalistas na área tecnológica, para aprimorar a precisão do trabalho? Para evitar cair em armadilhas, como a dos olhos-espiões? Pois estamos a cada dia mais sendo vigiados, e jornalistas que caçam a verdade são alvos fáceis?".
No fim, tudo dera certo. E conseguira ajudar a ela e à amiga.
Assim, achou que seu caminho e o da ex-aluna se separariam outra vez, como acontecia no ciclo de vida universitário.
Mas então veio aquela vontade, aquele desejo de explorar os conhecimentos latentes de uma aluna prodígio. E ele fizera o convite que jamais havia feito para nenhum outro aluno.
Carta de recomendação para estágio, orientação e escrita de um artigo em coautoria.
Alana aceitara o convite e o não o decepcionara. Tudo o que ela fazia era excepcional e cuidadoso. Era injusto que uma moça tão brilhante estivesse carregando tanto peso nos próprios ombros.
Sozinha.
Mas Alana era Alana.
Talvez ela sempre o surpreendesse.
Alex deu partida no Tesla, manobrando o carro para a avenida.
Talvez ele pudesse encontrar uma forma de ajudá-la.
Talvez...
Alex entreabriu os lábios, soltando um arquejo baixo.
E, enquanto dirigia de volta para seu apartamento, uma ideia ousada o tomou.
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